sábado, janeiro 14, 2006

Memoria (II)

Dois textos saidos hoje no PUBLICO que recordam duas figuras desaparecidas esta semana: a soprano sueca Birgit Nilsson e o encenador português Artur Ramos. Ambos os textos sem links.


Birgit Nilsson na eternidade
por Augusto M. Seabra

Acharíamos que ela era eterna, sabendo que Birgit Nilsson estava ainda viva (...) podiam verificar os dados, a data de nascimento a 17 de Maio de 1918, mas Nilsson era imemorial; não dizia afectuosamente um veterano como Placido Domingo que ela tinha idade suficiente para ser sua avó? Mas o canto guerreiro da Valquíria, o "Ho-Io-To-Io", é o dela que temos presente. Extraordinária Nilsson, que tanto fazia questão em apresentar-se como "mulher do campo" e "soprano trabalhadora", que não "prima-donna". A potência e projecção do seu metal radioso fizeram dela a soprano wagneriana da segunda metade por excelência. Mais exactamente, tomando a herança de outra nórdica, Kirsten Flagstad, foi a "höchdramatischesoprano" de excepção durante duas décadas, de meados dos anos 50 a meados dos 70, e depois disso o lugar ficou vago e impreenchível. (...) Mas esta mulher de ferro, famosa pelo humor corrosivo das suas réplicas assassinas para colegas ou directores de teatro (Joan Sutherland, Franco Corelli ou o célebre director do Met Rudolf Bing foram alguns dos atingidos) e por negociar ela própria os seus contratos, foi uma princesa feroz de muitas faces: Isolda clara, mas também a Elektra do "Idomeneo" de Mozart, que em 1951 em Glyndebourne foi a sua primeira afirmação internacional, a "Salomé" e a "Elektra" de Strauss e a "Turandot" de Puccini, as duas últimas dos seus máximos papéis, a ombrear com Brünnhilde e Isolda. Acharíamos que ela era eterna, e perene é a memória dos que tivemos a ocasião de a admirar. E o testemunho permanece, colossal. Birgit Nilsson era de um outro tempo e o tempo não conta para continuarmos a deslumbradamente a admirar. "


A passagem do saber
por Jorge Silva Melo

"Todos os dias ao sair para a rua, vejo a sua casa, ali em cima do Jardim das Amoreiras, naquele prédio do Nuno Teotónio Pereira, e sempre acharei que é ali que ele está, o Artur Ramos, biblioteca atrás, o conforto dos gatos, Lisboa, a Oriental, à sua frente, o Rui Chafes de triciclo brincando no terreiro em frente, a "Lareira" onde se ouvia o "Calhambeque" do Roberto Carlos e havia matinés para se dançar. (...) lendo inéditos de teatro, carinhoso gigante, atento a tudo o que fazíamos, sempre atencioso, elegante, empolgado, irritado contra o estado a que este triste território foi chegando depois de tantas esperanças desencontradas, amigo. (...) Vieram-me lágrimas ao telefonar ao Luís Miguel a dizer-lhe que morreu o Artur, nunca pensara: é a nossa juventude que assim se vai, os mestres, aqueles que nos passaram os livros, as artes, os saberes. Agora, cabe-nos a nós. Somos nós os mais velhos, agora. Num dia dos ensaios de "A Colecção", perante uma alteração de pormenor que lhe propus sobre uma porta que eu achava que devia estar aberta e ele fechada (ou era ao contrário?), ele olhou para mim com os seus lindos olhos tão azuis, sorriu: "Ai malvado, eu o que queria era que estivesse fechada" - disse -, "mas já vi que nem você percebe... E nenhuma teoria deve resistir à verdade prática." Essa frase, marxista, que me disse há quatro anos, hei-de honrá-la - e tentarei passá-la, Artur, "aos que nascerem depois de nós". "

Sem comentários: