terça-feira, maio 16, 2006

Miguel, o iconoclasta


Miguel Bonneville não gosta de contextualizações, formalismos, categorias ou finitudes. Também não gosta de modas, referências, estagnações ou limites. E acredita mais num percurso feito de recusas que num de comparações e tentativas de imitação. Tem 21 anos, veio do Porto para Lisboa há três e faz performances desde que acabou o curso da Academia Contemporânea do Espectáculo, em 2003. Ele quase gostaria de chamar acontecimentos ao que faz, mas isso seria dar aos objectos que cria uma importância maior que aquela que lhes reconhece: extensões do ‘eu criador’ em busca do que há para lá de si. Mas sempre, e sobretudo, a partir daquilo que conhece melhor: ele próprio.

Sabe que tem muitas coisas a dizer (talvez até o mesmo dito pelo filtro da maturidade e do tempo), mas assume que só as diz quando as coisas o forçam a isso. E só fala do que acha verdadeiro, recusando-se a aceitar que um actor de 18 anos possa fazer de padre ou operário. Não acredita na distanciação ou concentração na personagem, à la Brecht e, por isso, uma das suas primeiras apresentações, Teatro (Maus Hábitos, Novembro 2003), queria romper com as convenções teatrais e as regras académicas e ‘certinhas’ que lhe tinham passado na escola como verdades absolutas.

Miguel Bonneville fala num "teatro de verdade" a partir de um ponto de vista pessoal e instantâneo (das energias entre público e performer), recusando masoquismos literais em nome de um auto-conhecimento (como defendem certas escolas e teorias). E propõe cruzamentos vários (artes plásticas, performativas, música ...) para descobrir até o que lhe é desconfortável. Em nome de uma proposta de intervenção artística que se preste à evolução e aprendizagem constantes, prefere testar os seus limites de resistência e compreensão.

Acredita que os trabalhos são mais do que uma extensão dos seus dias. As performances têm uma vida própria e também funcionam numa espécie de espelho para o que sente (talvez por isso se apresente quase sempre sozinho). Sem que isso possa significar um planeamento a longo prazo de um discurso individual sobre a arte e a criação, sabe que, inevitavelmente, o está a fazer mas prefere perceber o porquê, até como proposta de organização discursiva. E fala de um todo criativo e da necessidade de olhar para os seus trabalhos como ‘coisas’ para preencher uma mala, mesmo para arrumar a um canto.

Mesmo as linhas que possam ser encontradas no seu ainda breve percurso, existem porque o performer busca uma presença "por inteiro". Ou seja, não são forçadas. Estão , o mais perto possível de si. Quando lhe falam de uma forte carga relacionada com as questões do género, da utilização da autobiografia como matéria de trabalho e do perigo da confrontação com o público, Bonneville responde que não saberia fazer de outro modo. Recusa a diferença e assume o ‘conforto’ de não se contrariar.

Nas questões de género (e sobretudo as características sexuais), as propostas podem sujeitar-se a observações relacionadas com o assumir de certas verdades que para si fazem sentido, mas não estão preocupadas com o desenvolvimento de um discurso que possa servir os outros. Defende, por exemplo, a inexistência de um ponto de vista masculino ou feminino na construção de um discurso criativo. A utilização não convencional de imagens masculinas e femininas (também elas não convencionais) resulta de uma necessidade de enquadramento que o espectador tende a fazer e que tanto pode permitir uma leitura semiótica sobre os objectos artísticos, como denunciar uma total ausência de sentido e razão. É claro que podemos dizer que há questões que ultrapassam o próprio criador e se prendem mais com os efeitos do objecto no espectador, mas o seu corpo é antes um receptáculo das questões que quer tratar. Manipulação de dogmas incluída.

Já no caso da utilização da autobiografia como matéria criativa, os solos são, por defeito, vistos como propostas sobre o eu. Mas, se tentarmos encontrar um referente no contexto criativo nacional, são poucos os exemplos de criadores que apostam de forma permanente numa exposição pessoal (menos ainda em solos) e a partir dela entrem em diálogo com os outros. Casos mais recentes remetem para o campo das autobiografias ficcionadas: Cláudia Dias (Visita Guiada, 2005), Rogério Nuno Costa (Saudades do tempo em que dizia texto, 2003 e a trilogia Vou a tua casa, 2003-2006), Carlota Lagido (Self, 2004, co-interpretado por Bonneville), Nelson Guerreiro (Guerrero Notebook, 2003), Tânia Carvalho (Um privilégio característico, 2002), Tiago Guedes (Um Solo, 2002), André Murraças (As peças amorosas, 2001 e As palavras são o meu negócio/Words are my business, 2001) e Luís Castro (a trilogia Moçamor/SalveSave/Portucalidades, 1999-2001).

