domingo, janeiro 15, 2006

O espectador vê o quê? (II)

(o lugar do público em exemplos recentes do teatro contemporâneo português)



Propostas como, por exemplo, Private Lives (Hospital Miguel Bombarda, Lisboa 2003), Título (Hospital Miguel Bombarda, Lisboa, 2004) e Via dolorosa (Hospital Júlio de Matos, 2003), reavaliam essa relação obrigatória, forçando-a até um ponto em que, considerando que cada espectador vê sempre os espectáculos individualmente, proporcionam o verdadeiro sentido de experiência individual. Assumem a ideia de dedicatória, procurando fazê-la chegar, e de maneiras diferentes, a cada um dos espectadores. Ou seja, num espectáculo para um colectivo procura-se chegar a cada um dos observadores/participantes. Esta intenção é mais arriscada porque coloca o(s) criador(es) numa constante dependência do espectador que, por sua vez, se vê forçado a agir sobre a observação dos outros espectadores. Neste tipo de propostas, assistimos a uma permanente deslocação do centro de acção como se se tratasse de um tradicional jogo infantil. O primeiro a deixar cair a bola, perde.

Private Lives solicita essa colaboração ao espectador, para depois a poder testar. Ou seja, mais do que fazer depender a acção do espectador, obriga-o a enfrentar as consequências. São perfeitamente claras as linhas traçadas na construção do espectáculo, e a forma como se vão apresentar ao espectador. A introdução ao espectáculo começa não com a explicação da mecânica do jogo que se seguirá, mas com uma plateia invadida pela música estridente que sai do palco e pelos actores a olharem para os espectadores, em pose descontraída. Como se fossem espectadores. Também o serão. Alguns deles, pelo menos. O facto dos intervenientes/actores aceitarem expôr-se à chegada dos intervenientes/espectadores permite elevar a um enorme expoente a noção de improviso tão cara ao Teatro Praga. Ou seja, o improviso é útil quando se sabem os limites a que se pode chegar. Caso contrário já é outro espectáculo. É, nesse sentido, um balão de ensaio para o aparente improviso/a ideia de construção na qual se baseia Título, proposta paradigmática, na qual o jogo está nitidamente "viciado".

Para levarem a cabo esta reflexão, os criadores propunham aos espectadores uma participação activa no desenvolvimento do espectáculo e sustentavam-no com uma divisão de públicos, apostada na diferenciação de pontos de vista: “cada lugar escolhido, cada ângulo de visão, cada movimento accionado e cada palavra proferida estão sujeitas a um carimbo taxativo de verdadeiro e falso” (in programa). Conduziam depois o público a dois lugares: um dentro do espaço cénico - para o qual eram encaminhados os que optassem por ser “público falso” (já que isso implicava a entrada gratuita no espectáculo a troco da celebração de um contrato onde ficavam à disposição dos criadores) -, e uma plateia ordeira, às escuras e com direito a cortina, tal como num teatro convencional, para o “público verdadeiro” que funcionavam como “pano de fundo”. O objectivo era “dar provas inequívocas da verdade num terreno minado de mentiras” (idem). Os criadores assumiam a dependência sem revelarem que o espectáculo pode funcionar com um só espectador.

Via Dolorosa, uma viagem pessoal e fulanizada que o dramaturgo inglês David Hare fez ao território da Palestina, sob a forma de teatro de investigação, propunha ao espectador uma viagem/confronto entre diversas realidades que só se construíam e nivelavam dentro da cabeça do espectador. E, percebendo esse isolamento, Carlos Afonso Pereira apostava na completa teatralização do texto de David Hare, tornando-se num corpo disposto a ser ocupado por uma intenção. Só assim o público perceberia porque razão escolhera assistir a Via Dolorosa. Uma escolha que nascia de uma vontade de agir e ser confrontado, obrigando-o a oscilar entre observador/confidente e objecto de confrontação. Era notório o desconforto de quem assistia, não só porque a ‘quarta parede’ foi derrubada e o espectáculo decorre em andamento, mas também porque Carlos Afonso Pereira não era um actor a fazer um texto. Era, assumidamente, Carlos Afonso Pereira a fazer de David Hare que fazia de ‘David Hare em Israel’. O trabalho cenográfico de Pedro Silva assumia assim essa condição de fragilidade teatral, encontrando nas expressões do intérprete, o equilíbrio necessário para ‘pouco parecer muito’. Portanto, sujeita-se o espectador à construção dos espaços em branco. Quem não podia sair indiferente era o espectador.

