“As artes e os seus mais diversos locais de apresentação – tal como a estrutura de um prédio, a ordenação de uma cidade, as vias de comunicação –, são lugares e habitações de pensamento que revelam gestos, princípios políticos e filosóficos, compromissos, marcas de identidade, posições territoriais, desafios e acções que incitam, eventualmente, a outras. Talvez seja também essa a felicidade que se pode encontrar num acontecimento artístico, a de levar para casa uma enorme vontade de acção, nem que seja para, quando lá chegarmos, fazer a cama e logo de seguida nos deitarmos nela.”
Nelson Guerreiro
Nelson Guerreiro
ENTRADA. Convoco as palavras do próprio, pois é do próprio, grosso modo, que se fala, quando aquilo de que se fala é o trabalho que Nelson Guerreiro (n. Lisboa, 1974), tem desenvolvido como criador desde há sensivelmente quatro anos. Trata-se de um dos poucos (muito poucos) criadores portugueses que dispensa todo e qualquer tipo de rotulação disciplinar, à qual escapam até aqueles portos seguros que são a “formação académica” (neste caso, em Comunicação Cultural) ou a “formação e experiência profissionais” (pois não vem da dança, não vem do teatro, não vem da performance, não vem das artes visuais, não é encenador nem coreógrafo, e não é escritor). É o quê, então? Um corpo sensível à sua ocupação no espaço social; e um corpo que recusa a esquizofrenia de uma espécie de ubiquidade falaciosa (estar em todos os sítios, para não ter que estar em lado nenhum). Leia-se: estar na Escola Superior de Artes e Design das Caldas da Rainha, onde é docente, e estar no processo de criação do espectáculo “Discotheater” do Teatro Praga (a estrear brevemente), é para Nelson Guerreiro um pressuposto de reflexão sobre o seu lugar na produção artística nacional, mais do que uma fatal condição dos tempos modernos. À dificuldade em assinar uma petição (o que é que eu ponho à frente do nome?), contrapõe-se a vontade (leia-se liberdade) em preencher a “lacuna” com o que quiser. A entrada no parque temático “Nelson Guerreiro” implica, logo no momento da compra do bilhete, a evidente recusa de todo e qualquer tipo de esclusividade categorial. O nome deste criador tem sempre à frente uma linha em branco. O que é que nela se escreve e como se escreve nela? Eis algumas pistas:
MONTANHA RUSSA. No texto escrito para o número zero da revista Artinsite (“Em que é que as artes contribuem para a minha felicidade?”, Outubro 2003), supra-citado, Nelson refere as leituras sociológicas de Norbert Elias e de Eric Dunning na obra “Em Busca da Excitação”, feitas ao campo do lazer. Não é por acaso que este criador se assuma, metafórica e simbolicamente, como alguem “formado em espectador”: a vida levou-o até aos espectáculos, que viu “doentiamente” durante 10 anos antes de se poder assumir como criador. Fez do curso de Comunicação Social o pretexto mais-que-perfeito para a investigação aturada no campo que lhe interessava cada vez mais (o das artes), no qual buscava simultaneamente excitação (a um nível digamos que “de lazer”) e inspiração (a um nível digamos que “intelectual”). No final, encontrou na vontade da comunicação e na inevitável importância da co-presença os seus cavalos de batalha. Ele até pode ser o tal “comunicador cultural” que faz a mediação entre as obras e os seus receptores; mas a vontade de escrever e de inscrever o fascínio pela arte no seu quotidiano e no seu imaginário levou-o a subir outros degraus. Uma maturação feita de vertigens várias, que aos 28 anos acabaria por se tornar “pública”.
COMBOIO-FANTASMA. Mais do que géneros performáticos, interessam-lhe os formatos de apresentação. Brinca com eles como quem tenta a cada investida encontrar uma forma totalmente diferente de dizer a mesma coisa, ou transformando a coisa que diz na própria “brincadeira” de ter que a catalogar: experiências-situações (como em “eu e tu, tu e eu”, Festival Danças na Cidade, 2002); conferências-performance (como em “Guerrero Notebook”, CAPITALS, 2003); performances-conferência-jantar (como em “Trás d’Orelha”, Festival A8, 2003); reality-dinner-shows (como em “Copo d’Água”, Festival X, 2004); até investidas na área da dança (“Schreibstück”, com Beatriz Cantinho e Herlander Elias, CAPITALS, 2003); ou no teatro (“Copyright”, com Patrícia da Silva, Espaço do Tempo, 2005). Uma reflexão sobre o fazer artístico que não se atém à questão da subversão da convenção, antes testa a matéria própria da convenção pelo confronto com os contextos onde as peças são apresentadas.
MONTANHA RUSSA. No texto escrito para o número zero da revista Artinsite (“Em que é que as artes contribuem para a minha felicidade?”, Outubro 2003), supra-citado, Nelson refere as leituras sociológicas de Norbert Elias e de Eric Dunning na obra “Em Busca da Excitação”, feitas ao campo do lazer. Não é por acaso que este criador se assuma, metafórica e simbolicamente, como alguem “formado em espectador”: a vida levou-o até aos espectáculos, que viu “doentiamente” durante 10 anos antes de se poder assumir como criador. Fez do curso de Comunicação Social o pretexto mais-que-perfeito para a investigação aturada no campo que lhe interessava cada vez mais (o das artes), no qual buscava simultaneamente excitação (a um nível digamos que “de lazer”) e inspiração (a um nível digamos que “intelectual”). No final, encontrou na vontade da comunicação e na inevitável importância da co-presença os seus cavalos de batalha. Ele até pode ser o tal “comunicador cultural” que faz a mediação entre as obras e os seus receptores; mas a vontade de escrever e de inscrever o fascínio pela arte no seu quotidiano e no seu imaginário levou-o a subir outros degraus. Uma maturação feita de vertigens várias, que aos 28 anos acabaria por se tornar “pública”.
