Teatro – 5 pontos / 5 points com um presente de natal
“O que é essa coisa chamada Teatro? A coisa chamada Teatro, como a coisa chamada homem, são muitas, inumeráveis coisas diferentes entre si que nascem e morrem, que variam, que se transformam a ponto de, à primeira vista, uma forma não se parecer em nada com a outra.”
José Ortega y Gasset “A ideia do teatro”.
1.
Podemos não saber definir o que é um bom espectáculo, se algo é um bom espectáculo. Podemos não concordar com alguém sobre um espectáculo. Podemos até pensar (como por vezes me acontece) “Será que estou a ficar maluco” ou “Mas estão todos malucos” ou algo como “Estamos a gostar de levar com areia nos olhos”, e ainda o “Nunca mais cá volto”. Mas em última análise tudo depende do gosto, questão não falaciosa, mas verdadeira (intrujice para quem não sabe, ascetismo para quem sabe). Como de maus espectáculos reza a história e neles habitam sentimentos, estes excluirei desta listagem pública.
2.
Foram frequente neste ano comentários como -“Anda tudo a fazer a mesma coisa”, ou -“Têm a mania que são conceptuais”, etc e tal. Dado que me foi oferecido este espaço neste blog que muito admiro, sem grandes enigmas e sem papas na língua, sintetizo (via citações, para quem acha que sou muito novo):
a) Zeitgeist (espírito do tempo)
b) Profunda crença na evolução
c) Cheio para quem gosta, vazio para quem não gosta
d) Arte sempre se consumou gratia sui
e) Monogamia não significa falta de libido
f) A angustia da influência
g) Antes era um amador num sistema profissional, agora sou um profissional no sistema amador
3.
O que me marcou mais na criação teatral (o meu alfabeto) deste ano foi o seguinte (e tristemente não vi muita coisa por questões de trabalho, mas largamente mais do que esta escolha):
Vaivém- a história verdadeira de um projecto transdisciplinar – Nelson Guerreiro
Marcações para um crime – Martim Pedroso
Interviews/Beauty – Isabelle Schad (Alemanha)
Jutro – Kufer (Croácia)
Vistas sobre a cidade – Cão Solteiro
Saia Daqui – Maria João Machado/Ana Lacerda
El caso del espectador – Maria Jerez
El cap als núvols – Playground (Espanha)
Teatro-Fantasma – Carla Bolito/Cláudio da Silva
P.s.
As reposições dos espectáculos de Patrícia Portela [Flatland e Wasteband], os vídeos que os Third Angel nos ofereceram, o texto “Perdoar Helena” de José Tolentino Mendonça, os vídeos das performances da Annika B. Lewis, Colina 2005.
P.s.s.
Porque não aguento, porque foram provavelmente o melhor do melhor, vou por o pé noutras áreas: Trio de Tiago Guedes, os espectáculos de Pina Bausch [Nelken, Ten Chi], Set up do Rui Horta, e o concerto de Kevin Blechdom + PTR + Melted Men.
Os piores foram alguns (mts estrangeiros). Mas o pior espectáculo por mim visto foi “Faust” pelos Santasangre (Itália), que me confirmou ainda mais a repulsa pelo Romeo Castellucci.
Cheio para quem gosta, vazio para quem não gosta.
4.
“Celebro-me e canto-me/ E aquilo que assumo tu terás de assumir,/ Pois cada átomo que me pertence, por assim dizer, pertence-te.”
Walt Whitman
Pelo Teatro Praga:
Sobre a mesa a faca (co-prod. Cão Solteiro)
5***** (co-prod. Teatro Nacional D.Maria II)
Eurovision (co-prod. Transforma/ZDB)
Shall we Dance Shall we Dance [super-gorila / © / Hidden Track] (co-prod. Espaço do Tempo)
Por mim:
reposição Riders to the Sea
A guerra (WarShow)
A loja (The store)
Metal (co-criação Martim Pedroso)
Ficou por fazer:
Política I (André e. Teodósio + Martim Pedroso)
5.
