Crítica de teatro
Quartett
De Heiner Müller
Encenação de Robert Wilson
Com Isabelle Huppert e Ariel Garcia Valdés
Ódeon – Thèâtre de l’Europe, Paris
18 Novembro 2006, 20h30
Lotação Esgotada
Jogo de enganos
Vem tudo explicado no programa para que não existam dúvidas: «Eu nunca falo de interpretação. O meu trabalho é formal. Eu dou indicações formais. Em 35 ou 38 anos de trabalho não houve uma única vez em que tivesse dito a um actor o que deveria pensar em termos de texto, de sentimento, de emoção. É a minha forma de explorar, de procurar, de ter outras ideias. Se as colocamos em cena é para ver o que é o espectáculo, e não porque sabemos previamente o que são. Se já sabemos, o melhor é não fazermos nada. Eu trabalho sobre os gestos. É possível que os nossos corpos se mexam mais depressa que os nossos pensamentos. É isso que me interessa: produzir experiências com os corpos nos espaços, experiências que possam interagir com as palavras de Heiner Müller, mas que não se antecipam, explicam ou resumem». É assim que Robert Wilson, esteta da pose e da avant-guarde cénica se refere ao seu método de trabalho, mais do que reconhecível na recente re-encenação de «Quartett», em cena, até 02 de Dezembro, no Ódeon – Thèâtre de l’Europe, em Paris, no âmbito do 35º Festival d’Automne.
Re-encenação porque esta é a segunda vez que Wilson concebe um invólucro para as palavras negras e desesperadas de Müller. A primeira, em 1988, foi feita em inglês, estreou em Massachusetts, nos Estados Unidos, e tinha a coreógrafa Lucinda Childs, mais do que cúmplice de Wilson, no papel de Madame de Merteuil, que agora cabe à actriz francesa Isabelle Huppert. Nesta, porque em francês, devolve-se ao texto a aproximação amarga que Jean Jourdheuil e Béatrice Perregaux assinaram em 1982 deste esventrar das almas, dos corpos e dos desejos que Müller resgatara dois anos antes do clássico «Ligações Perigosas», de Chordelos de Laclos. Mas nem por isso de maneira diferente, como afirma Wilson no mesmo programa: «mais de dez anos depois é preciso recrear o trabalho». Ou seja, dentro da fórmula e do formato, o mesmo espectáculo, um novo espectáculo. Um exercício de dura resistência, que afasta mais do que aproxima e que se recusa mais do que emociona. E no entanto é possível ver em «Quartett» uma leitura provavelmente próxima do que desejaria Heiner Müller, que escolheu Wilson como aquele que melhor sabia interpretar os seus textos, «porque lhe dás espaço e porque tu tens humor», confessou-lhe.
O desenho de luzes – como sempre em Wilson um espectáculo individual -, bem como o cenário são recuperados da encenação original, ao passo que os figurinos sofrem depurações que os tornam ainda mais trágicos. É ainda recuperada a ideia de transformar este quarteto num quinteto, «parce que». Se às duas figuras principais, Merteuil e Valmont, interpretado por Ariel Garcia Valdés, actor-fétiche do Ódeon, se acrescentam corpos-duplos, mais novos e mais soltos, que se desdobram em fantasias masoquistas do decadente par, uma outra, mais estranha, vagueia pelo palco. Müller perguntou a Wilson quem era aquele velho meio louco, meio voyeur. Wilson respondeu que era Müller. Ou não. «Não necessariamente ou somente. Cabe ao público ver. Não há uma identidade específica atribuída a essa figura. Trata-se de transgredir a regra. As regras são feitas para isso. Primeiro estabelecem-se, depois transgridem-se», diz o encenador.
