domingo, janeiro 15, 2006

SER E NÃO SER ARTISTA EM PORTUGAL


SER E NÃO SER ARTISTA EM PORTUGAL
por Tiago Guedes
[texto publicado hoje no jornal PUBLICO e reproduzido com autorização do autor]

Dizer-se que se é artista e que se vive disso (viver, não sobreviver) ainda é algo que nos faz pensar e muitas vezes questionar as escolhas que fazemos numa determinada altura da vida. Desde 2001 que trabalho profissionalmente na área da dança contemporânea, disciplina que, em Portugal, data do final da década de oitenta. Uma área recente, vibrante, suficientemente aberta para convocar outras áreas artísticas no seu processo criativo e acima de tudo onde a prática e o pensamento habitam de forma integrada.

Mas, à medida que o tempo passa, tenho-me vindo a deparar com o que na prática é o modus vivendi do artista em Portugal, e não posso deixar de estar angustiado e bastante preocupado. Este problema afecta coreógrafos, bailarinos, actores, encenadores, produtores, desenhadores e técnicos de luz e de som, figurinistas, cenógrafos,... Ou seja, todos os profissionais liberais que estão ligados ao mundo do espectáculo.

Se por um lado existe um reconhecimento do que fazemos, conquistámos espaço público junto dos media, o nosso trabalho é reconhecido internacionalmente, estamos organizados de uma forma associativa que nos representa junto do poder (REDE e Plateia), temos vindo a formar públicos para as artes performativas, se o Estado até cauciona uma parte do nosso trabalho, o que temos vindo a desenvolver ainda não sensibilizou os nossos políticos de que a cultura contemporânea será o tão defendido património do amanhã; que essa mesma cultura representa o país muito mais do que o próprio país imagina.

É alarmante ver o tecido cultural altamente fragilizado e que essa fragilidade tem múltiplas faces: os Ministros da Cultura que mudam constantemente, as direcções dos Institutos que se desmoronam, os subsídios que chegam tarde (assistindo-se a situações perplexas como a dos subsídios para as actividades culturais de um determinado ano chegarem no final do mesmo!). No fundo, à ausência de uma política cultural de continuidade, que não mude consoante as cores políticas, deixando-nos à mercê dos ânimos e das susceptibilidades mais ou menos "culturais" dos nossos dirigentes.

O que temos que reivindicar, CONSTANTEMENTE, é a obtenção de um estatuto socioprofissional que nos defenda e nos enquadre nas particularidades do nosso trabalho, um trabalho que é intermitente e que por isso tem de ser entendido como tal. Urge a obtenção de um estatuto social para os artistas (porque não olhar para o estatuto de intermitência francês?), para que, de uma vez por todas, possamos dizer que fazemos o que fazemos com condições e que sentimos que existe algum reconhecimento por isso. Um estatuto que nos defenda e que faça com que deixemos de andar numa espécie de limbo constante, que não nos deixa trabalhar decentemente, nos tolhe os movimentos e nos angustia a cada passo que damos.

Parece-me que existe todo um trabalho a ser feito de interligação entre os diferentes Ministérios, (Cultura, Finanças, Segurança Social e Negócios Estrangeiros) de maneira a que se encontre uma situação que vá ao encontro do que fazemos e não nos enquadre num sistema geral ao qual não nos conseguimos adaptar. De uma vez por todas há que se entender que o fazer contemporâneo tem especificidades que não se encerram nas lógicas das grandes companhias de dança. A maior parte dos bailarinos e coreógrafos contemporâneos trabalha a recibos verdes, não estão ligados a uma só estrutura, porque só assim conseguem desenvolver o seu trabalho, que é de investigação e só tem lugar fora de um contexto mais institucional.

A política de subsídios existente para as artes performativas será sempre insuficiente e de "cosmética" se não for suportada por um estatuto social pré-definido. Só assim o trabalho será cimentado e construído de raiz. Não existem casas sem alicerces tal como não existem artistas sem uma base social que os deixe fazer o que sabem fazer, "calmamente", sem terem que estar a pensar diariamente nas coisas básicas, tão básicas como a sobrevivência e a dignidade.

Coreógrafo e intérprete

[texto apresentado no âlbito da iniciativa do jornal PUBLICO que "desafiou 14 intelectuais portugueses, que normalmente não tomam posição política ou sobre ela não são solicitados pela comunicação social, para darem a conhecer as suas reflexões sobre o país e pronunciarem o discurso que nunca foi feito." Paragrafos e sublinhados da miha resonsabilidade]

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