Nas três propostas aqui destacadas, podemos observar uma vontade de apropriação da orgânica do texto e da sua estrutura, trabalhando-a, depois, através de um dispositivo que tanto conjuga uma dessacralização do espaço como contraría o exercício de imaginação a que está subjacente uma ideia de espectáculo. Ou seja, o que quer que se passe (que se mostre) no espaço cénico deve servir para estimular a construção de uma terceira realidade: aquela que surge com a definição do que estiveram a ver/a fazer criadores e espectadores.

No caso de Via Dolorosa este aspecto toma uma dimensão extra-real, já que a proposta cenográfica de Pedro Silva (numa redefinição do espaço do Hospital Júlio de Matos) funciona mais num sentido figurativo que demonstrativo. Antes procura fazer um trabalho de agregação dos fragmentos em que o texto é construído, desenvolvendo dois níveis de leitura cenográfica: um físico (com a participação activa do espectador – a funcionar como agente/receptor de Carlos Afonso Pereira/David Hare) e um sensorial (o corpo do espectador como matéria cenográfica).

Portanto, podemos considerar que a forma mais eficaz de permitir o romper de fronteiras entre espectáculo e espectadores será a utilização destes como espaço de representação. A necessidade de fazer atenuar essa distância (física e emocional) não pode passar por uma interactividade simples ou um deslocar dos locais de representação.

Ou seja, fazer o público participar do processo de criação não pode significar somente retirar-lhe o espaço onde se sentar e dar-lhe voz durante o espectáculo. É necessário, procurar dentro da lógica da estrutura cénica os espaços onde se possam introduzir novos elementos. Ou se quisermos, permitir uma reformulação dos conceitos. Procede-se aqui a uma classificação de co-criação que em nada se relaciona com espectáculos interactivos. Pelo contrário. O espectador não vai apresentar nada de novo, antes trabalha com as propostas dos criadores, num sentido de democratização e solução de problemas (Bennett, 1997: 122). E trabalha-as com o objectivo de proporcionar ao criador novas ferramentas. Nesse aspecto, a Vou a tua casa – lado c, de Rogério Nuno Costa, problematiza o lugar do criador face a um espectador, confundindo papéis mas consciente da falibilidade das ‘trocas’.

Diz Herbert Blau: “what’s important when confronted with appalling doubt is to be able to argue out the risks, so far as possible [...] The theater enables by re-enacting; it renders and it stands in awe. That may be a rude awakening, woe producing wonder, but energy is restored and inertia overcomes. We feel less powerless. We see what we have seen, but what we see is suspect. We may see a Utopian solution, or we may laugh like hell. We may do both. […] They are also precisely what they appear to be’” (1964: 97). Veja-se o caso de Título, onde é dada ao espectador a possibilidade de definir o espectáculo à sua medida e que, por mais de uma vez, mima a técnica dos criadores. Portanto, quando ao espectador é dada a oportunidade de moldar o quotidiano teatral, este obriga-se a uma recusa desse mesmo quotidiano, procurando antes forçar a criação de algo novo. Resta, por isso, ao criador, servir de receptor desses códigos de funcionamento e aplicá-los numa nova proposta.

Esta espécie de relação que o espectador procura estabelecer com o criador (abandonado que foi na sua condição de agente activo) parece responder a algumas das questões levantadas pela performer e teórica norte-americana Sally Moore: “by dint of repetition they deny the passage of time, the nature of change, and the implicit extent of potential indeterminacy in social relations, whether these processes of regularization are sustained by tradition or legitimated by revolutionary edict and force, within which the attempt is made to fix social life, to keep it from slipping into the sea of indeterminacy” (Strindberguiana de envolvência no espectáculo como se sobrepõem ao cinema, lugar onde a crença se torna mais verdadeira porque, em última instância, não a sentimos na pele. Estamos protegidos pela distância do ecrã. E o cinema tem vindo a proporcionar o estabelecimento de novas fronteiras para o limite das responsabilidades de cada uma das partes. Essa participação activa do espectador permitirá não só atenuar a agressividade inerente à relação espectador/actor, como refere Vítor Moura, no ensaio A condição do espectador (InSi(s)tu, 2003), mas também contribuir para a multi-sensorialidade de quem vê. Contrariar assim a diferença que o cinema tem do teatro. Enquanto um se apresenta como um “espectáculo-todo”, o outro força (inadvertidamente) a uma selecção de cenas, até mesmo actores e espaços.

