domingo, agosto 05, 2007

Crítica de dança: Ópera, de Tiago Guedes e Maria Duarte

Manifesto operático

Ópera

De Tiago Guedes e Maria Duarte a partir de uma ideia original de Tiago Guedes
Negócio/ZDB, Lisboa

termina hoje (21h30)

No seu célebre manifesto Não ao espectáculo, de 1965, a coreógrafa norte-americana Yvonne Rainer opunha-se, entre outras coisas, “ao virtuosismo, às transformações e magias e faz-de-conta, (…) ao não envolvimento do intérprete ou do espectador (…) aos desejos do espectador, à excentricidade, ao movimento ou ao ser movido”. Esta noção de liberdade (ou este desejo de libertação) inscrevia-se já numa busca incessante pelo primado da criação: o permanente questionamento. De certo modo, mais do que uma preocupação pela forma, ou pelo formato, deveriam os artistas pugnar por um efectivo diálogo e conjugação entre diferentes noções de representação num mesmo espaço e ao mesmo tempo. Ora, enfrentamos hoje, mais de quarenta anos depois, uma inversão desta ideia ao concebermos como mais relevante a categoria na qual o espectáculo se deve inserir do que o que este contém. Deixámos de lado a noção de arte total para nos preocuparmos com categorizações por vezes pífias que surgem, muitas vezes, de equívocos dos próprios criadores.

Ópera, a mais recente criação de Tiago Guedes, faz lembrar esse manifesto por parecer propor uma outra forma de pensar “o espectáculo”, partindo de uma apropriação de algumas das mais constantes preocupações do seu percurso, aqui sujeitas a um diálogo com Dido & Eneias, de Henry Purcell. Nomeadamente a relação com o tempo, o corpo como reagente a um conjunto de manifestações quotidianas, a memória da dança e a sua reformulação e a construção de quadros-vivos, com evidentes relações com as artes plásticas, numa paisagem árida como a cena vazia.

Ao chamar “ópera” a algo que, manifestamente, surge a partir de, primeiro, uma re-organização de materiais e formulações, assente em pressupostos coreográficos e, segundo, de um manifesto sobre a disciplina “dança” a partir do prolongamento, ampliação e perversão daquilo que, no conjunto do seu trabalho pode ser considerado como solipsista, cede o centro desse questionamento a algo maior, e mais relevante, do que os efeitos a que habitualmente recorre. O rigor e a formalidade dos movimentos tendiam, por vezes, para um jogo de resistência(s) entre as fontes de trabalho e os efeitos que cada uma delas exerce nas outras, obrigando a uma cumplicidade do espectador treinado nem sempre vantajosa.

À semelhança do efeito provocado por Pina Bausch em Café Müller, onde soa a mais célebre ária desta ópera Remember Me (que Guedes substitui por uma versão em russo ainda mais trágica), também aqui se trata de uma “confissão extrema de um estado de crise criativa” (Leonetta Bentivoglio, O Teatro de Pina Bausch, 1994), onde o coreógrafo expõe, como ainda não tinha feito, a irresolubilidade da problemática da representação aplicada ao diálogo entre música e dança. Factor tanto mais relevante quanto, noutras ocasiões, o uso de música servia para sublinhar a sua assinatura (Materiais Diversos, 2003), denunciar a dissolução e impotência dos corpos (Trio, 2005) ou caricaturar o que esses corpos faziam (Matrioska, 2007).

A relação entre esta “falsa” ópera, gerada com humor nos sucessivos jogos de aliteração e “tributo” à tradição coreográfica, e o uso da gestualidade através de um playback exigente e expressivamente contido, executado juntamente com a actriz Maria Duarte, remete-nos para um plano mais ambicioso que o coreógrafo usa para resgatar dos códigos estritos da disciplina a noção de espectáculo “livre” postulada por Rainer. A banda sonora é agora um recurso performático desmontável onde o campo referencial se perde (ou se deixa perder). Razão pela qual vamos abandonando a possibilidade de seguir a narrativa para nos concentrarmos na forma como os intérpretes criam uma mecânica própria, que resulta de uma codificação corporal, estilizada e ritual, dos episódios e das personagens narradas na ópera de Purcell. Estabelece-se um exercício de delimitação territorial que volta a impor uma reformulação dos conceitos disciplinares e da tradução contemporânea de expressões artísticas multíplices.



Texto publicado no Ípsilon de 03 de Agosto de 2007. fotografia de ensaio de José Luís Neves.

5 comentários:

miguel loureiro disse...

how boring can a play go?

anonymouspleasure disse...

Não só foi uma seca, como foi uma seca mal interpretada. Um corpo que se dirige para a imobilidade precisa de ter disciplina! A Maria Duarte demostrou uma falta de rigor dolorosa no movimento, e o Tiago Guedes, no "lipsinging". Simplesmente mal trabalhado.
E foi uma seca não por ser "minimalista", o que podia ter sido uma coisa maravilhosa, mas por fazer jogos - com os mundos operático e coreográfico - que não trazem estritamente nada, que ignoram a semiótica do palco, que ignoram a história, que não estão interessados em nada menos na descoberta deles próprios. E aí - pouca coisa há.

Sílvia disse...

Olá Tiago,

Tal como se espera deles, o Tiago e a Maria, cumpriram com competência aquilo a que se propuseram. Não estou é a perceber a relevância do paralelo com a Yvonne Rainer no teu texto, eu diria que a proposta é um exercício "Delsartiano" ("artistic statue posing" segundo Delsarte), não deixando portanto de ser uma reflexão sobre a história da dança, mas que nada tem a ver com a Yvonne. (vê "Time and the dancing image", p.79, 80)
Outra questão que me ocorre, é se de facto, se justifica este exercício de playback coreografado, ser subsidiado pelo I.A. como "Transdisciplinar".
Coreografia, dança, não sei, são questões a discutir.
bjs

MATERIAIS DIVERSOS disse...

é só frustrados a deixar comentários...hello! acordem para a vida! se têm alguma critica a fazer, façam-na mas não revelem a vossa pequenez, ressabiamento e ignorância...as opiniões são óptimas quando acrescentam alguma coisa...é muito fácil (e brega!) destruir com opiniões vazias. É uma das coisas que mais me revolta nesta pseudo-democracia..."yupiii somos todos muito livres e podemos dizer tudo o que achamos sobre tudo"...então nesta coisa dos blogs em que não se assina, todos têm essa coragenzinha de revelar os seus ódios e de dizer o que pensa, mesmo que aquilo que pensa é infinitamente pior do que qualquer peça realmente má. Vá lá, realizem-se, façam aquilo que gostam, construam algo de positivo para vocês e deixem os outros construir as suas coisas também. Não sejam tão "mauzinhos" e frustrados...olhem ao espelho e perguntem a vocês próprios: O que é que eu ganho com isto? Não farei melhor perder o meu tempo comigo e com a minha felicidade?

..."estamos todos contaminados por esse mal virulento"... bergman

Boas Férias

M*

Sílvia disse...

Martim

Não tenho o teu número, ou email, mas muito gosto em falar contigo, a Maria, ou o Tiago, pessoas de quem me sinto bastante próxima.
Não acho que tenha dado uma opinião negativa, apenas levantei questões em que penso e acho relevante lançar em diálogo com o T Bartolomeu Costa, ou convosco, se quiseres. Se calhar este meio é um bocado frio e dá aso a grandes mal entendidos.
Depois do teu comentário, de facto, não tenho vontade nenhuma de continuar a comentar por aqui.
Falamos quando nos cruzarmos. Ou se quiseres tomamos café. Aqui só estou semi-anónima.

Beijinhos