quinta-feira, janeiro 12, 2006

Ver para crer

Analise a Fausto Morreu
de Carlos Afonso Pereira
até 15 Janeiro na Casa dos Dias da Agua, Lisboa



Fausto morreu é um espectáculo com um inteligente dispositivo cénico que consegue escapar à tendência moralista do texto através de uma concepção global coerente, irónica e cheia de potencial, mas que se perde no limitado aproveitamento dos recursos artísticos, ainda que a humildade e entrega do intérprete deixe adivinhar a sinceridade da proposta. A sua estrutura permite uma abordagem também ela segmentada. A saber:

1 – a vigilância: o espaço cénico da autoria de Pedro Silva é um eficiente espaço fechado, um cubo aberto e delimitado por quatro ecrãs suspensos de cada lado, colocando a plateia no interior deste dispositivo, observando para dentro. A cenografia acaba por funcionar como um dispositivo panóptico, dominado pelos quatros ecrãs onde o texto de Mark Ravenhill é projectado na sua forma literária. A percepção de uma relação panóptica surge aqui a partir da presença do fantasma de Foucault na personagem de Alain e sobretudo porque que se cria uma relação ambígua entre o centro e a periferia, entre vigiar e ser vigiado: quem vigia quem? O dispositivo cria uma perversa relação entre ver e ser visto, uma vez que os espectadores estão à frente uns dos outros mas o olhar é fatalmente atraído para os ecrãs. Esta atracção liga-se ao tema do texto, uma vez mais através da visão.

2 – as imagens do texto: Fausto Morreu, de Mark Ravenhill, inscreve-se numa linha dramatúrgica de jovens autores como David Harrower, Sarah Kane ou Mayenburg. Pessoalmente, reconheço esta tendência como a linha da frente de um certo naturalismo que regressa à dramaturgia contemporânea. De novo os apelos à realidade, à vida em cena, desta vez recorrendo à imitação das acções de ruptura, de violência, de existência gratuita e caos. De novo, a verdade dita por personagens decadentes, marginais e condenadas. De novo, o moralismo e o remorso.

A proposta de Carlos Afonso Pereira contraria bem a tendência do texto substituindo a representação do real por outra representação do real, o texto literário. Ou seja, utiliza o texto como operador irónico que faz acontecer o texto sem o dar a ver. O próprio texto é muito cinematográfico, e desmultiplica as imagens do texto entre o ecrã de televisão, o ecrã de uma câmara de filmar e o ecrã do computador ligado à Internet.

3 – o olhar do espectador: a concepção do espectáculo orienta o olhar do espectador para uma relação literária com o texto. O texto dramático é projectado nos ecrãs na sua estrutura original, com capítulos, personagens, diálogos e didascálias. Apenas os fragmentos do Coro são ditos por Carlos Afonso Pereira. Esta estratégia de apropriação do texto como material gráfico tem vindo a criar interessantes propostas de espectáculo e constitui uma tendência contemporânea de manipulação vídeo. Vejam-se os casos recentes de Homem-Legenda, de Pedro Gil e, sobretudo Flatland, de Patrícia Portela, onde o espectáculo transforma a percepção do leitor na percepção do espectador, precisamente através do acto de leitura.

Em Fausto Morreu, os pressupostos são semelhantes. O espectador concentra a sua atenção e expectativa na leitura do texto, e a qualidade sugestiva dessa leitura cria teatralidade. O espectador torna-se tele-espectador, lê o ecrã em silêncio, e as imagens em movimento são as da sua imaginação. O problema é que parece existir só isso, e só isso se mantém como pólo de atenção. A presença real do intérprete é anulada por aquilo que o texto mais critica, o fascínio do olhar pela vida artificial dos ecrãs, e a crença de que essa vida é mais verdadeira que a realidade.

O espectáculo parece cair na sua própria armadilha. A atenção vai-se perdendo, dispersando, e os elementos ficam isolados e incomunicáveis. O intérprete perde a relação com o texto e a imagem do texto perde relação com o espaço. A ironia e o sentido crítico poderiam ser mais desenvolvidos, desmontando o sentido do texto, ou a expectativa do espectador, sobretudo através do corpo orgânico do intérprete que poderia articular os elementos do espectáculo. No final, a citação de Fausto de Murnau acaba por funcionar de forma irónica, fechando todo o sentido do texto em torno da ideia de que só o amor salva o mundo e o homem. Este momento finaliza o espectáculo através do kitsch, dando espaço ao humor que toda a concepção do espectáculo permitiria.

O que acaba por estar em causa com Fausto Morreu é o estatuto do olhar, isto é, como é que aquilo que vemos se pode tornar mais real que o real? Como é que a ficção dos acontecimentos pode anteceder os próprios acontecimentos? A relação estabelece-se entre ver e acreditar, e é acreditando que as coisas se tornam reais.

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