É neste jogo de enganos, tão caro a Müller e a este texto, que Robert Wilson sustenta um espectáculo feito de pequenas e subtis manipulações. Ao excesso transgressor de «Quartett», pela sua violência e requinte verbal – aqui repetido, sincopado e melódico (do hip-hop à ópera) -, o encenador contrapõe um gesto afectado e contraído que, sendo marca do seu trabalho, ganha aqui um outro espaço: o da imaginação. Os actores movem-se, literalmente, na velocidade da luz, seguindo-a, dela partindo ou nela mergulhando – e são tantas as cores, tão mais fatais quanto as suas intenções. A constante troca de papéis entre os velhos amantes, que assumem todas as outras personagens criadas por Laclos no romance original, não se sujeita ao habitual transvestimento, antes permanecendo presas na tragédia dos seus corpos insatisfeitos. Para permanecerem em combate Merteuil e Valmont, vistos por Wilson, não precisam de acessórios, tão-somente de argúcia e retórica. Os adereços, o contacto físico e o confronto directo ficam guardados para aquele outro par, ele viril e ela menina. As mudanças produzem-se apenas nas vozes que se alteram entre o mecânico, o grotesco, o sedutor e o displicente, num trabalho de som que fica como o melhor do espectáculo. Umas vezes sobrepostas, outras em surdina. Umas vezes ocas, ampliando o vazio que nelas existe, outras vezes mortais, provocando a reacção ferida. Umas vezes animais, outras humanamente cruas. Umas vezes negras, outras vezes cómicas. Sobretudo, e numa palavra, dementes.
Reduz-se assim o drama ao essencial: o confronto entre as duas figuras que, cegas pelo desejo (consumadíssimo ou inacessível é coisa que pouco importa), se tornam ridículas. Como o amor, dir-se-ia. Como a tragédia, diz o encenador: «Heiner nunca viu a sua escrita tratada de um modo cómico e, segundo ele, o público que ria perante o texto, tornava-o ainda mais terrível». Porque esta perturbada relação, de contornos sádicos e grotescos (há algemas e correntes, cintos à volta do pescoço, saltos altos e crucificações) é, mais do que tudo, uma farsa exposta e fetichista. Um jogo de bufões, expressão usada por Valmont para se caracterizar, feito de mutações visíveis que tem nas cenas da ópera o cerne da acção. É entre telas suspensas e olhares que não se cruzam, mas se vêem reflectidos nas mãos que fazem as vezes de espelhos, que Merteuil e Valmont se enganam e deixam enganar. É nesse jogo de sedução mortal jogado nos camarotes do teatro que toda a ilusão toma sentido. E no fim, quando Valmont reconhece que perdeu (e não o desejaria ele?) e se retira para agonizar com o veneno que ela lhe deu, percebemos que desde cedo se traçou o destino daqueles dois corpos. «Quando a morte se transforma num espectáculo», ou num simples jogo cuja razão já se perdeu, pouco mais lhes importa.
É tudo muito frio, muito distante, muito solitário. As palavras finais, bem como a última imagem são disso sinal. Uma Merteuil sozinha por escolha, e por uma Huppert que aguenta o espectáculo sem nunca ceder um momento que seja ao desencanto e crueza que a encenação acentua, caminha ao longo do palco e em contra-luz, em direcção à imensa tela branca, repete incansavelmente «Mort d’une putain. Á present nous sommes seules. Cancer. Mon amour.» E fá-lo num outro tempo, já post-mortem, tão contrário à velocidade com que provocou Valmont no início da peça. Ele já lá não está. Ela também não.
O You Tube, esse poço virtual, guarda quatro extractos, naturalmente clandestinos, da peça. A ver, malgré ils mêmes, aqui, aqui, aqui e aqui.
Quartett
De Heiner Müller
Encenação de Robert Wilson
Com Isabelle Huppert e Ariel Garcia Valdés
Ódeon – Thèâtre de l’Europe, Paris
18 Novembro 2006, 20h30
Lotação Esgotada
Jogo de enganos
Vem tudo explicado no programa para que não existam dúvidas: «Eu nunca falo de interpretação. O meu trabalho é formal. Eu dou indicações formais. Em 35 ou 38 anos de trabalho não houve uma única vez em que tivesse dito a um actor o que deveria pensar em termos de texto, de sentimento, de emoção. É a minha forma de explorar, de procurar, de ter outras ideias. Se as colocamos em cena é para ver o que é o espectáculo, e não porque sabemos previamente o que são. Se já sabemos, o melhor é não fazermos nada. Eu trabalho sobre os gestos. É possível que os nossos corpos se mexam mais depressa que os nossos pensamentos. É isso que me interessa: produzir experiências com os corpos nos espaços, experiências que possam interagir com as palavras de Heiner Müller, mas que não se antecipam, explicam ou resumem». É assim que Robert Wilson, esteta da pose e da avant-guarde cénica se refere ao seu método de trabalho, mais do que reconhecível na recente re-encenação de «Quartett», em cena, até 02 de Dezembro, no Ódeon – Thèâtre de l’Europe, em Paris, no âmbito do 35º Festival d’Automne.
