No passado dia 06 de Maio, o performer norte-americano Matt Mullican apresentou-se na Culturgest com uma das suas performances feitas em transe hipnótico. O que Mullican apresentou a uma plateia repleta de gente das artes plásticas, artistas de outras áreas e alguns curiosos foi, no mínimo, desconcertante e de difícil definição. Durante cerca de hora e meia pintou linhas e números em papel cenário, bebeu café e depois atirou-o para as paredes da galeria, insultou-se, chorou e cantou, tentou ler o jornal e saltou. O público dividiu-se entre o abandono da sala e o fascínio por uma figura estranha que usa a hipnose para explorar dimensões abstractas. Na conversa que se realizou pouco depois da apresentação falou da necessidade de se olhar para estes objectos como espaços de intervenção artística na qual são postos em causa determinados pressupostos criativos. Nomeadamente a própria liberdade de criação.
«O transe é o espaço decisivo» - entrevista a Matt Mullican
Uma vez que não vemos o início do processo hipnótico temos de acreditar que já está em hipnose quando entra no espaço onde decorre a performance. Como é que chega a esse estado?
Para a apresentação de hoje [6 de Maio], comecei às dez da manhã a entrar em transe [a performance ocorreu às 17h00]. O hipnotizador colocou-me num estado de transe profundo por um período de duas horas. O pânico foi o primeiro estado emocional a que cheguei, porque as empregadas de limpeza estavam por aqui e faziam muito barulho. E eu pensei, «elas sabem que estamos a preparar-nos mas fazem tanto barulho, não é justo». Fiquei zangado. Ele ficou surpreendido que eu ficasse tão zangado. E partimos daí. O processo determina o assunto da peça, por norma, um determinado estado emocional. Eu não tenho um assunto, não sei o que vou fazer, é em transe que o faço. Durante o estado de transe tiro algumas notas [Mullican mostra um caderno onde escreveu palavras como grande e pequeno, fez círculos e traçou linhas entre elas] e falo com o hipnotizador, falo com as pessoas, vou almoçar. Normalmente nestas performances há um conflito. Não posso deitar coisas fora, não posso acordar, etc. Mas desta vez não tinha um conflito de culpa. Estava vazio.
Não há uma preparação do espaço em função do que quer fazer?
Eu decidi previamente ter papel e um palco, porque estava interessado em estar no palco ou estar fora do palco. Mas também pedi uma cama e não a utilizei. Quando cheguei ao pé dela lembrei-me de coisas antigas e fiquei com medo. Evitei-a. Há aqui um elemento teatral presente, mas não há espaço, o espaço é mínimo. Depois pinto o espaço e ao fazer isso determino o desenvolvimento do que se passa. Também queria ser autista em relação ao público, porque de facto faço tudo o que posso para me esconder. Para mim estou num quarto vazio.
Há uma consciência do que está a fazer?
Estou consciente até certo ponto. A consciência não é preto ou branco. Não se está consciente ou inconsciente. Pode-se estar em ambos os estados. Algumas pessoas perguntam: «Sabia que tinha nascido em 1951 mas porque o escreveu?» Não faço ideia. Quando alguém entra no espaço e vê 10, 9, 8, 7, 6, 5, 4, 3, 2, 1 isso é, em certo sentido, uma contagem decrescente. Como quando o hipnotizador me põe em transe: 10, estás sentir-te mais fundo, 9, mais fundo… Esses números são indicadores de um estado mental.
Lembra-se de tudo o que aconteceu?
Claro. O processo hipnótico tem mais a ver com concentração do que com qualquer outra coisa. Quando estava a rastejar no chão… pegas nesses pequenos momentos e podes esticá-los porque a “bebedeira da hipnose” permite fazê-lo, esticar os pequenos momentos, fazê-los durar mais. E esse é o vocabulário de todo o teatro, de certo modo, esse prolongar, sair para fora (drawing out). É uma coisa experimental, trata-se de encontrar uma linguagem.
Essa linguagem está identificada?
Tento trabalhar com diferentes níveis de significado. E os diferentes níveis de significado são o sujeito, o subjectivo, a linguagem, o mundo enquadrado (framed), desenquadrado (unframed), os elementos. E é com isto que interpretas. Este trabalho tem tudo a ver com o sujeito. É uma essência de um espaço onde se está em puro modo interpretativo. Não tem tanto a ver com o objecto mas como tu sentes o objecto. Este projecto tem a ver com isso, com preencher essa parte.
Então distingue-se da improvisação.
