sábado, outubro 07, 2006

Crítica de teatro: Dead Set #2, Showcase, Truckers & Trackers

Crítica de teatro

A falibilidade do dispositivo

Showcase
de Richard Maxwell/New York City Players (EUA)
de 11 a 14 de Outubro, Paris [1]
35º Festival d’Automne à Paris

Dead Set #2
de Caden Manson/Big Art Group (EUA)
de 27 Setembro a 08 Outubro, HAU 2, Berlim
de 17 a 21 Outubro, Paris, 35º Festival d’Automne à Paris

Truckers & Trackers
de Mark Johnson, Neal Wash, Eric Shefter/On Air Productions (EUA/Alemanha)
21 a 30 Setembro, AULA, Berlim



Solidão, egoísmo e paranóia são palavras-chave para a compreensão de um certo estado de espírito actual, mas também para compreender como alguns dos criadores norte-americanos reflectem sobre a sociedade contemporânea partindo de dispositivos teatrais, onde a estrutura se sustenta numa dramaturgia fragmentada, feita de referências e observações sobre o quotidiano. Três projectos vindos do outro lado do Atlântico – Showcase, de Richard Maxwell/New York City Players, Dead Set #2, de Caden Manson/Big Art Group e Truckers & Trackers, escrita por Mark Johnson mas encenada pelo alemão Frauke Havemann -, apresentam-se em capitais europeias, procurando denunciar uma sociedade individualista e autómata onde o Homem, se ainda existir, perdeu o rumo.

Seria possível ver-se aqui uma qualquer reflexão sobre o grande mito do século XX, o sonho americano, não fosse dar-se o caso de serem propostas falhadas que incorrem no erro de julgar que o dispositivo cénico serve, sustenta e legitima por si mesmo um espectáculo. Seja porque procuram o auxílio das tecnologias (num jogo de evidências simplistas), seja porque deslocam a cena para espaços normalmente para-teatrais, cedem à mais redundante ideia: a sociedade já não tem lugar para o Homem, resta-lhe a sua condição animal, o teatro é o único espaço de verdadeira e impoluta denúncia dessa situação.

Showcase (na foto), que esta semana, de 11 a 14, se apresenta no 35º Festival de Automne à Paris, é uma de duas peças (a outra é Good Samaritans, em estreia mundial) que o encenador norte-americano Richard Maxwell traz ao Festival, e em que continua um discurso, diz ele, de resistência. Em entrevista incluída no dossier de imprensa, fala da vontade de desenvolver um teatro que não trate o público como um “grupo monolítico, sentado nas cadeiras”. E assume: “Quanto menos determinar, para o espectador, o sentido da peça, emocionalmente ou psicologicamente, mais ele vai poder projectar os seus próprios desejos no que vê”. Esta breve peça, cerca de 30 minutos, passa-se num quarto de hotel onde quinze espectadores, sentados numa das camas ou encostados à parede, esperam, no escuro, que o corpo deitado na outra cama, e perceptível pela única luz que surge da ponta do cigarro, se lhes dirija. O homem está nú. Depois vestir-se-á.

A ampliação de uma ideia de voyeurismo, seja pela vontade de tornar íntima a experiência, seja pelo desconforto trazido pela ausência de anonimato (os espectadores reúnem-se todos no hall do hotel, são levados em grupos no elevador, aguardam no quarto por alguma indicação) torna-se retórica perante um texto banal e inconsequente.

O homem, que se faz acompanhar da sua enervante sombra (um outro actor vestido de nylon preto que o mima), é um self-made man, preso em quartos de hotel iguais a tantos outros, numa noite igual a tantas outras. A ideia de casa foi-se transformando à medida que o tempo passava. E as dúvidas deste homem, que querem ter um reflexo na de cada espectador – sobretudo se também ele estrangeiro naquela cidade e a viver num quarto de hotel – são de uma banalidade confrangedora. Vê ou não vê um filme pornográfico, liga ou não liga para casa, vai ou não vai até ao bar, sabe ou não sabe quem é.

Esta deambulação existencialista, para mais vincada pela sombra, e a incapacidade de perceber porque é que é relevante que a peça se passe num quarto de hotel, revela-se ineficaz, já que a experiência de intimidade é anulada pela formatação do dispositivo cénico. Texto e movimento estão de tal forma marcados que não dão margem a qualquer inscrição na cidade onde se apresenta, naquele quarto de hotel, àquela hora, em frente aqueles espectadores. Mais do que reflexo das nossas eventuais angústias, o que sentimos por aquele homem é pena, por não ter sabido fazer escolhas. Nem que fosse a escolha de um hotel com melhor vista (ele diz, a certa altura, que da janela do quarto vê os aviões passar, mas nenhum deles o leva para casa).