Re-encenação porque esta é a segunda vez que Wilson concebe um invólucro para as palavras negras e desesperadas de Müller. A primeira, em 1988, foi feita em inglês, estreou em Massachusetts, nos Estados Unidos, e tinha a coreógrafa Lucinda Childs, mais do que cúmplice de Wilson, no papel de Madame de Merteuil, que agora cabe à actriz francesa Isabelle Huppert. Nesta, porque em francês, devolve-se ao texto a aproximação amarga que Jean Jourdheuil e Béatrice Perregaux assinaram em 1982 deste esventrar das almas, dos corpos e dos desejos que Müller resgatara dois anos antes do clássico «Ligações Perigosas», de Chordelos de Laclos. Mas nem por isso de maneira diferente, como afirma Wilson no mesmo programa: «mais de dez anos depois é preciso recrear o trabalho». Ou seja, dentro da fórmula e do formato, o mesmo espectáculo, um novo espectáculo. Um exercício de dura resistência, que afasta mais do que aproxima e que se recusa mais do que emociona. E no entanto é possível ver em «Quartett» uma leitura provavelmente próxima do que desejaria Heiner Müller, que escolheu Wilson como aquele que melhor sabia interpretar os seus textos, «porque lhe dás espaço e porque tu tens humor», confessou-lhe.
O desenho de luzes – como sempre em Wilson um espectáculo individual -, bem como o cenário são recuperados da encenação original, ao passo que os figurinos sofrem depurações que os tornam ainda mais trágicos. É ainda recuperada a ideia de transformar este quarteto num quinteto, «parce que». Se às duas figuras principais, Merteuil e Valmont, interpretado por Ariel Garcia Valdés, actor-fétiche do Ódeon, se acrescentam corpos-duplos, mais novos e mais soltos, que se desdobram em fantasias masoquistas do decadente par, uma outra, mais estranha, vagueia pelo palco. Müller perguntou a Wilson quem era aquele velho meio louco, meio voyeur. Wilson respondeu que era Müller. Ou não. «Não necessariamente ou somente. Cabe ao público ver. Não há uma identidade específica atribuída a essa figura. Trata-se de transgredir a regra. As regras são feitas para isso. Primeiro estabelecem-se, depois transgridem-se», diz o encenador.
É neste jogo de enganos, tão caro a Müller e a este texto, que Robert Wilson sustenta um espectáculo feito de pequenas e subtis manipulações. Ao excesso transgressor de «Quartett», pela sua violência e requinte verbal – aqui repetido, sincopado e melódico (do hip-hop à ópera) -, o encenador contrapõe um gesto afectado e contraído que, sendo marca do seu trabalho, ganha aqui um outro espaço: o da imaginação. Os actores movem-se, literalmente, na velocidade da luz, seguindo-a, dela partindo ou nela mergulhando – e são tantas as cores, tão mais fatais quanto as suas intenções. A constante troca de papéis entre os velhos amantes, que assumem todas as outras personagens criadas por Laclos no romance original, não se sujeita ao habitual transvestimento, antes permanecendo presas na tragédia dos seus corpos insatisfeitos. Para permanecerem em combate Merteuil e Valmont, vistos por Wilson, não precisam de acessórios, tão-somente de argúcia e retórica. Os adereços, o contacto físico e o confronto directo ficam guardados para aquele outro par, ele viril e ela menina. As mudanças produzem-se apenas nas vozes que se alteram entre o mecânico, o grotesco, o sedutor e o displicente, num trabalho de som que fica como o melhor do espectáculo. Umas vezes sobrepostas, outras em surdina. Umas vezes ocas, ampliando o vazio que nelas existe, outras vezes mortais, provocando a reacção ferida. Umas vezes animais, outras humanamente cruas. Umas vezes negras, outras vezes cómicas. Sobretudo, e numa palavra, dementes.
