Shopping & Fucking
de Mark Ravenhill
encenação de Carlos Afonso Pereira
Casa dos Dias da Água - até 06 Agosto, terça a domingo às 21h30
19 Julho 2006, 21h30
Sala cheia
Que marcas estão a ser produzidas por este presente e de que forma estão as novas gerações a pensá-las? É um estranho e assimétrico contexto este que permite que criadores possam apresentar espectáculos rigorosos e cuidados, ao mesmo tempo que vivem num secretismo mediático e pouco condicente com a vulgarização da exposição inerente à criação. Mais ainda quando essa pode surgir a partir de objectos que reflectem sobre a própria vulgarização, criando ilusões que mais tarde correrão contra si.
Carlos Afonso Pereira é um dos nomes que oscila entre o diálogo geracional e a distância que auto-provoca em relação a esse mesmo discurso. As suas propostas baseiam-se numa relação difícil com o texto, que possui e consome, e o corpo, para o qual busca correspondente directo da intenção. É comum pretender que o espectáculo se forme a partir de um “casulo”, onde cruza a denúncia do efeito cénico superficial, com a implicação subjacente ao acto de ver um espectáculo. São, por norma, espectáculos sobre o tempo – o que passou (e existe no texto), o que se cria (entre cena e público) –, e onde este existe enquanto instigador de (novas) atitudes. Sejam elas performáticas ou voyeurísticas.
A sua última criação, Shopping & Fucking regressa ao teatro exposto (o termo inglês é in-yer-face theatre) de Mark Ravenhill (a peça anterior, Fausto Morreu, foi apresentada em Dezembro 2005) para um espectáculo que mais do que uma construção sobre o declínio das relações é uma revisitação de um tempo, um modo e uma forma de transformar o teatro em espelho da sociedade. De uma sociedade particular, a londrina, e de um tempo especial, o pós-descoberta da SIDA, onde o sexo voltava a ser arma de arremesso, mas agora comportando uma dimensão hiper-trágica, onde o vulgar e o pop se encarregavam de big brotherizar qualquer relação.
A peça foi escrita em 1997 e trata da banal compra e venda dos corpos e das almas (mas Ravenhill não é Koltés), onde se joga tudo, excepto a verdade: A ama B e C mas deixa-os para encontrar D que não ama ninguém, logo, quer todos. Mas é curioso verificar como em dez anos este discurso amargo e deprimido sobre o insucesso das relações, a claustrofobia das grandes cidades e o sexo como grande deus ex-maquina se tornou banal, quase ultrapassado. E se alguma mais-valia parece existir nesta encenação é precisamente por propor, através de um descarnar do texto, uma deslocação e isolamento que, se postos em perspectiva, fazem mais pelo lado plástico e superficial que a peça denuncia, do que qualquer outra cristalização das ideias-chave que Ravenhill pretende expor.
Não me parece contudo que essa tenha sido uma opção consciente da encenação, que preferiu antes expor um duplo mecanismo de manipulação e máscara, sobretudo no “2º acto”. Aos actores é feito o desafio de jogarem a partir das regras estabelecidas pelo mefistofélico encenador, na dupla condição de observador (manipulador) e personagem (sedutor), naquela que é a mais interessante e implicada presença em todo o espectáculo. Ao entregar cartões que indicam qual a personagem que irão interpretar, amplia-se a volatilidade das relações, mas também se fragiliza o desenvolvimento da acção. Sobretudo porque o registo parece não sofrer grandes cambiantes e a dependência do texto se torna mais evidente.
Ainda assim, é inteligente a adaptação de Carlos Afonso Pereira, que substitui o sexo pelo cérebro – e há sexo, muito sexo, dito e feito, neste texto –, e cria uma movimentação tão claustrofóbica quanto felina (mesmo que essa dengosidade possa ser irrealista). Mas tudo isto se perde num jogo interpretativo morno. E porque é nos actores que se realizam as projecções (aqui sublinhas por cada um deles interpretar personagens que também estão a representar, a fingir, a fugir), o espectáculo carece de uma energia, de um outro tempo, de um outro espaço que aqui não se concretiza.
Parece assim gorada a tentativa de explorar uma (tão necessária) nova relação com objectos criativos que, querendo falar sobre o nosso tempo, são, neste mesmo tempo, objectos de difícil inscrição. Provavelmente tal como este espectáculo que, de tanto procurar a manipulação, se enredou na sua própria teia de ilusões.
Outros espectáculos de Carlos Afonso Pereira criticados neste blog: Via Dolorosa, Fausto Morreu. Ensaio sobre, entre outros, o trabalho do encenador publicado neste blog. Outros espectáculos de Mark Ravenhill criticados neste blog: Product. Crítica de Miguel-Pedro Quadrio a Shopping & Fucking no Diário de Notícias. Mais informações sobre o autor .
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