Em Miguel Bonneville a ‘verdade’ aparece de forma assumida, sabendo, é claro, que qualquer verdade posta em cena será sempre interpretada como mentira. Em Daddy Daddy (Eira 33, Março 2005) – talvez a proposta mais perto de uma autobiografia – trabalhava uma só questão (a relação com o seu pai), estabelecendo ligações que queriam ser mais do que um resolver edipiano. Esta necessidade de ultrapassagem do tema, não pretendia tornar o discurso acessível (e permitir a identificação do espectador), mas antes, partindo de um tema concreto, observar a forma como o indivíduo se insere no meio. E o discurso pessoal, ciente da violência da exposição, é, também, uma forma de se proteger da própria vida. Ao se assumir como performer as criações vão permitir-lhe a clarificação de determinadas opções pessoais. Portanto utiliza-se da forma artística da autobiografia para, através dos objectos, poder continuar a crescer.

Por isso dá tanta importância ao processo criativo e ao modo de apresentação dos espectáculos. Trabalhando-os por acumulação ou explosão, as propostas acabam sempre por funcionar como momentos que também reflectem a sua forma de estar na vida ou o que vai pensando. Quando já não aguenta a estranheza que lhe causa o desconhecido (as questões que o levam a criar), explode para cima do computador. Depois, o alívio (o espectáculo). Mas tudo embrulhado numa relação de amor-ódio com os objectos, um pouco como se criasse para se livrar deles. O que vemos nos seus ‘happenings’ é o resultado de um trabalho de pesquisa e maturação (feito em cadernos com letra pequena e desenhos), em que o criador se forçou a uma razão. Aqui o ‘porque sim’ prende-se mais com a justificação e a fundamentação do que com um prazer momentâneo. Porque esse virá depois, quando, pegando na base que definiu se for "divertir" no meio do público, num permanente jogo de sedução, pleno de tensões e ambiguidades.

Na sua primeira apresentação (Strip Me, Dress Me, Maus Hábitos, Outubro 2003), dispunha-se no meio do público, exercendo um jogo de sedução sustentado na exposição directa e em confronto. Permitia-se a um trabalho de presença e corpo, oferecendo-se ao espectador. Com uma meia a fazer de máscara, o performer dava um doce a quem o ajudasse a despir, quebrando não só um efeito de distância e fazendo do objecto um acto de partilha. Os que recusavam também eram parte do despir. A apresentação terminava num processo de metamorfose grotesca, com os espectadores implicados nesse resultado.

Bonneville defende a necessidade de levar ao limite a ideia de que nenhum espectáculo é igual ao da noite anterior. Logo, desenvolve projectos para quem o vem ver no dia da apresentação e fala de uma liberdade emocional e interpretativa que deve existir no acto de se apresentar ao público, apostando em fazer poucas apresentações. Às vezes só uma, como é o caso do projecto Montras, algo mais fechado e calmo (duas delas interpretadas por outros), em que partindo dos 13 livros que aparecem no filme «The Pillow Book», de Peter Greenaway, desenvolve uma proposta de fixação de uma imagem e de um conceito.

A mais valia do discurso deste novíssimo performer prende-se com um potencial denunciado num conjunto de intervenções performáticas que se relacionam com um sentido de prazer, de partilha e entrega; onde se sente um conforto com o desafio proposto pela manipulação das referências, e até de um certo trabalho ao nível da psicanálise. É, pelo menos, isso que defende Francisco Camacho, coreógrafo e um dos responsáveis pela Eira 33, de cujo núcleo artístico Miguel Bonneville é membro. E pelo facto de trabalhar numa base filosófica sem resposta certa, podemos considerar que, para já, fica livre de outras classificações que não as dadas por si mesmo em praticamente todos os seus espectáculos: Miguel Bonneville, 21 anos, "com espaço para tudo".

Críticas às performances de Miguel Bonneville publicadas neste blog:

Daddy Daddy, Março 2005
Quem sou#2
Minnie Mouse/Concepto House, Novembro 2005

[texto publicado na revista Número - primavera 2006]

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