crítica de teatro
Hey Girl!
de Romeo Castelluci
Ateliers Berthiers/Ódeon - Thèâtre de l'Europe, Paris
19 Novembro 2006, 15h00
Lotação Esgotada
Romeo, t’es con ou quoi?*
Todo o teatro do italiano Romeo Castelluci assenta numa ideia de desconstrução dos códigos teatrais que quer fazer tabula rasa de convenções, regras e lógicas cénicas. Não vem daí grande mal ao mundo, já que uma história do teatro se faz de permanentes revisitações. Mas em Castelluci, esta ideia faz-se com intenções de revisionismo histórico, discurso que parece agradar (ou ficar bem) a uma série de instituições que o suportam, legitimam e vendem como grande exemplo do teatro contemporâneo europeu. A sua «Tragedia Endogonidia» em dez episódios (o episódio 4# - Bruxelas, foi apresentado em Lisboa no Alkantara festival, em Junho passado), baseada na acção violenta, na escatologia, na metáfora, no barroco e no grotesco, é disso o melhor exemplo.
Eu confesso que parto cansado para estas afirmações de rompimento, desvio e reformulação que, de tão prepotentes, se esquecem de fazer um espectáculo. Juntam umas imagens, compõem uns quadros, arrumam uns intérpretes de acordo com a iluminação, criam uma faustosa e operática montagem para servir de metáfora a umas ideias obscuras… Por mais que se insista numa ideia de pesquisa, o dispositivo cheira tanto a bafio que não há imparcialidade que resista. Muito provavelmente é isso que interessa a (em ) Castelluci: esgotar-nos a possibilidade de envolvimento, forçar-nos a uma posição extremada, não nos deixar indiferentes.
«Hey Girl!», que estreou no passado dia 16 de Novembro nos Ateliers Berthier em Paris, no âmbito do 35º festival d’Automne, e onde fica até ao próximo dia 25, é o exemplo máximo do cabotinismo cénico, fruto das posições egocêntricas de um nome que entende o teatro como um espaço de aplicação das suas neuroses, perversões e fantasias. Tudo, claro, decorado com o melhor dos veludos e sedas. O imenso espaço deste armazém, pertencente ao Ódeon – Thèâtre de l’Europe, é deixado à imaginação de alguém que tem como programa criar «uma obra sobre o movimento. Sobre os movimentos. Sobre o gesto desprovido de todo o conteúdo. Em geral. E por isso digo : é um acto sem palavras. […] Será uma espécie de dança. Um folclore de esquecimento, nocturno, completamente e perfeitamente ocidental». Como disse?
A contextualização é dada num dos textos do programa, assinado pelo investigador inglês Nicholas Ridout: «Podíamos pensar na prática do teatro como uma espécie de arqueologia do gesto, e no teatro ele mesmo como um arquivo de gestos recuperados, reanimados e exibidos em público. Ideia que não existe sem alguns perigos. Recuperar e reanimar comporta o restauro de qualquer coisa de uma experiência histórica desaparecida, mas também, e potencialmente, um legitimar dessa restauração, por uma espécie de inevitabilidade e insistência a-histórica: apresentá-la não como artefacto histórico contingente, mas como manifesta fatalidade».