No teatro, o foco de atenção tende a centrar-se num determinado aspecto, o que pode ser interpretado como uma variação deturpada do espectáculo individual. O que se procura aqui não é tanto essa possibilidade mas a criação de um espectáculo individual, a partir de uma noção de conjunto. E essa só pode acontecer se ao espectador for dada a possibilidade de interagir com o criador. Mas, repito, sem se diluírem as ‘responsabilidades’ de cada uma das partes.

Importa, por isso, contrariar a efemeridade subjacente à condição teatral e a recusa dos papéis passivos de receptor e emissor. Portanto, trabalhar a ideia de continuidade, como parece definir John McGrath, citado por Susan Bennett: “the theatre can never cause a social change. It can articulate the pressures towards one, help people to celebrate their strengths and maybe build their self-confidence. It can be a public emblem of inner, and outer, events, and occasionally a reminder, an elbow-jogger, a perspective bringer. Above all, it can be the way people find their voice, their solidarity and their collective determination” (2001: 156).

É por isso que a supra-definição intra-espectáculos permite confrontar o objecto como um todo em evolução e não tanto um depósito de práticas, memórias e ideias. Dependente de um agente que não controla, o criador vai obrigar-se a um discurso interno que, inerentemente, se repercutirá noutros espectáculos. E, no caso do espectador, o obrigará a reorganizar os espectáculos que vê. Incluindo, obviamente, os que já viu. Tal como afirma o teórico brasileiro Luís Costa Lima: “A experiência estética não se inicia pela compreensão e interpretação do significado de uma obra; menos ainda pela reconstrução da intenção do seu autor. A experiência primária realiza-se na sintonia com seu efeito estético, na compreensão fruidora e na fruição compreensiva” (1979: 46).

Bibliografia consultada:

- Bennett, Susan, Theatre Audiences, 2ª edição, Routledge, Londres, 2001
- Blau, Herbert, The Impossible Theatre: a manifesto, Nova Yorque, 1964
- Lima, Luís Costa (org.), A literatura e o leitor – textos da estética da recepção, Edições Paz e Terra, Rio de Janeiro, 1979
- Turner, Victor, The Antropology of performance, 1988 in
http://www.cmq.edu.mx/documentos/diplomadopier/Antrophology%20of%20performance.doc
- Ubersfeld, Anne, L’École du Spectaeur, Editions Sociales, França, 1991


Artigos de jornais e revistas:

- Qual é, afinal, o “público da cultura”?, Nyara Figueiredo, in PÚBLICO, 27 Novembro 2003
- O espaço teatral e a condição do espectador, Vítor Moura, IN SI(s)tu, Revista de Cultura Urbana - Privacidade", nº 5 e 6, 2003

Outros elementos:

- Dossier de imprensa e folhas de sala dos espectáculos: Private Lives e Título (Teatro Praga) e Via Dolorosa (Carlos Afonso Pereira).
- Entrevistas feitas no âmbito da pesquisa com Carlos Afonso Pereira, Pedro Silva e Teatro Praga.
- Análises aos espectáculos A Missão ou porque as raparigas continuam a ir para Moscovo, I am here, Private Lives, Sobre a Mesa a Faca, Título, Trio, Via Dolorosa e Vou a tua casa, publicadas no blog O Melhor Anjo ;

Agradecimentos: Carlos Afonso Pereira, Joaquim René, João Miguel Xavier, Pedro Silva, Vera San Payo Lemos, Vitor Moura e Teatro Praga

4 comentários:

Anónimo disse...

Então e do Murraças não se fala?

Anónimo disse...

Mas isto é tipo discos pedidos?

André disse...

Eu não pedi nada....

Anónimo disse...

Era uma piada, e não era para ti.