É diferente. Há uma diferença fundamental na forma como me sinto e de como as peças são feitas. Já fiz isto sem ser em transe e é diferente. Fiz uma performance na Suíça e na Áustria que não era uma simulação do que tinha feito em transe. Foi bom, mas não tinha esta energia. O transe é o espaço decisivo. Por exemplo, há pouco quando estava a cantar, estava a sentir-me perdido. «E agora o que é que eu faço? Estão estas pessoas a olhar, à espera que eu faça alguma coisa, mas o que é que eu faço?»
Mas falou de um autismo em relação ao público.
O público funciona como um amplificador, mas não estou a apresentar-me para eles. Nesta performance quis jogar com o factor-público. Tracei uma linha no chão que ninguém podia ultrapassar. Mas depois estavam aqui duzentas pessoas. E pensas: «Não me apercebo do público. Se não me apercebo do público, o que é que estou a fazer?» Mas, uma vez mais, tem a ver com o assunto. Isto até podia ser tudo falso. Mas como é que isso é determinado como real ou não? E como é que o facto de ser real determina a sua qualidade?
Sim, porque há um público que tem de acreditar no seu nível de transe.
Poderá ser sempre falso. No fim, sinto sempre que não atingi nada. Fiz uma pintura, foi bom, mas nem sei porquê. Qual foi o propósito de pintar uma pintura? Porque é que ele pintou uma pintura? Com que fim? O que é que ele quis dizer com aquilo? Faz sempre mais sentido se pensarmos nisso como um conteúdo. O que fica não me interessa nada. Gosto de guardar algumas coisas, mas não existe como objecto final. Nesta performance em particular senti um desespero que não sentia há algum tempo. Mas é cedo para o perceber. Irei ver o vídeo que foi feito para ver se percebo.
E nesses momentos sente vontade de acabar?
Porquê acabar? Como é que se acaba, como é que se começa? Como é que começas do nada? Qual é a primeira ideia? E no fim, o que é que desaparece? O que determina o fim? Maior parte das vezes é a exaustão.
Então não usa o transe como um fim em si mas como um meio, uma chave de acesso?
É um pouco como a realidade virtual. Há aqui uma espécie de relação entre realidade virtual e jogo. E funciona para mim porque não a uso como um fim em si. É mais sobre o que sai de todo o processo. É isso que o faz continuar. Se fosse um fim, fazias uma vez e passavas para o próximo. Mas o conflito é tão brutal que não há possibilidade de ganhar.
Disse uma vez em entrevista: «As pessoas dizem que estou a tentar pôr todo o universo nos meus espectáculos mas estou só a tentar fazer o diagrama do que temos em nós.» Para chegar onde?
O objectivo de qualquer artista é ter um vocabulário das coisas, mesmo num estado de transe. Uma das coisas que surgiram foi o facto de as pessoas pensarem que eu estava a simular a doença mental, mas eu estou só a deixar-me ir. Houve performances onde assistiam pessoas que trabalhavam em hospitais e que antecipavam o que eu ia fazer a seguir, por terem observado doentes. Como param, como começam, etc. E há pessoas que perguntam: «Como te atreves a representar a doença mental desta maneira? Não devias fazer isto.» E querem saber porque é que o faço. E eu não estou a fazer troça disso, estou só a delinear territórios. Como é que o significado entra num trabalho estruturado? Qual é a natureza do significado? Acho que o significado é contextual e muito emocional. Quando enfrentamos problemas é contextual e emocional. Sabemos onde estamos no problema, sabemos o que sentimos ao resolvê-lo e seguimos este movimento. Acho que é uma sorte se nos surpreendemos, eu estou certamente a surpreender-me. Estou só a deixar-me ir.
Mas é algo violento. Insulta-se, bate-se… há uma dimensão de culpa. Na performance parece até temer um confronto consigo próprio.
Confrontar-me a mim próprio? Claro que sim. Sou uma fraude. E então não quero ver a fraude.
Considera-se mesmo uma fraude?
Não, porque sei que o que está em causa não é ser real ou falso. Mas sei que essa é a armadilha em que maior parte das pessoas caem. Em Nova Iorque fiz uma performance em que não me deixei sair de transe. Até que um estranho me agarrou na perna e acabei por sair. E se alguém tivesse entrado durante a apresentação de hoje eu não sei o que poderia acontecer. Mesmo que eu passe o tempo a pedir para me ajudarem.
Transcrição e edição de Pedro Manuel com Tiago Bartolomeu Costa.
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