quinta-feira, maio 04, 2006

Gabinete de amador


Crítica a Product
de e com Mark Ravenhill
encenação de Lucy Morrison
Culturgest, 29 Abril 2006

Depois de ter escrito Mother clap’s Molly House, um musical apresentado no Royal National Theatre, em Londres, Mark Ravenhill sentiu necessidade de regressar a um dispositivo teatral simples, privilegiando uma comunicação directa. O resultado foi Product, um monólogo escrito e interpretado pelo próprio, onde um produtor de cinema narra a história do guião do seu próximo filme à actriz que pretende contratar.

Neste esquema, o texto divide a acção em duas narrativas paralelas, a do produtor que conta uma história e a história em si. A própria ideia de produto também se altera em cada nível. Sentados, frente um ao outro, separados por uma mesa baixa empilhada de guiões, o produtor tenta vender um produto à actriz, o guião. Para isso serve-se de uma série de estratagemas de sedução, ameaça e elogio para convencê-la a integrar-se no produto final. Na história que é contada o produto é… o amor? os preconceitos? ou outra coisa que envolve a primeira história?

O guião, e o núcleo do discurso do espectáculo, narra a tragicómica história de amor entre uma inglesa e um islâmico. Conheceram-se no avião, ela apaixonou-se por ele, leva-o até casa, fazem amor, trocam juras e, pouco a pouco, ela vê-se envolvida numa célula terrorista que planeia um atentado na Disneyworld-Paris. Apesar de o seu ex-namorado, Troy, americano, ter morrido nas Torres Gémeas saltando da janela («the fall of Troy»), ela apaixona-se por Mohamed e decide acompanhá-lo na missão (nas palavras do autor: «Bridget Jones junta-se à Jihad»). Mas é um sonho. Ela acorda, apavorada, e alerta a polícia para o terrorista que dorme ao seu lado. A partir daqui a narrativa de Ravenhill, a do guião, inicia uma sequência de cenas hollywoodescas, inverosímeis e disparatas, desde a auto-imolação de Mohamed à libertação dos presos de Guantanamo em modo-Rambo.

O guião é um péssimo guião, recheado de estereótipos culturais, sobre os islâmicos, e visuais, na descrição das cenas. O resultado é um comentário irónico sobre as imagens que criamos dos islâmicos, cuja presença é antecedida pelo medo, e a forma como dispomos essas imagens num produto de consumo, neste caso, o guião de um filme. Deste modo, o texto organiza um gabinete de amador. O gabinete de amador é um espaço onde se dispõem vários quadros sem ordem de exposição, sem sentido definido, como o quarto privado de um coleccionador com as paredes cobertas de pinturas. O que resulta desta disposição é um mosaico de imagens dispersas, flutuantes. No texto de Ravenhill, as imagens que mediam as relações entre islâmicos e ocidentais cruzam-se num guião de cinema, o produto final que emoldura a ambiguidade dos pré-juízos. As imagens são associadas na lógica de um filme comercial, cheio de acção e romance. Mas é a situação entre o produtor e a actriz que coloca estas imagens na qualidade irónica de produto. Por outro lado, o texto permite uma oscilação entre a descrição e acção, sendo que as imagens passam a ser descritas, e não realizadas, e a acção dramática resume-se a uma situação. A acção está na descrição.

É sempre bom assistir à interpretação que um autor faz do seu próprio texto e, sobretudo, quando o próprio o interpreta. Entre nós, tivemos oportunidade de assistir a uma estratégia semelhante com Ascanio Celestini – pese embora a radical diferença de conteúdo e estilo -, onde a teatralidade é reduzida à simples narração de uma história e à encenação dessa narração e, no caso de Product, numa encenação subtil e compreensiva do registo natural do actor e da redução da acção à situação (com Celestini, até a situação é ultrapassada pela narração).

Referenciado como um dos nomes de uma corrente literária/ teatral que se afirmou na Grã Bretanha nos anos 90, o teatro in-yer-face, Mark “Shopping-and-fucking” Ravenhill contrapõe a ironia à superfície decandente e grunge que se associa às temáticas desses textos e, em Product, o in-yer-face é o de uma comunicação descomplexada e bem-humorada que não ataca mas sugere.

Pedro Manuel