segunda-feira, outubro 02, 2006

Na primeira pessoa: Olivier Bertrand

Olivier Bertrand é assessor artístico do Thèâtre de la Bastille, em Paris, desde 2000, espaço cujo programador é Jean-Marie Hordé. Nesta breve conversa sobre o papel do programador, e nomeadamente numa cidade como Paris, Bertrand fala do modo como se organiza a programação de um teatro que, nos últimos anos, tem feito apostas que parecem contradizer algumas das lógicas de apresentação daquela cidade. Nomeadamente ao nível do número de representações, da escolha menos evidente de determinados espectáculos de certos criadores que não tiveram oportunidade de circular, ou ainda, de construir uma programação que, mesmo presa a um público de assinantes, possa constituir-se como um relevante mapa da criação contemporânea no domínio do teatro e da dança. Esta conversa prossegue o ciclo de reflexões intitulado A ponta do iceberg, em torno do papel do programador, desta vez dedicado a França, e que O Melhor Anjo publica durante o mês de Outubro.

Eu não posso considerar um trabalho sem considerar tudo o que o envolve. - uma conversa com Olivier Bertrand

É possível definir-se aquilo que procuras num espectáculo?

Eu não tenho questões apriorísticas em relação aos espectáculos. Há demasiadas variantes que transformam o nosso olhar. Mas estou sobretudo interessado numa singularidade e no modo como o artista aborda este ou aquele assunto. O que me interessa é perceber de que forma uma personalidade possa levar a cabo uma proposta. E às vezes sou surpreendido por espectáculos completamente imprevisíveis de determinado criador sobre o qual tinha outra impressão.

E como é que essa ideia encontra o seu lugar na programação do Thèâtre de la Bastille?

Por ano eu proponho cinco ou seis peças de dança, e quando vemos quase 150 podemos sentir que perdemos o essencial. Mas eu sei que o Jean Marie é mais sensível a este ou aquele projecto e procuro apresentar propostas que possam ir ao encontro daquilo que são as suas próprias ideias. Propostas vindas da Bélgica, por exemplo, como as que juntam a dança e o teatro são facilmente apresentadas no teatro. Mas a partir do momento em que existem propostas às quais eu próprio sou sensível verifico se é completamente contrária aquilo que ele defende e, se for o caso, nem lha proponho. No caso de Tiago Guedes, por exemplo, o facto de ele ter algumas reservas em relação ao seu trabalho, não o impediu de programar duas peças [Um Solo, Espectáculo com estreia marcada] nem sequer de o continuar a seguir. É claro que, de vez em quando, ele alerta-me para determinados nomes. Mas não tenho quaisquer obrigações estéticas ou condicionantes orçamentais que me impeçam de escolher um espectáculo.

Uma vez que não programas directamente há uma margem maior para tomares riscos, ou são-te dadas ou impostas directivas?

Quando um projecto suscita interesse, o passo seguinte é perceber de que modo ele se contextualiza no âmbito do Thèâtre de la Bastille. Falamos de um espaço inserido numa cidade particular que tem evoluído muito nas suas lógicas de programação. Se fizermos uma comparação só ao nível da divulgação e difusão da dança contemporânea em Paris- Ille de France, verificamos que houve uma explosão de espaços, de nomes, de iniciativas. Isso obriga-nos a um permanente questionamento. Há, no entanto, linhas que permanecem como uma espécie de faróis na programação. Desde logo que uma temporada não seja uma mera sucessão de espectáculos. Mesmo que nem sempre seja evidente, quando algo é apresentado tentamos perceber que ligações se estabelecem entre o que se segue ou antecedeu. Há também questões técnicas, por exemplo, que condicionam a carreira de um espectáculo. Contudo, somos hoje dos poucos espaços em Paris, a par do Thèatre de la Ville ou o Thèatre de la Cité, que tenta apresentar, no caso da dança, o máximo de sessões possível de um só espectáculo, ultrapassando as habituais cinco ou seis datas, ou às vezes menos, que acontecem um pouco por toda a Europa.

Uma opção que acaba por definir o próprio papel do espaço.

O Théâtre de la Bastille não tem dinheiro para produzir mas, ao mesmo tempo, há várias possibilidades de parcerias que podem permitir a produção de um espectáculo. Para nós é importante criar laços com os criadores e os parceiros de produção para que um espectáculo possa existir. Numa cidade como Paris há dezenas de propostas de dança todas as semanas e é fácil vermos uma coisa, fazer uma apreciação rápida e depressa nos esquecermos dela. É importante que exista um olhar mais demorado sobe os espectáculos. Isso cria vários mal-entendidos que impedem uma recepção mais esclarecida. Quando podemos, gostamos de apresentar uma peça que tem já cinco ou dez anos, uma vez que não podemos andar sempre à procura do novo grito, da nova moda.

Procura essa que pode tornar-se uma armadilha.

