sábado, janeiro 14, 2006

O espectador vê o quê? (I)



(o lugar do público em exemplos recentes do teatro contemporâneo português)


A performance can activate a diversity of responses,
but it is the audience which finally ascribes meaning and usefulness to any cultural product.
Susan Bennett, Theatre Audiences, 2001

Private Lives, pelo Teatro Praga.
Foto: Ângelo Fernandes


Há linhas comuns que permitem traçar grelhas de interpretação para o teatro contemporâneo português, sobretudo a partir da década de 90 do século XX, quando factores essenciais como a utilização de espaços não convencionais numa lógica que por vezes convoca o site-specificity, um regresso à utilização do corpo como ferramenta dramatúrgica (onde é notória a ‘contaminação’ do que se denominou nova dança portuguesa) e o questionamento do papel do público dentro de um espectáculo, deram às propostas, novas formas de pensar as fronteiras das classificações convencionais. Outras linhas certamente podem ser apontadas, nomeadamente no que diz respeito à utilização da biografia como matéria de trabalho (depois do ‘teatro-documento’ dos anos 30 e 60/70), ou a convocação de outras disciplinas plásticas, visuais e performativas.

Mas se todas elas podem, mais ou menos, corresponder a uma ideia de manipulação da envolvente para a construção de um objecto artístico, corre-se também o risco de rapidamente se procurarem novas classificações, como, por exemplo, ‘espectáculos híbridos’. Define Cláudia Madeira, investigadora, que a “característica predominante é a de não se encaixarem já numa catalogação precisa (que pode até ser revista no futuro), centrando-se antes nas margens ou nos interstícios dessas catalogações. Por outro lado, os seus agentes podem ser actores, músicos, artistas plásticos, bailarinos, coreógrafos, dramaturgos, e em cada novo espectáculo terem também outras denominações profissionais” (Madeira: 2004, 105).

Podemos questionar a pertinência de uma nova classificação performática, quando não é contemporânea a convocação de outras práticas e, menos ainda, eficaz a criação de uma macro-categoria. Não será mais importante pensar como estão as classificações ‘convencionais’ a serem postas em causa num universo criativo de pleno e constante confronto? E, sobretudo, como são recepcionadas as propostas por um público cada vez mais dividido e radicalizado nos gostos, nas leituras e nos contextos? Uma vez que, e no limite, é com o público que se quer dialogar. Logo, é nos espectadores que se sustentam as necessidades de classificação.

Susan Bennett, professora e investigadora inglesa, baseia o ensaio Theatre Audiences (Routledge,1997), citado em epígrafe, nas seguintes afirmações: “A reacção do público é, geralmente, uniforme? Ou podem existir múltiplas leituras durante uma apresentação? E como se transformam as nossas expectativas enquanto vemos um espectáculo?”. José Manuel Paquete de Oliveira, professor do ISCTE, afirmou, no âmbito de um seminário organizado, em Novembro de 2003, pelo Observatório da Actividades Culturais, que podíamos encontrar mais de dez tipos de públicos diferentes. Entre eles os “circunstanciais”, “relativos”, “habituais”, “irregulares”, “retraídos”, “cultivados” ou “displicentes”.

De acordo com a reportagem do jornal PÚBLICO que aqui se cita, o docente continuava dizendo que “o público não existe, cria-se. O conceito de ‘público’ é um ‘dos mais difusos pela diversidade dos seus usos e descrições’ e que a democratização da arte não veio facilitar a sua definição, hoje distante da ideia de um grupo de pessoas com interesses comuns por oposição à ‘massa’”. E o sociólogo José Madureira Pinto «afirmava que ‘o universo dos praticantes culturais é restrito’ sendo que ‘a relação dos públicos com a cultura não é independente dos lugares’ – a sua relação varia conforme o local onde se experiencia determinado acontecimento cultural. Os públicos parecem, assim, fazer-se na sua relação com os eventos culturais, isto é, do lado da recepção.”

Tomemos como exemplo alguns espectáculos e criadores que mais se têm focado (nem sempre de forma consciente) numa redefinição do lugar do espectador, e, sobretudo, atribuindo a este um papel nada passivo ou de contemplação. E, no entanto, sem lhe atribuírem responsabilidade total pelo que se passa. Ou seja, trabalhando regras e códigos de modo a pensar a relação circular criador-objecto-espectador. A manutenção do lugar que compete às partes confere às propostas um formalismo arriscado, uma vez que permite a fixação de modelos de recepção e, por consequência, de organização das várias propostas existentes no contexto criativo nacional.

Utilizemos, para a construção desse corpo criativo, a supra-definição intra-espectáculos, que considera a permanência das classificações tradicionais, propondo modos de pensar os espectáculos não na procura de uma nova classificação, mas testando os limites e as fronteiras dessas classificações tradicionais. Assim, se os criadores assumem que aquilo que fazem é teatro (ou dança, ou performance, ou instalação, ou vídeo,…), está em quem recebe a capacidade de dialogar com essa definição baseando-se na sua própria definição (seja esta individual ou imposta). Mais, esta supra-definição pressupõe, da parte dos criadores, uma relação biofágica com o processo criativo (o seu e o contexto onde se inserem). Ou seja, alimenta-se dele para fazer surgir uma nova proposta que, ao se apresentar nessa aparente forma moldável, solicita ao público uma proposta de conclusão. Sendo que o público muda em todas as apresentações, estas propostas aproximam-se mais de uma ideia formal de happening, recuperando deste conceito (reforçando, na verdade) o sentido de forte implantação no imaginário do espectador.

