Análise ao espectáculo VIA DOLOROSA, de Carlos Afonso Pereira
A proposta de Carlos Afonso Pereira (CAP) em recriar o documento teatral de David Hare (DH) sobre a viagem do dramaturgo inglês ao território da Palestina e Israel, Via Dolorosa (VD), aposta na desconstrução do jogo teatral a partir das suas próprias regras. E utiliza a mecânica cénica para dar conta do papel importante e fundamental que o teatro ainda ocupa na construção de um universo crítico, atento, consciente e político. Recusar a ideia de que qualquer manifestação artística não tem esta dimensão, é recusar fazer parte de um mundo em permanente mudança.
Contudo, VD instala-se como um ovni na paisagem teatral portuguesa, já que esta existe assente em objectos individuais e narcísicos, mais habituados a tratar o eu-criador e as urgências de criação, do que integrar os contextos que os rodeiam (sobretudo os políticos e sociais). O teatro em português, creio, atravessa uma fase de interioridade e só interage com a envolvente através de metáforas e alusões. E VD é um espectáculo político. O que, como já se percebeu, pode correr contra si.
Mas, curiosamente, é percebendo esse isolamento que CAP aposta na completa teatralização do texto de DH. Só assim é que o público vai conseguir perceber porque razão escolheu assistir a VD. Essa escolha nasce de uma vontade de agir e ser confrontado que obriga o espectador a oscilar entre observador/confidente e objecto de confrontação. E é notório o desconforto de quem assiste. Não só porque a "quarta parede" foi derrubada e o espectáculo decorre em andamento, mas também porque CAP não é um actor a fazer um texto. É, assumidamente, CAP a fazer de DH que faz de "DH em Israel". E pelo facto de CAP não ter procurado uma adaptação portuguesa que contextualizasse o público é que o espectáculo é de difícil digestão.
Esta dupla personagem impede a imediata classificação do corpo que conduz o espectador num percurso misto de viagem turística e caminho de penitência. O corpo e a voz de CAP, diametricalmente opostos emocionais, são utilizados por DH para dar conta da sua viagem. Não o contrário. Ou seja, deixámos de ver um actor a fazer um texto para assistirmos a uma utilização do corpo de outrem. CAP não existe. E, no entanto, não deixa de estar do lado do espectador, sobretudo nos momentos em que parece querer reagir ao que DH sentiu ou extereorizar o que DH pensou. Isso é visível quando interage com os aviões que passam razantes no Hospital Júlio de Matos ou quando cruza uma memória individual de DH (a lembrança das sessões de catequese, por exemplo) com uma memória colectiva (a queda de joelhos, como Cristo na sua via dolorosa) e mais ainda quando faz sentar o público numa mesa que remete para a Última Ceia ao mesmo tempo que DH se encontra no meio de uma família local.
Esta sugestão da Última Ceia propõe ainda outra leitura e que se relaciona directamente com a escolha do espectador de que se falou anteriormente: estes tornam-se the happy few que, tal como DH quando partiu para Israel ("os dramaturgos são atraídos aos locais sem perceberem porquê", diz), foram escolhidos para se aproximarem da questão israelo-palestiniana. É este 3º corpo que anula a distância a que VD está inerentemente sujeito. O facto de se tratar de um teatro-documento feito na 1ª pessoa cria um efeito de distanciação no espectador, já que este tende a nunca ver DH, mas antes CAP. Mas a verdade teatral e a forma como CAP a resolve anula essa mesma distância.
A forma como o resolve é que é inquietante. O público é conduzido por diversas salas, cada uma delas referentes aos locais que visitou (Tel Aviv, Jaffa, Ramallah, Gaza, Jerusalém) e às pessoas com quem se encontrou (dos quais se destaca o encontro com o líder palestiniano Haider Abdel Shafir numa tenda e com a activista Pauline, numa cave), sendo que cada uma destas salas (ou os corredores que as cruzam) estão cenograficamente desenhados para, em vez de ilustrarem, sugirem. O trabalho notável de Pedro Silva assume assim essa condição de fragilidade teatral que é VD e encontra nas expressões de CAP o equilibrio necessário para "pouco parecer muito". Ou seja, sujeita-se o espectador à construção dos espaços em branco. Quem não pode sair indiferente é o espectador.
Na construção de VD percebe-se a vontade de não tomar uma posição (quer em DH, quer em CAP) e procura-se, ainda, respnder ao apelo de confrontação de uma realidade em constante e repetida mudnça e a efemeridade (logo, imutável) do teatro.
Por isso, é VD teatro? É dificilmente só teatro. É que para além do facto de ser feito por um actor e estar sujeito a uma convenção, VD não tem fim. E é essa condição eterna e suspensa que o impede de ser teatro. VD é uma realidade. Que seja o teatro a denunciar as suas fragilidades é que é preocupante.