Ineficaz é também Truckers & Trackers (na foto), que no fim de Setembro se apresentou em Berlim. É uma peça entre a ficção científica e o onírico que se alimenta de guiões de filmes para criar um dispositivo transdisciplinar. Partindo dos diálogos de Alien e The Thing - filmes marcantes de uma certa corrente fetichista e paranóica que correu o cinema norte-americano no período da guerra fria, e que mostram um homem impotente face a algo que não controlará nunca –, o autor, Mark Johnson, mas sobretudo o actor Neal Wach, querem fazer crer que na combinação entre vídeo, som e corpo poderá residir um discurso sobre a contaminação. E que essa contaminação servirá, depois, para uma reflexão sobre o egoísmo, a sobrevivência e a desesperança.

Para lá do burlesco de ver o mesmo actor a metamorfosear a voz e as expressões, em estreito diálogo com a manipulação live feita por Eric Shefter, o espectáculo revela-se morno e nada psicológico. A frieza das acções (só vemos “as cabeças” do actor no vídeo e, ao fundo, dentro de uma “caixa”, o próprio em frente a um microfone) e o texto repetitivo e sempre de piada pronta, afasta as noções defendidas no programa: histeria, paranóia, confrontação ou fobia. Existe antes um tremendo tédio, como se assistíssemos a um filme de série B onde os cenários são de cartão e as naves espaciais penduradas por fios.

Dead Set #2 (na foto; ver blog do projecto), que teve a sua estreia mundial em Berlim no fim de Setembro e na próxima semana se apresenta em Paris, também no Festival d’Automne é, dos três espectáculos sobre uma ideia de solidão, o único que, efectivamente parte de uma situação no mínimo ambígua e desafiadora. Ao pegar na bizarra história de dois homens alemães, um que queria comer alguém e outro que queria ser comido, traça uma narrativa em torno da problemática da entrega e da partilha. A história, real e que chocou a Alemanha há um par de anos, é, ainda hoje, motivo de discussão. Ambos os homens escreveram e responderam a anúncios de jornal, eram adultos e conscientes dos seus actos, não havia qualquer intenção de praticar um crime… acontece que comer alguém implica a morte de alguém, que por sua vez é crime punível com prisão. O canibal está, neste momento, preso e de nada lhe servem os constantes apelos e irrefutáveis provas de que o morto queria, de facto, ser comido.

Este fascinante e mórbido pedaço de vida real é filtrado pela parafernal maquinaria tecnológica – vídeo, luzes, som, projectores, câmaras de filmar, microfones, amplificadores, ecrãs móveis translúcidos sobre-expostos, … -, que Caden Manson, usa para ampliar a dimensão de reality show a que as nossas vidas, acredita ele, se sujeitaram. A peça, que é um dos episódios que o encenador criou para uma ideia de “performances modulares, criadas ao longo de um período vasto, em várias cidades […] modificando-se ao longo da tournée e reconfigurando-se de cidade para cidade”, como escreve no programa, é uma ingénua e desajeitada crença na plasticidade de um objecto.

O encenador, que assume a influência de Bob Wilson e trabalha directamente com designers e artistas plásticos, quer com esta permanente combinação de géneros (dança, teatro, vídeo, concerto rock) fazer crer que, ao mesmo tempo que os efeitos visuais e sonoros irão proporcionar não só uma “desmistificação dos meios utilizados, e a denúncia em tempo real das manipulações que essa técnica permite” (Ibidem), a narrativa se irá impor através de uma acutilante confrontação entre o barroco real e a ficção teatral.

O espectáculo é desequilibrado e as interpretações hiper-frágeis (todos eles, quatro rapazes e três raparigas, trocam de personagens permanentemente) não ajudam. Já para não falar do palavroso texto, em jeito de parábola messiânica, que retira, para continuar numa linha canibalesca, a carne à suculenta história.

Em suma, estamos perante projectos que acusam a incapacidade em lidarem com a paradoxal relação entre o vazio (seja ele mais ou menos reflexo da sociedade contemporânea) e os mecanismos que, tendo sido criados para combater esse vazio (hotéis onde não falta nada, acesso a mundos virtuais onde o contacto com estranhos está ao alcance de qualquer desejo) o aprofundam. Em qualquer dos casos, o teatro não serviu de plataforma de reflexão, antes expôs a inconsequência das propostas. E isso é um dos mais permanentes erros da criação contemporânea, que tende a apostar na forma relevando para segundo plano o conteúdo, esquecendo-se que cria uma armadilha difícil de escapar. O que, bem vistas as coisas, é até sintomático de muito do que se passa na sociedade.


[1] As notas sobre este espectáculo reportam-se à sessão que vi no mês de Março 2005, em Londres.

Texto escrito com o apoio do Programa de Apoio à Dança da Fundação Calouste Gulbenkian, Goethe Institut e Robert Cimetta Fund. A viagem a Londres teve o apoio da produtora Susana Albuquerque.
Fotografias de (de cima para baixo): Lillian Szokody, Katrin Schoff e Caden Manson

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