sábado, junho 17, 2006

Abordagens ao Alkantara (XII): Tragedia Endogonidia br#4 bruxelles/ brussel

Crítica de teatro

Tragedia Endogonidia br#4 bruxelles/ brussel
Romeo Castelluci/Socìetas Raffaello Sanzio

Centro Cultural de Belém, 14 de Junho, 21h
Sala cheia


Carnaval

por Pedro Manuel

O projecto Tragedia Endogonidia é um ciclo de espectáculos encenados por Romeo Castellucci caracterizados duplamente pela noção de tragédia e endogonídias. Esta noção refere-se a seres vivos hermafroditas cuja reprodução solitária permite uma continuidade sem fim, e determinou a dramaturgia dos espectáculos e as condições de produção, re-criando o conceito em onze cidades europeias e integrando elementos de cada cidade. O episódio apresentado no CCB foi o quarto, criado em Bruxelas, em 2003. Já a noção de tragédia procura afastar-se do seu entendimento comum enquanto género dramático da Grécia Antiga. O que se procura é desenvolver uma noção de trágico. E em Tragedia Endogonidia br#4 essa noção é desenvolvida através de modos comuns à forma trágica grega, sobretudo pela utilização de violência no contexto de relações comunitárias e políticas.

Mas, a esta abordagem, junta-se em paralelo uma reflexão sobre a passagem do tempo e sobre o corpo, isto é, sobre o ciclo da vida: nascimento, crescimento e envelhecimento. E no contexto da tragédia e, sobretudo, da função do trágico, esse crescimento político implica uma educação. E a educação permite articular, ainda hoje, o tema da morte, constante no sentimento trágico, ligado a um sentido comunitário e político. Ao retomar essa ligação Tragedia Endogonidia br#4 retoma também o sentido religioso (re-ligare), de re-ligação de um plano físico e individual com o plano civil e colectivo.

Existe neste espectáculo – como em todos os episódios do ciclo - um poderoso investimento na encenação do visual, em quadros separados pelo abrir e fechar do pano de boca. As imagens são compostas com precisão fotográfica, simétrica, cinematográfica, e a movimentação dos intérpretes é orientada em função da composição visual dos quadros. Deste modo, trata-se de um espectáculo imbuído de um forte sentido ritual, onde a imagem e a acção se impõe à verbalização, reduzida a murmúrios e textos com grafias desconhecidas, mas que remetem para o contexto místico. É sobretudo um teatro visual, habitado por personagens mudas que cumprem acções tão determinadas que se tornam rituais, repetíveis e significantes. E uma vez que se trata de composição, não se procura criar ilusão de personagens e narrativa causal, mas encenações de rituais, metáforas e imagens.

Exemplo disso é a cena central do espectáculo que inicia com a entrada de um velho vestido de biquini (numa inversão da sua condição de homem e velho) que veste um figurino que se assemelha ao de um religioso israelita para, sobre esses dois figurinos, vestir ainda a farda de um agente da autoridade. Depois entram mais três agentes da autoridade (vestidos com uniformes da portuguesa PSP). Um deles despe-se e vai sendo espancado pelos outros dois numa cena que pretendia encenar essa educação do trágico, a educação pelo medo e pela violência da dor, mas que acaba por se tornar quase risível, pela falta de envolvimento ritual que podia estabelecer. Por alguma razão, a violência era obscena (ob-skene: fora de cena) na tragédia e a violência das mortes e das batalhas nunca eram vistas. Se a composição visual do espectáculo é irrepreensível e forte, já a encenação das acções introduz quebras de continuidade. Por fim, coberto de tinta vermelha que os polícias vão despejando sobre o corpo do outro – e que reforça esse carácter alegórico -, o corpo é levado para junto de duas tábuas da lei, como as de Moisés, e a lei é escrita a sangue. A leitura simples e óbvia.

Mas existe uma linha dramatúrgica em Tragedia Endogonidia br#4 que permite articular a sucessão de quadros. Mais do que a educação do trágico, é a tragédia do tempo, da passagem do tempo que é encenada desde a presença de um bebé no princípio do espectáculo, passando pela sua educação civil, até à cena final, em que um velho mirra na sua cama de hospital, o seu corpo tornando-se plano, esvaziando pelo tempo, numa excelente encenação visual da morte.

Mas se o tempo pode ser tido com um dos temas dominantes do espectáculo, a sua curta duração não deixa de parecer uma ironia, quando a exploração dos dispositivos visuais e das acções permitiam a instauração de um sentimento trágico. A presença das figuras fantásticas, monstruosas, desproporcionais, a presença de um elenco invulgar, com idades tão distintas, poderiam criar um verdadeiro deslocamento do quotidiano, não ficcional mas sensível. A duração das cenas era um elemento gerido com segurança pelos intérpretes, mas a totalidade das cenas não tinham a extensão para projectar a dimensão visual do espectáculo. Deste modo, sem atingir um sentimento trágico, Tragedia Endogonidia br#4 concentra-se na criação de um forte acontecimento de imagens que tematizam temas trágicos como a educação pela dor e a passagem do tempo.


Contexto:

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