Ora, este movimento ao qual Romeo Castelluci quer regressar é feito a partir de linhas muito pouco nítidas onde, uma vez mais, se compõem literais quadros vivos e a luz, o espaço e o som assumem posição de relevo face aos corpos dos intérpretes, meros instrumentos das directivas da encenação. Aqui há duas actrizes, uma branca e uma negra, factor por demais importante para que nos esqueçamos que a cor da pele alimenta pré-conceitos. A branca, muito magra para não dizer anoréctica, nasce de uma massa de borracha derretida disposta em cima de uma mesa, arrasta-se pelo espaço e entrega-se a uns tambores (sim, lembra o «2001», mas mais George Romero em dias maus que Stanley Kubrick). O exemplo perfeito de uma mulher modelo explica depois que são as rainhas que oferecem a cabeça ao seu povo. Enumera uma lista de mulheres guilhotinadas (Ana Bolena, Maria Stuart, Marie Antoinette, etc., mesmo que a rapariga esteja mais para Joana d’Arc), envolve-se num pano previamente queimado por uma espada ligada a um transístor, e dá-se sacrifício. Quarenta homens entram vestidos de negro e massacram-na com almofadas. Depois dessa morte ela ressurge com uma cabeça do triplo do tamanho que, mais tarde, aparecerá na cabeça da actriz negra que, mais composta nas formas (logo, o desejo primário e colonialista), se mostra nua, convenientemente despida pela branca. Os vários vidros que entretanto tinham descido, rebentam. Pelo meio são projectadas várias palavras – televisão, árvore, mar, computador, mão, gato, cachimbo, insecticida, manteiga, primo, … - e um excerto da cena do balcão de «Romeu e Julieta», de Shakespeare. Precisamente a cena que pergunta o que existe num nome. Logo, e pensando na ideia de pureza de um movimento: o que existe num movimento. A seguir a actriz branca expõe a cara a um feixe luminoso por demasiado tempo, enquanto a outra, devidamente pintada de cor prata, dança um samba com a espada. No fim há um painel com um retrato, certamente um mecenas, que aparece pendurado ao contrário.
Diz Nicholas Ridout, no mesmo texto: «Porque nos sentamos e assistimos à produção destes gestos, dificilmente podemos evitar a impressão de que são feitos para nós. São-nos dirigidos, somente a nós; eles são a resposta ao nosso gesto de reconhecimento, à nossa chamada e à nossa intimação». Tenho dúvidas em conceber que algum destes gestos seja essa resposta às inquietações dos espectadores que, saturados de imagens, acreditem na pureza do movimento (e já agora, na pureza do texto, do espaço, do som…). Tenho dúvidas que um espectador contemporâneo e ocidental acredite, deseje e busque tal coisa. Mas tenho ainda mais dúvidas em acreditar numa hipótese de pureza que, se tenta fazer uma ponte entre um movimento de ficcionalização negra do quotidiano contemporâneo ocidental e a moral pretendida pelas tragédias gregas, se possa apresentar, ela mesma, refém de ideologias cénicas autoritárias e extremistas.
É que nesta pretensa metáfora redentora do gesto, Romeo Castelluci parece esquecer-se que o movimento puro é imediato, é compreensível, não precisa de outro suporte que não o contexto onde se insere. É aliás o contexto que lhe dá ou retira pureza. E aqui os gestos vivem suspensos num vácuo e numa retórica, não dialogam, não comunicam, não interagem, não levam a coisa nenhuma. Só à incredulidade pelo modo como certos discursos podem subsistir sem um profundo debate sobre as suas implicações no público e na arte. Não é uma questão de gosto, é uma questão de lógica. Coisa que, francamente, escapa a Romeo Castelluci.
* Romeo, és parvo ou fazes-te?
Texto escrito com o apoio do Programa de Apoio à Dança do Serviço de Música da Fundação Calouste Gulbenkian. Foto do cartaz de Francesco Raffaelli (direitos reservados)
Ler, neste blog, outros textos publicados no dossier dedicado ao 35º Festival d'Autome á Paris
Les Histrions, de Marion Aubert/Richard Mitou (teatro), Dead Set #2, de Caden Mason (teatro), Showcase, de Richard Maxwell (teatro), I wouldn't be seen dead in that, de Steven Cohen & Elu (dança), Até que deus é destrúído pelo extremo exercício da beleza, Vera Mantero, Quartett, de Robert Wilson (teatro) e ainda entrevista a Marie Collin, programadora de teatro e dança do festival. A seguir: William Forsythe, Joel Joänneau, Thomas Hauer, Bruno Geslin e Boris Charmatz.
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