sábado, novembro 29, 2003

Self made show

Marcel Duchamp, afinal, contribui em quê para a arte?
A pergunta/afirmação provocatória foi, ontem, lançada em off (portanto protegida dos olhares espantados do público) por Rogério Nuno Costa, na estreia do seu novo espectáculo Saudades Do Tempo Em Que Se Dizia Texto (Teatro Taborda, 21h30; reposição, em Lisboa, no Hospital Miguel Bombarda, em Janeiro).
A exposição da sua persona é feita a partir de uma imagem por ele projectada/conduzida. Ou seja, "o" Rogério Nuno Costa que "o" Rogério Nuno Costa nos apresenta é uma personagem a fazer as vezes da verdade que faz as vezes de personagem. O melhor de si. O "exposto" parte do negro, o seco, o amargurado, o triste, o preocupado, o desencontrado, o confuso... para, mais ou menos a meio, se apresentar como sendo "um príncipe que vive alegre na sua liberdade". Mas qual Rogério?

"Eu" nu. "Eu" vestido. "Eu" a rir. "Eu" a chorar. "Eu" parado. "Eu" a andar. "Eu" a responder. "Eu" a perguntar. "Eu". "Eu". "Eu"... E, no entanto, não é um espectáculo feito do "eu", mas antes de se ser "eu". De se ser o Rogério Nuno Costa. O que sou eu, pergunta (-nos) ele? "Tenho cara de relógio?", "de quem amua?". Sou mais eu se for visto por ti ou existo porque tu estás em mim? Convoca Sartre e Descartes mas não ousa a alteridade. Porque o Rogério Nuno Costa não está à procura de um outro em si. Está à procura de si. De si em si. É sobre o vocês em mim, sobre o que deixamos nos outros e eles em nós. E é, também, sobre a forma como crescemos ao conhecer outras pessoas, em forma de agradecimento. Em jeito de pergunta: e depois de vocês, depois de tudo, que eu é que existe?

Disse-lho já. No seu processo o Rogério é tanto mais honesto quanto maior for a "dor" de chegar ao produto final. Porque na fragilidade desse resultado - dependente da reacção do público - se encontram todas as razões de se ter iniciado o processo. O que ele pretendia era voltar a 1978, ao ano sem memória. E quando não há memória o caminho que se faz é o coleccionar "memorabilia" e perceber de que forma nos relacionamos com ela. Que laços se estabelecem entre o que existia antes de nós e a apropriação que dessas coisas fazemos? Que espécie de relação/importância têm, para nós, as circunstâncias - no seu sentido mais lato - que rodearam o nosso nascimento?

"Eu" tenho 3 anos. "Eu" tenho 5 anos. "Eu" tenho 10 anos. "Eu" tenho 25 anos. E agora? É um balanço? Não. Um ponto de chegada? Talvez. Um reinicio? Só se tiver acontecido uma total apreensão do que se passou anteriormente. O "Rogério" não cansa, mas tal acontece porque quem o viu estava ganho à partida. Sabia de uma ou outra coisa, partilhava com ele momentos anteriores e, sobretudo, porque também faz parte da vida dele. Pode, por isso, rir-se de si, porque o "Rogério" começou primeiro. E se quem provoca é o primeiro a rir, permite que se deixem iludir os outros pois permitem recuperar - ao "exposto" - o último lugar. O que é daqueles que riem melhor. Por isso, não se pode achar que o "Rogério" não ri. Ainda que atrás desse riso possa estar uma profunda tristeza; uma imensa pergunta: riem de quê se riem de mim? E eu?

A prova de fogo será quando "ele" falar para a massa anónima. E aí, atrás do riso estará o receio que esconde o riso, que esconde... Camada após camada, descascando-o/se como a uma cebola, ao encontro do rogério (assim mesmo, em letra pequena) que se apresenta como um miúdo na festa de natal à família, que a convida a participar, que a desafia a despir-se das poses, das personagens, dos preconceitos... para reencontrar a criança. Ou melhor, para encontrar o "grau zero de mim". Por isso, se torna mais difícil a aposta, agora que os amigos e conhecidos se divertiram tanto. E quando for a vez dos outros?

Podemos invocar uma tradição de stand-up comedy (termo tão em voga que qualquer dia será necessária de uma definição melhor), mas julgo antes tratar-se de um discurso na primeira pessoa que só encanta e diverte porque através da desconstrução de uma seriedade - essa que carregamos todos os dias - é que se encontra o genuíno prazer. O segredo deste álbum - deste "catálogo" desejado na voz-off inicial - é o segredo que já existe no subconsciente do autor. Ser-se é mais fácil quando não se pensa nisso. Mas não há quem não queira saber quem é. Poucos são os que se atrevem a fazê-lo. Menos aqueles que o fazem como o Rogério.

Talvez Rogério Nuno Costa não fale de um "ajuste de contas" com o passado, mas a primeira ideia que surge é um "baralhar e voltar a dar" para obter a palavra final. Mas, nem isso é constante, porque a nudez com que se apresenta e a honestidade e franqueza com que se expõe desarma-nos. Não porque não nos sintamos impelidos a viajar na nossa própria história, mas principalmente porque sabemos que ao iniciarmos a viagem, no regresso teremos que encontrar-nos melhor.

Vi-o depois, ao Rogério, cansado e com dúvidas. Mergulhei na sua generosidade e agradeci-lhe por tudo. Talvez, também, por se Ter mostrado. Mas, e principalmente, por nos fazer acreditar que é impossível definirmo-nos. Ainda mais se formos procurar razões ao nebuloso momento da criação.

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