Pequeno presente de natal para este blog. Uma brechtianada tirada do meu diário, parábola pessoal (artista como criador como crítico, isto anda tudo ligado, não se é uma coisa sem se ser a outra, já dizia o godard):
Eva e Adão o criador
d’aprés Mark Twain
No princípio era o amor. Mas hoje em dia Eva já não o suportava. Anos e anos daquilo. A vê-lo todos os dias. Ao desarrumado. Ao presunçoso. Podia sair. Ir-se embora. Pegar nos seus folhadinhos e plissadinhos e atirar com a porta. Tchuk. E no entanto algo resistia. Ficava lá, queda, diferente de outrora. Não estava feliz mas estava lá.
- Merda. (Pausa. Saca do cigarro e olha para o tecto com os olhos humedecidos).
A vida era difícil com um só salário. O dela neste caso. Ele lá continuava às suas custas, achava ela, a fazer showzinhos e petiscos indiferentes. Às suas custas, achava ela.
Não, não aplaudia aqueles momentos do imberbe Adão o criador (como se fosse muito mais velha do que ele. Ora, toda a gente sabe a sua idade.)
E mal a invisível cortina abria, Eva virava as costas e sentava-se no sofá a ver televisão resmungando entredentes, entre os seus, não entre os dele como outrora. Emancipara-se. Recusava agora o maldito artista. E tacteando pelas batatas fritas bufava grandes goles de ar ingeridos pela raiva…
Adão acena-lhe (pelas costas) com a parra na mão, sorridente o rapaz. Quer chocar, sussurra ela. Cabisbaixo o tal tipo sem cargo, não compreende porque continua ela naquela vida. Se estava farta, porque não saía. Estava gorda, assalariada, é verdade, mas ia-lhe dando oportunidades.
Ela não.
Subira na vida, estabelecera um nome, trepava estatutos e cargos acima. Começara num empreendimento independente, depois outsorcing, até se tornar num daqueles infernos gogolianos. E todavia com aquela bélica vida, engordara.
Eis, então caro leitor, o problema.
(Música)
Intro
No trabalho e a ver televisão,
Eva não era gorda não,
Era nova, alta, magra, loura e gira,
E assim na vida subira.
Mas a verdade veio mostrar que não,
Que ela não é como se acha quando vê televisão.
Pois quando é submetida a algo que lhe dá que pensar,
Eva apercebe-se de que está a engordar.
Ó Eva tem um pouco de humildade
Que gordura para o Adão não é problema. refrão
Mas como não estás a aceitar a verdade
Pões-te a dar cabo do sistema.
Não era a desarrumação de Adão, presunção ou sequer magreza
Que faziam lembrar Eva de que estava a ficar obesa
Eram os seus shows, que a traziam à realidade
E o que ela queria era tv, histórias, totós e shows de infantilidade
E ela irada comia, só via porcaria, lágrimas caindo e água pela cintura.
Culpava-se, culpava-o, odiava-o sem qualquer tipo de ternura
Ele apercebe-se, pega nas malas, e dirige-se para o mundo, desnorteado
A gorda em vez de ficar quieta, vai atrás porque precisa de um culpado
(refrão)
André e. Teodósio, Dezembro 2005
André e. Teodósio é actor e encenador. É um dos membros do Teatro Praga. Trabalha regularmente com as companhias Cão Solteiro e Casa Conveniente. Participou no evento Colina 2005, e encenou uma ópera, Riders to the sea, no âmbito do Curso de Encenação em ópera da Fundação Calouste Gulbenkian.
o texto é da responsabilidade do autor, excepto hiperligações
3 comentários:
só agora li a brechtianada.
tem piada, julgo conhecer um 'casal' com as características chapadas da tua eva e do teu adão...
ihihihihihi.
Ficavam tão bem na tua árvore!!hihihihihihi
amet
a saber: http://teatropraga.blogspot.com
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