COMBOIO-FANTASMA. Mais do que géneros performáticos, interessam-lhe os formatos de apresentação. Brinca com eles como quem tenta a cada investida encontrar uma forma totalmente diferente de dizer a mesma coisa, ou transformando a coisa que diz na própria “brincadeira” de ter que a catalogar: experiências-situações (como em “eu e tu, tu e eu”, Festival Danças na Cidade, 2002); conferências-performance (como em “Guerrero Notebook”, CAPITALS, 2003); performances-conferência-jantar (como em “Trás d’Orelha”, Festival A8, 2003); reality-dinner-shows (como em “Copo d’Água”, Festival X, 2004); até investidas na área da dança (“Schreibstück”, com Beatriz Cantinho e Herlander Elias, CAPITALS, 2003); ou no teatro (“Copyright”, com Patrícia da Silva, Espaço do Tempo, 2005). Uma reflexão sobre o fazer artístico que não se atém à questão da subversão da convenção, antes testa a matéria própria da convenção pelo confronto com os contextos onde as peças são apresentadas.
CARRINHOS DE CHOQUE. O ponto de partida é a escrita. Não uma escrita introdutória ou meramente processual, mas uma escrita que é já o “trabalho”. E trabalho é sempre, e também, investigação. A “escrita performativa” de Nelson Guerreiro existe num limiar estilístico que deve tanto ao discurso literário quanto ao cénico, não se afastando, porém, de outros campos de acção onde o criador opera, nomeadamente o ensaístico. Esta polivalência acaba por ser sintomática da própria proliferação dos formatos. Mais: propõe-nos um acompanhamento das várias velocidades de escrita (logo, de pensamento) que se espalham pelo seu quotidiano, desde o tempo maturado dos textos que escreve para outras pessoas dizerem, até à nota fugidia escrita à pressa no caderno de notas “Guerrero”, a única capaz de fixar aquele “momento tremendo de felicidade” que é urgente roubar ao pânico do esquecimento. Todo o trabalho autoral de Nelson Guerreiro enforma uma quase-tese sobre o lugar da escrita no quotidiano, sobre aqueles momentos em que nos sentimos iluminados por uma relação estabelecida entre dois elementos exactos no exacto momento em que entramos num elevador (como em “Vaivém – a história verdadeira de um projecto transdisciplinar”, CITEC, 2005). A escrita de Nelson Guerreiro não deve nada a formatações genéricas pré-estabelecidas (luxos de quem recusa a catalogação), por isso a sua eficácia e a sua produtividade potenciais existem num confronto directo com o possível choque da interrupção do real ou com a própria “indisciplina” das palavras.
PIPOCAS & ALGODÃO DOCE. A relação de Nelson Guerreiro com o espectáculo é do tipo “nutricional”. O criador alimenta-se de discursos artísticos (tantos quantos possível), transformando-os no complexo vitamínico que alimenta depois o seu quotidiano (busca da excitação/inspiração), alimentando depois a escrita (performance potencial), para alimentar por fim a performance. E assim se fecha o círculo. Isto tudo seria um tanto ou quanto auto-fágico, não fosse a evidência de que existe, no discurso deste criador, uma preocupação atenta e inteligente para com o lugar e a importância dos objectos artísticos na sociedade contemporânea. Não no sentido da arte resolver os problemas do mundo; antes no sentido de auto-biografar constantemente, e através dos mecanismos comunicacionais mais à mão, a sua própria condição de agente social. É, sem dúvida, dele que se fala quando se fala do trabalho de Nelson Guerreiro. Brinca-se constantemente com o fogo das emoções, numa ficção que é curiosa e perigosa ao mesmo tempo, mas que se encontra protegida pelos mais “modernos” sistemas de segurança performativa. Tal como nos parques de diversões.
SAÍDA. A vida, a escrita e a performance de Nelson Guerreiro estão construídas em cima de perguntas. Brincar aos formatos significa experimentar: conseguir respostas, conseguir novas perguntas, ou abandonar navios perdidos. Nelson Guerreiro procura nos espectáculos algo maior que a própria vida, mas anda sempre na vida à procura daqueles momentos que extravasam o próprio sentido do “espectacular”. Com isto, este criador acaba por colocar os objectos artísticos num patamar sócio-político equivalente ao de outras actividades humanas, onde as ideias de comunicação e de co-presença se encontram igualmente presentes, e onde a busca de uma qualquer felicidade individual pelo confronto com a pluralidade do social se faz pela identificação/projecção. Nelson Guerreiro exige do espectador uma reflexão sobre a(s) forma(s) como hoje se apresentam e consomem espectáculos, num questionamento que ultrapassa a mera qualidade técnico-performativa das propostas (critério ainda tão demasiado premente na validação das coisas que se fazem). Num País onde a cultura performativa ainda se rege por categorizações “modernistas”, e em que praticamente não existe performance (temos coreógrafos com uma visão “performática” da dança e temos encenadores com uma visão “performática” do teatro, pouco mais...), é urgente que se dê a visibilidade justa às obras e aos criadores que, inscrevendo-se num território que abraça de forma descomplexada as condições da pós-modernidade, fazem a crítica mais do que necessária às formas e às fórmulas de produção artística. Nelson Guerreiro é um desses exemplos.
Texto: Rogério Nuno Costa
Fotografia: Nelson Guerreiro
[versão integral do artigo publicado na edição de Abril da revista DIF. Publicação a pedido do autor.]
2 comentários:
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