Reduz-se assim o drama ao essencial: o confronto entre as duas figuras que, cegas pelo desejo (consumadíssimo ou inacessível é coisa que pouco importa), se tornam ridículas. Como o amor, dir-se-ia. Como a tragédia, diz o encenador: «Heiner nunca viu a sua escrita tratada de um modo cómico e, segundo ele, o público que ria perante o texto, tornava-o ainda mais terrível». Porque esta perturbada relação, de contornos sádicos e grotescos (há algemas e correntes, cintos à volta do pescoço, saltos altos e crucificações) é, mais do que tudo, uma farsa exposta e fetichista. Um jogo de bufões, expressão usada por Valmont para se caracterizar, feito de mutações visíveis que tem nas cenas da ópera o cerne da acção. É entre telas suspensas e olhares que não se cruzam, mas se vêem reflectidos nas mãos que fazem as vezes de espelhos, que Merteuil e Valmont se enganam e deixam enganar. É nesse jogo de sedução mortal jogado nos camarotes do teatro que toda a ilusão toma sentido. E no fim, quando Valmont reconhece que perdeu (e não o desejaria ele?) e se retira para agonizar com o veneno que ela lhe deu, percebemos que desde cedo se traçou o destino daqueles dois corpos. «Quando a morte se transforma num espectáculo», ou num simples jogo cuja razão já se perdeu, pouco mais lhes importa.
É tudo muito frio, muito distante, muito solitário. As palavras finais, bem como a última imagem são disso sinal. Uma Merteuil sozinha por escolha, e por uma Huppert que aguenta o espectáculo sem nunca ceder um momento que seja ao desencanto e crueza que a encenação acentua, caminha ao longo do palco e em contra-luz, em direcção à imensa tela branca, repete incansavelmente «Mort d’une putain. Á present nous sommes seules. Cancer. Mon amour.» E fá-lo num outro tempo, já post-mortem, tão contrário à velocidade com que provocou Valmont no início da peça. Ele já lá não está. Ela também não.
O You Tube, esse poço virtual, guarda quatro extractos, naturalmente clandestinos, da peça. A ver, malgré ils mêmes, aqui, aqui, aqui e aqui.
Ler texto Quartett (em inglês), programa do espectáculo e dossier de estudo. Ver fotografias da versão de 1988 de Quartett. Todas as citações, excepto as que estão em itálico que são diálogos da peça, foram retiradas do programa do espectáculo. Fotografias do espectáculo incluídas neste texto da autoria de Pascal Victor (direitos reservados). De cima para baixo: Isabelle Huppert; Isabelle Huppert e Racher Eberhart.
Este texto contou com o apoio do Programa de Apoio à Dança do Serviço de Música da Fundação Calouste Gulbenkian.
Ler, neste blog, outros textos publicados no dossier dedicado ao 35º Festival d'Autome á Paris
Les Histrions, de Marion Aubert/Richard Mitou (teatro), Dead Set #2, de Caden Mason (teatro), Showcase, de Richard Maxwell (teatro), I wouldn't be seen dead in that, de Steven Cohen & Elu (dança), Até que deus é destrúído pelo extremo exercício da beleza, Vera Mantero e ainda entrevista a Marie Collin, programadora de teatro e dança do festival. A seguir: Romeo Casteluci, William Forsythe, Joel Joänneau, Thomas Hauer, Bruno Geslin e Boris Charmatz.
1 comentário:
Vi o oiginal num VHS manhoso, mas ainda assim acho que o prefiro. Só vi os excertos deste no YouTube e pois que dizer. Os truques repetem-se e começam a cansar (sobre desce de cortinas, som, 5 projectores para iluminar um corpo...). Mas a dicção da Huppert é por demais e só ela deve valer este remake.
(Hip-hop?, passou-se. Venham de lá esses video-portraits)
Enviar um comentário