domingo, novembro 06, 2005

Ponto morto


Foto: José Luis Neves


Rogério Nuno Costa, autor e performer, anuncia no seu blog Vou a tua casa que decidiu suspender o projecto homónimo, em virtude do desequilíbrio financeiro que o tornava insustentável. Para o criador a fronteira entre realidade e criação impôs-se de tal forma que a decisão de suspender um projecto que alimentava há cerca de dois anos (e sobre o qual publiquei análises críticas e contextualizadoras aqui, aqui e aqui), se vê, assim, suspenso. Na qualidade de observador do lado c do projecto (ver textos aqui, aqui, aqui e aqui) tenho acompanhado o desenvolvimento da proposta, pensando-a seja em termos da sua eficácia/pertinência, seja também no modo como se relaciona com a envolvente pessoal e artística. No meu entender, e conforme fiz questão de frizar aqui, há momentos em que as decisões se sobrepõem aos projectos, por mais meritórios que sejam. E, a arte deve servir os artistas e não o contrário.

Podemos considerar que a decisão de suspensão se relaciona, também, com um amadurecimento artístico do próprio criador, já que é obrigado a reflectir sobre o modo como se deixa contaminar pelas contingências da realidade. Contudo, é importante ter em conta um aspecto: o assumir de que a criação é um processo de investigação contínuo, e que a apresentação sob a forma de espectáculos é sobretudo uma questão normativa.

Para Rogério Nuno Costa, a questão de suspensão (e o termo, repetido ao longo do texto de justificação, parece-me, também, uma tentativa de perceber a dimensão de tal palavra num projecto que se sustenta no repensar de conceitos estanques), relaciona-se, diz, com aquilo que mais deseja para o futuro do seu trabalho: " o aprofundamento teórico de uma série de linhas de investigação (vindas de campos paralelos ao das artes performativas), assim como o melhoramento das condições da minha vida mais pessoal e mais íntima; sim, isso mesmo, a minha vidinha das contas por pagar, das rendas em atraso, da comida, das roupas para o inverno... a mesma vida que descarnadamente uso e abuso para dela fazer performance. acima de qualquer outra razão mais ou menos "artística", mais ou menos "política", sem dúvida alguma que o cruzamento do quotidiano mais banal com a vontade sobre-humana de querer fazer da minha vida (diria melhor, das minhas vidas) a minha “tese” e a minha “especialização”, é a espinha dorsal que pretendo salvaguardar neste projecto. "

Razão pela qual a investigação prossegue, agora em outros moldes. Na verdade, a suspensão do Vou a tua casa é fictícia, já que o performer tem vindo a desmontar a estrutura dos espectáculos através de intervenções a que dá o nome de Fui (também elas desmontadas no livejournal homónimo). E é também fictícia a partir do momento em que para a realização de cada uma das intervenções se procura uma contextualização do quotidiano. Ou seja, os objectos performáticos deixam, em teoria, de ser momentos isolados no tempo, para passarem a ser parte integrante do modus vivendi/operandi do criador.

Esta decisão deve, também, levar a uma reflexão acerca do modo como se integram objectos performáticos dentro de contextos organizativos, como são aqueles que regem as atribuições de apoios. Não falo necessariamente deste projecto em particular, mas antes de um vazio discursivo entre as propostas e os formulários. Não é possível, num contexto criativo frágil como o nosso, a criação de entraves burocráticos, em nome de uma organização cultural. A criatividade não se faz nas secretarias, faz-se no terreno. Daí ser necessária uma rápida e eficaz discussão sobre o modo como a sociedade, o estado e os projectos se organizam em torno de uma ideia de plataforma de criação útil, eficaz e reflexiva.


O Melhor Anjo vai continuar a acompanhar o desenvolvimento dos projectos Vou a tua casa e Fui. Rogério Nuno Costa apresentará dois novos actos performáticos este mês de Novembro. Dia 16, Fui - esboço #7, na 7ª Mostra de Teatro Jovem, e de 24 a 27, Fui - versão Torres Vedras, no âmbito do Festival A8.

6 comentários:

aL disse...

«a arte deve servir os artistas e não o contrário.» como disse?
a arte é um fim não é um meio!

UniversitYliopisto disse...

o problema é quando esse 'fim' não é justificado pelo meio...

se a arte não servir os artistas, de certeza que não vai servir para nada. a menos que seja esse o objectivo, o que não me parece que seja, olhando um pouco para aquilo que vejo de uma forma cada vez mais generalizada: carreirismos medíocres apoiados por entidades institucionais podres e vazias.

aL disse...

«se a arte não servir os artistas, de certeza que não vai servir para nada.» ???
Isto é a mesma coisa que dizer: "se a lei não servir os legisladores, de certeza que não vai servir para nada".
ora é bastante óbvio que isto é absolutamente absurdo!

UniversitYliopisto disse...

acho absurdo que se olhe para os 'artistas' como 'pessoas' a quem cabe a 'missão' de 'criar' com o objectivo de 'servir' outras 'pessoas'. em última instância, 'artistas' são 'pessoas', para quem a arte que fazem, e a dos outros 'artistas' também, tem obrigatoriamente que lhes 'servir'. se a 'arte' que faço não me 'serve', para que a faço afinal?

a comparação com as leis e os legisladores é absolutamente absurda.

aL disse...

bom, posto isso desta forma tens razão, mas é apenas um caso particular que não pode ser generalizado.

a questão das leis e dos legisladores é uma comparação justa!

UniversitYliopisto disse...

se assumirmos a comparação como uma 'imagem literária', talvez possa ser aceite como justa. caso contrário, só posso mesmo continuar a espingardar: são especificamente 'maus artistas' os 'artistas' que se armam em 'legisladores'. infelizmente, há muitos por aí... muitos...