crítica de teatro
Je porte malheur aux femmes, mais je ne porte bonheur aux chiens
a partir de Joël Bousquet
Encenação de Bruno Geslin
Thèâtre de la Bastille, Paris
23 Novembro 2006, 21h00
Sala quase cheia
O que dormia no vale*
Je porte malheur aux femmes, mais je ne porte bonheur aux chiens
a partir de Joël Bousquet
Encenação de Bruno Geslin
Thèâtre de la Bastille, Paris
23 Novembro 2006, 21h00
Sala quase cheia
O que dormia no vale*
Saímos de «Je porte malheur aux femmes, mais je ne porte bonheur aux chiens» (em tradução livre: desejo mal às mulheres mas não desejo felicidade aos cães)… sem perceber se chegámos a saber quem foi Joël Bousquet, poeta francês e sacrificado do princípio do século XX, que viveu no sul de França mais de metade de uma vida presa a uma cama. E, provavelmente, é esse o grande segredo desta encenação de Bruno Geslin, encenador francês descoberto recentemente – esta é só a sua segunda encenação depois de anos a trabalhar em vídeo e fotografia - e apresentado como reciclador de um género muito pouco dado a sucessos: a biografia vista pelo teatro.
Na verdade, esta peça de título poético e enigmático, roubado a um dos versos do surrealista Bousquet, é um mergulho profundo no universo desesperado de alguém que se viu vítima do infortúnio e que, por ele, ou a partir dele, criou uma obra íntima, pessoalíssima e de difícil catalogação. Razão pela qual este espectáculo, apresentado em Paris no Thèâtre de la Bastille no âmbito do 35º Festival d’Automne até 01 de Dezembro, faz redescobrir uma poesia obcecada com o corpo feminino, e sobretudo com as nádegas, com a impotência e com o terror da guerra. Temas que, para um jovem de 21 anos atirado para uma cama por causa de uma bala que lhe atravessou a espinha e o deixou paralítico durante a 1ª Guerra Mundial, lhe permitem a construção de universos paralelos, de realidades sobrepostas, de sonhos e desejos malditos.
É essa amargura que justifica o título, uma memória ficcional ou real de um cão também ele vítima de uma bala. Mas, explica Bousquet e cito de memória, se a morte do cão era natural, a dele era contra-natura. A do cão necessária e a dele, o próprio tinha vergonha que não o fosse também. Bousquet chorava o cão. A si dava forças para resistir e assim continuar num mundo ficcionado onde, apesar de preso à cama, não lhe faltavam mulheres dispostas a casar-se, seduzidas pela verve negra daquele estranho ser, amigos artistas como Tanguy, Matisse ou Picasso ou poetas como Breton, ou mesmo forças para se impor numa sociedade que avançava a passos largos para o progresso. E ele ali, preso à cama, com vista para a provençal Carcassonne..
Todo o espectáculo, que organiza os diários do autor sem os explicar nem sequer os seguir cronologicamente, vive de um colocar em perspectiva, visual e dramaturgicamente, uma cena feita de vários planos – o quarto, a cama, a banheira, a floresta, o rádio, a janela -, e da interpretação de Denis Lavant, figura estranha e enérgica, que descreve a violência gráfica das palavras de Bousquet com o à-vontade de quem parece tê-las vivido. É a partir dele, força bruta que eclipsa tudo o resto, que surgem sequências oníricas, de corpos flutuantes e relações menos óbvias. É dele ainda que parte um dispositivo visual que combina vídeo, som e cena como um organismo vivo, complementar e aberto. E, por fim, é por ele que se atravessam os corpos da enfermeira, da violoncelista e da enigmática sombra do jovem ferido.
A direcção de Bruno Geslin concebe um espectáculo que se alimenta das imagens quase masoquistas de Bousquet e, com elas – seja em vídeo, seja no desenho dos corpos, seja na modulação dos choros convulsos do poeta – propõe um percurso de descoberta, entre o fascínio e a repugnância. Sentimos, ao longo de um texto denso e metafórico, que a viagem proposta é uma viagem pessoal. E que o modo de dar a ver esta figura é fruto de um aturado trabalho de observação minuciosa sem ser voyeurista. Atitude que, numa altura de hiper-exploração gratuita da vida alheia, não é nem fácil, nem óbvia, nem natural. É quase grotesco que alguém assuma a distância do homem para compreender a figura a partir do que deixa. É uma opção radical. Tão mais radical quanto o facto de Geslin não nos querer explicar Bousquet. Nem quando dá a Lavant longas passagens mais selvagens, nem quando lê os sonhos a partir de construções erótica de um corpo masculino nú a correr na floresta, nem quando combina ideias e projecções com amargos retratos – a sequência em que Lavant dança sapateado com os seus fantasmas para depressa ceder ao peso das pernas mortas e cair no chão é disso maior exemplo. Geslin observa Bousquet, como Bousquet observava o mundo a partir da sua cama. Sem se perder em contextualizações, o encenador insiste numa pesquisa a partir dos elementos deixados pelo poeta. Acredita nas suas palavras e nas imagens por elas criadas.
«A poesia dá ao homem aquilo que ele não consegue fazer sem mudar de estado», escreveu Bousquet. E Geslin, crente na palavra e na sua força, dá aos terrores do poeta um corpo e uma voz, fá-los dialogar directamente com aquele bocado de carne inútil. O que dele surge é, estranhamente, um espectáculo celebratório da vida e de um certo estado de espírito. Não é mais ou menos Bousquet, porque o próprio não acreditava que alguém pudesse julgar correctamente o que escrevia. Nem ele mesmo. É por isso que saímos sem saber se ficámos a conhecer Bousquet. As suas palavras, presas ao delírio de quem vivia sob o efeito dos medicamentos e ainda mais dadas à fantasia pela impossibilidade física, tanto são poemas mascarados que escondem o negro que lhe habita a alma, como veículo para a criação de outras imagens, não menos metafóricas e que abrem a cena para, se não mais longe, a imensa floresta a preto e branco que fecha o cenário.
E se foi nela que Bousquet perdeu a vida, é para ela que ele quer desesperadamente regressar, situação que a peça vinca através de recorrentes apontamentos dramatúrgicos. Talvez porque essa mesma floresta e esse mesmo soldado que corre cego por entre as árvores evoque um outro poeta e uma outra cena, a de Rimbaud, precisamente, em «Le dormeur du val»: «Les parfums ne font plus frissonner sa narine;/ il dort dans le soleil, la main sur sa poitrine/ tranquille». Essa tranquilidade que Bousquet tanto procurava e o corpo não lho permitiu.
* título inspirado no poema de Rimbaud, «Le dormeur du val», que Mário Cesariny traduziu em versão pessoal e apaixonada em «Uma Cerveja no Inferno/Iluminações», Assírio & Alvim, 1999.
Texto escrito com o apoio do Programa de Apoio à Dança do Serviço de Música da Fundação Calouste Gulbenkian.
Ler, neste blog, outros textos publicados no dossier dedicado ao 35º Festival d'Autome á Paris:
Les Histrions, de Marion Aubert/Richard Mitou (teatro), Dead Set #2, de Caden Mason (teatro), Showcase, de Richard Maxwell (teatro), I wouldn't be seen dead in that, de Steven Cohen & Elu (dança), Até que deus é destrúído pelo extremo exercício da beleza, Vera Mantero, Quartett, de Robert Wilson (teatro), Hey Girl!, de Romeo Castelluci e ainda entrevista a Marie Collin, programadora de teatro e dança do festival. A seguir: William Forsythe, Joël Jouanneau, Thomas Hauer, e Boris Charmatz.
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