Em Paris apresentam-se espectáculos nos sítios mais diversos e em condições, também elas, bastante diferentes. Isso responde tanto às necessidades dos sítios como ao público específico de cada espaço. Uma peça, que pode ter sido apresentada, por exemplo, no estúdio do Centre National de la Danse, há dois ou cinco anos, duas apresentações para um máximo de 40-50 pessoas de cada vez, que eu tenha gostado muito e que ache que merece outra visibilidade, mesmo que a lógica dos dias de hoje me diga que já teve a sua oportunidade, é programada. Nós temos a sorte de ser um espaço intermediário, digamos que entre o Thèâtre de la Ville e a Ménagerie de Verre, e isso permite-nos fazer escolhas de espectáculos que consideramos importantes e que merecem ser vistos por mais pessoas. Ou seja, podemos oferecer re-inscrições que, de outra forma, se perderiam na lógica da novidade.

Essa leitura do contexto e dos discursos artísticos traduz-se depois numa programação que é uma proposta de organização do que se vai fazendo?

Há projectos que me seduzem, de maneiras muito diferentes. E é aí que eu encontro, ainda, um certo olhar de “espectador normal”, se é que tal existe. Eu não posso considerar um trabalho sem considerar tudo o que o envolve. Isto inclui tanto as condições de produção como a relação com o público. Há uma reacção que é, num nível primário, pessoal. Mas há sobretudo encontros artísticos. É o exemplo da programação de 2003 em que, no quadro das apresentações de solos de João Fiadeiro [Vera Mantero [Olympia e Talvez ela pudesse dançar primeiro e pensar depois], abrimos a possibilidade de apresentar outros artistas com os quais os criadores tivessem afinidades. A escolha deles recaiu em criadores que apoiavam nas suas estruturas [Re.Al e O Rumo do Fumo, respectivamente]. Tiago Guedes [Um Solo], no caso de João Fiadeiro, e Miguel Pereira [Antonio Miguel], no caso de Vera Mantero. Se me tivessem apresentado criadores alemães ou italianos ser-me-ia igual. Foi meramente circunstancial a oportunidade de podermos criar uma espécie de evento em torno da criação contemporânea portuguesa com cinco ou seis espectáculos. O que me interessa mais na relação entre os artistas é de, efectivamente, poder compreender o trabalho, como evoluem e reagem a um ou outro artista. Na altura, para nós, e no âmbito de uma programação, fez todo o sentido, já que se criaram novas relações entre a Bastille e os criadores, como se prova com Tiago Guedes. Isso acontece frequentemente e não significa que houvesse a intenção de desenhar uma identidade portuguesa, coisa que nem sequer considero que seja primordial para estes criadores.

Paradoxalmente essa é uma questão que continua a estar presente na recepção de espectáculos de países periféricos em relação ao eixo França-Bélgica-Alemanha-Áustria, e mais ainda quando alguns espectáculos circulam em grandes salas europeias.

Para mim essa não é nem uma preocupação nem uma questão relevante. É mais relevante perceber o modo de trabalhar de um artista. Claro que esse trabalho está dependente, por exemplo, das condições de produção do seu país de origem e há elementos que nos podem indicar essa realidade. Mas o resultado - e a sua recepção -, não é determinado pelo modo como foi produzido. Há há países que desenvolveram um trabalho em dança mais forte que outros mas, não acredito que isso não defina uma identidade artística. É sobretudo a identidade e a especificidade de cada criador que se destaca em cena. O que, no caso dos festivais*, implica que as presenças nacionais existam mediante escolhas artísticas e não territoriais.

Considerarias, portanto, que é na relação com o presente que se deve constituir uma programação e definir o papel de um programador?

Cada pessoa responderá de forma diferente e eu não sei se consigo definir o papel de um programador. O que sei é que ao fim de cinco anos a trabalhar com a Bastille, continuo a sentir que é importante que o olhar não seja condicionado por questões técnicas e lógicas programáticas. A deformação do olhar ocorre frequentemente e é importante evitá-la.


*esta conversa decorreu durante o festival Alkantara 2006


Agradecimentos: Culturgest, Mónica Guerreiro

Ver dossier A ponta do Iceberg II com entrevistas a
Marie Collin (Festival d’Automne à Paris). Este dossier continua nas próximas semanas com os testemunhos de Eliane Dheyere (Le Vivat – Scéne Conventionée) e Fréderic Flamand (Centre National de la Danse Marseille/Ballet National de Marseille)

Ver dossier A ponta do Iceberg I com entrevistas a
Giacomo Scalisi, consultor para o teatro do Centro Cultural de Belém; Marta Furtado, responsável pela programação de artes performativas da Galeria Zé dos Bois; Jorge Salavisa, director artístico do São Luiz - Teatro Municipal; Francisco Frazão, assessor para o teatro da Culturgest; Diogo Infante, director artístico do Maria Matos - Teatro Municipal

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