Contudo, VD instala-se como um ovni na paisagem teatral portuguesa, já que esta existe assente em objectos individuais e narcísicos, mais habituados a tratar o eu-criador e as urgências de criação, do que integrar os contextos que os rodeiam (sobretudo os políticos e sociais). O teatro em português, creio, atravessa uma fase de interioridade e só interage com a envolvente através de metáforas e alusões. E VD é um espectáculo político. O que, como já se percebeu, pode correr contra si.
Mas, curiosamente, é percebendo esse isolamento que CAP aposta na completa teatralização do texto de DH. Só assim é que o público vai conseguir perceber porque razão escolheu assistir a VD. Essa escolha nasce de uma vontade de agir e ser confrontado que obriga o espectador a oscilar entre observador/confidente e objecto de confrontação. E é notório o desconforto de quem assiste. Não só porque a "quarta parede" foi derrubada e o espectáculo decorre em andamento, mas também porque CAP não é um actor a fazer um texto. É, assumidamente, CAP a fazer de DH que faz de "DH em Israel". E pelo facto de CAP não ter procurado uma adaptação portuguesa que contextualizasse o público é que o espectáculo é de difícil digestão.
Esta dupla personagem impede a imediata classificação do corpo que conduz o espectador num percurso misto de viagem turística e caminho de penitência. O corpo e a voz de CAP, diametricalmente opostos emocionais, são utilizados por DH para dar conta da sua viagem. Não o contrário. Ou seja, deixámos de ver um actor a fazer um texto para assistirmos a uma utilização do corpo de outrem. CAP não existe. E, no entanto, não deixa de estar do lado do espectador, sobretudo nos momentos em que parece querer reagir ao que DH sentiu ou extereorizar o que DH pensou. Isso é visível quando interage com os aviões que passam razantes no Hospital Júlio de Matos ou quando cruza uma memória individual de DH (a lembrança das sessões de catequese, por exemplo) com uma memória colectiva (a queda de joelhos, como Cristo na sua via dolorosa) e mais ainda quando faz sentar o público numa mesa que remete para a Última Ceia ao mesmo tempo que DH se encontra no meio de uma família local.
Esta sugestão da Última Ceia propõe ainda outra leitura e que se relaciona directamente com a escolha do espectador de que se falou anteriormente: estes tornam-se the happy few que, tal como DH quando partiu para Israel ("os dramaturgos são atraídos aos locais sem perceberem porquê", diz), foram escolhidos para se aproximarem da questão israelo-palestiniana. É este 3º corpo que anula a distância a que VD está inerentemente sujeito. O facto de se tratar de um teatro-documento feito na 1ª pessoa cria um efeito de distanciação no espectador, já que este tende a nunca ver DH, mas antes CAP. Mas a verdade teatral e a forma como CAP a resolve anula essa mesma distância.
A forma como o resolve é que é inquietante. O público é conduzido por diversas salas, cada uma delas referentes aos locais que visitou (Tel Aviv, Jaffa, Ramallah, Gaza, Jerusalém) e às pessoas com quem se encontrou (dos quais se destaca o encontro com o líder palestiniano Haider Abdel Shafir numa tenda e com a activista Pauline, numa cave), sendo que cada uma destas salas (ou os corredores que as cruzam) estão cenograficamente desenhados para, em vez de ilustrarem, sugirem. O trabalho notável de Pedro Silva assume assim essa condição de fragilidade teatral que é VD e encontra nas expressões de CAP o equilibrio necessário para "pouco parecer muito". Ou seja, sujeita-se o espectador à construção dos espaços em branco. Quem não pode sair indiferente é o espectador.
Na construção de VD percebe-se a vontade de não tomar uma posição (quer em DH, quer em CAP) e procura-se, ainda, respnder ao apelo de confrontação de uma realidade em constante e repetida mudnça e a efemeridade (logo, imutável) do teatro.
Por isso, é VD teatro? É dificilmente só teatro. É que para além do facto de ser feito por um actor e estar sujeito a uma convenção, VD não tem fim. E é essa condição eterna e suspensa que o impede de ser teatro. VD é uma realidade. Que seja o teatro a denunciar as suas fragilidades é que é preocupante.
VIA DOLOROSA
Prémio de reposição do concurso O Teatro na Década 2004
Texto: David Hare
Tradução: Carlos Afonso Pereira e Mafalda Santos
Encenação e Interpretação: Carlos Afonso Pereira
Concepção Plástica: Pedro silva
Assistência de Encenação e Direcção de Produção: Joaquim René
Produção Executiva: Mafalda Santos
Fotografia: Pedro Gomes
Produção: Metamorfose Total
Hospital Júlio de Matos - Pavilhão 27
07 a 30 de Outubro 2004-10-30 22h00
1 comentário:
Very cool design! Useful information. Go on! »
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