“Le plaisir du spectateur n’est jamais pure réception passive; il est rapport à une activité, à une série d’activités dans lesquelles il est plus ou moins investi.” (Ubersfeld, 1991: 330). Portanto, mais do que uma proposta isolada, antes procuram agregar uma memória e projectar-se num futuro. O que acaba por acontecer com este tipo de espectáculos é a construção de linhas de força imaginárias que vão sustentando um universo criativo, à revelia dos criadores. Ou seja, quando analisados no conjunto (e quando apresentados extra-temporada) revelam mais dimensões do que como objectos isolados. Essa ideia de continuidade permite ainda potenciar um questionamento constante, não através das mesmas formulações, mas antes de uma cadeia de perguntas/hipóteses que não cessam.

Nesta supra-definição não encontramos percursos completos de estruturas e criadores, mas espectáculos que se destacam e organizam em torno dessa busca de um lugar para o espectador. Assim, temos exemplos como os do Teatro Praga (Private Lives, 2003 e Título, 2004 e a co-produção com a Cão Solteiro Sobre a Mesa a Faca, 2005), ou de criadores como Carlos Afonso Pereira (Via Dolorosa, 2003), Rogério Nuno Costa (a trilogia Vou a tua casa, 2003-2005 e o conjunto de performances sucedâneas/complementares/reflexivas desta trilogia, Fui, 2005), Mónica Calle (A Virgem Doida, 1992; Rua de Sentido Único, 2001 e A Missão ou quando as raparigas continuam a querer ir para Moscovo, 2005) e Patrícia Portela (a série Flatland, 2003-2005). Outros exemplos são certamente algumas propostas da Sensurround/Lúcia Sigalho (Puro Sangue/Homens, 1995; Puro Sangue/Mulheres, 1997; Viagem à Grécia, 2000; Documental & Biográfico, 2005), do ex-colectivo Olho (Zona, 1999; Anoz, 2000) ou já na dança, Tiago Guedes (Trio, 2005), o díptico Aicnêtsiex /Existência (2001-2002) e I am here (2004), estes de João Fiadeiro.

Estas propostas, têm em comum o modo como respondem a formalismos cénicos, integrando-os no discurso criativo sem forçarem uma nova categoria que, pela fragilidade inerente ao que é novo, dificilmente se sustentaria. A atribuição de novos códigos de interpretação sem o aniquilamento dos velhos não origina novas definições, já dizia o teórico Arno Gruen, ponto de partida para Título, do Teatro Praga. Antes sobrepõe pontos de vistas que, no limite, se repetem e anulam. Em especial porque se observarmos o contexto criativo internacional, o regresso ao denominado formalismo (à limitação das fronteiras) é cada vez mais evidente. Se no teatro, a dramaturgia se torna insistentemente presente, não pela exposição, mas pelo modo como é dissecada dentro dos espectáculos (algo que poderíamos fazer relacionar com as estruturas dramatúrgicas descarnadas de Brecht), na dança a coreografia e a intenção orgânica cumprem já uma relação espaço-corpo consciente do modo como a experimentação revolveu os códigos clássicos, fazendo destes base para certas recusas.

Sendo espectáculos assentes numa estrutura consistente, apostam antes numa ideia de aparente moldabilidade. O processo de ilusão (o contrato de verdade que se estabelece) dá lugar a um jogo de aparentes crenças sem que nenhuma das partes consiga (queira?) desenvolver, ao longo da apresentação, uma ideia finita do seu papel e da importância deste ao longo da mesma. Portanto, são espectáculos que se desenvolvem num conceito de continuidade, quer para quem faz, quer para quem recebe. Procede-se a uma redefinição dos limites do teatro.

Diz a teórica francesa Anne Ubersfeld a propósito da responsabilidade das partes: “le fait même de la représentation suppose un accord préalable, une sorte de contract passé entre les practiciens et les spectateurs, contract qui ne précise pas seulement le fait même de la representation et le code de perception du spectacle (en général sous la forme de non-dit). […] Le spectacteur, dans le procés de la representation est un signe non seulement pour les comédiens, mais aussi por les autres spectateurs: on sait combien il est difficile por un spectateur isole d’être à contre-courant et d’accepter ou de refuser un spectacle contre ses voisins. Le spectateur aussi est un acteur; aussi a-t-on besoin de l’autre comme témoin: il n’est pas bon d’être seul au thêatre” (1991: 304-306). E se o papel do público é essencial, é porque nele se sustenta num questionamento a partir da base. Ou seja, qual a importância do que estão os criadores a fazer para quem os vê? E de forma pode quem vê accionar determinados mecanismos que permitam o evoluir dos processos criativos?


continua amanhã, com apresentação de bibliografia

3 comentários:

Anónimo disse...

Esta tese dos triangulos do Fragateiro é profunda! Será que ele não se apercebe do ridiculo do seu discurso?

Tiago disse...

anonimo, nao sei de que fala. nao consigo ter acesso ao expresso em frança? n me quer enviar a bela entrevista por mail?agradecia-lhe.

Anónimo disse...

Estou a gostar muito. Quero o resto.