quarta-feira, maio 03, 2006

Relembrar Allan Kaprow (1927-2006) III

Conclui-se hoje a publicação do ensaio de Ana Pais sobre o performer Allan Kaprow. Nesta terceira parte do texto a investigadora observa as relações paradoxais entre arte e vida, tatro e performance, fixação e efemeridade. Dá ainda a ver o modo como Kaprow se colocou numa fronteira entre as artes performativas e visuais, construindo um universo referencial que põe em causa os limites da própria arte.

A herança viva de Allan Kaprow
por Ana Pais



Em 1983, no ensaio intitulado “The real experiment”, Kaprow propõe uma distinção entre uma “artlike art” (arte como arte), separada da vida e de tudo o resto, e uma “lifelike art” (arte como vida), ligada à vida e a tudo o resto. A primeira tem a ver com uma tradição institucional da arte que a constrange a um âmbito especializado, integrada num sistema de mercado e de valores, e com um artista – ser especial - confinado a esse contexto, afastado da experiência da vida; a segunda, tem a ver com um projecto de conexão e consciência alargada – reflexiva e atenta - que opera sobre a experiência e a representação da vida comum e com um “Unartist” (in-artista), ou seja, um artista que nunca está certo de sê-lo ou não.

É possível entendermos a “arte como vida” se reequacionarmos o conceito de arte e, para isso, Kaprow propõe que consideremos a arte como um “entretecer de sentidos”, um entrelaçamento de significado passível de agir sobre qualquer parte da nossa vida. Não sendo idêntica à vida, porque considera o evento um acto excepcional, a arte de kaprow actua na vida: no tempo real, no espaço real, no contexto da vida (e não da arte) e por isso dilui fronteiras, é “arte como vida”. Promovendo uma arte “alternativa” ao próprio contexto artístico, Kaprow supõe que só deixando de ser artista, trocando o conceito de arte tradicional pelo de “jogo” (o “play” que também implica brincadeira) na relação com o espectador e com o mundo circundante, a “outra-arte” poderá ser útil. A função do não-artista consiste em seleccionar e organizar acções retiradas do quotidiano, criando um conjunto de sentidos diferente, ou seja, criando um happening: na vida, uma menina pode colher flores e espalhá-las pelo supermercado; num happening, este evento, inserido num conjunto de outros tantos, tem implicações de sentidos outras, relativamente ao mesmo acto isolado na vida. Esta “arte como vida” baseia-se também no aspecto lúdico do jogo e do humor como instrumentos da criação.

Concordemos ou não, faz-nos pensar. Sobretudo, suscita novas perguntas: talvez as alterações do conceito de arte não se resumam a transformações cronológicas e evolutivas, mas possam ocorrer também em diversos planos simultaneamente, em paralelo no mesmo período de tempo, diferentes de formas estereotipadas ou hierarquizadas de diagnóstico (como na distinção de baixa cultura e alta cultura).

Como já terão tido a oportunidade de reparar, considerar “18 happenings em 6 partes” como um clássico do século XX assenta num imenso paradoxo: como é possível apresentar como um clássico uma obra que, nem é bem teatro nem é bem arte nenhuma, que inclusive se quer evadir dos contextos da arte? Como é possível fazê-lo, quando a performance tem por princípio basilar uma resistência à fixação, à preservação que o clássico tem por função garantir? Mais ainda, como é possível quando o seu autor recusa o seu nome e duvida do seu carácter artístico, e logo, de si como artista? Muito honestamente, se Allan Kaprow sonhasse que eu estou a fazer semelhante coisa teria no mínimo um valente ataque de nervos...

Aliás, pensar a arte do século XX, nomeadamente, depois dos anos 60, a partir do conceito de clássico tem os seus riscos na medida em que a arte já não se caracteriza por movimentos predominantes, mas por uma multiplicidade de discursos. É preciso não esquecer dois aspectos centrais nesta matéria:

1) que o clássico está ligado às ideias de universalidade, de intemporalidade, de excepcionalidade, mas também de cânone;

2) e que a própria acepção de cânone (e recorde-se que o cânone é uma obra reconhecida como modelo, como exemplo a seguir) colapsou com a crítica dos Estudos Culturais nos finais dos estudos pós-coloniais e feministas.

Essa crítica desmonta as implicações ideológicas e políticas que sempre haviam presidido à constituição do cânone, servindo o poder hegemónico. Até então, são raros os casos de mulheres, de indivíduos de países colonizados ou homossexuais que constem de uma lista de autores clássicos. O que acontece na sequência da contestação da universalidade do cânone é uma elaboração de cânones paralelos, que não funcionam como modelos mas como obras representativas de uma comunidade específica. O valor dos cânones dos século XX é fluído e mutável. Inclusivamente, só quando os estudos de teatro se emancipam dos estudos literários (teatro não é sinónimo de texto dramático) e o espectáculo adquire um estatuto igual ao do texto, é que se torna possível optar entre abordar um ou outro, por exemplo, para este sessão. Torna-se, pois, urgente repensar o conceito de clássico.

Se substituirmos a noção de “modelo” (e consequentemente, de regra) pela de “referência” (até porque não temos distância suficiente para podermos avaliar as obras em termos de intemporalidade) e a noção de “excelência” pela de “contribuição”, o conceito tornar-se mais produtivo.

Assim, uma obra como “18 happenings em 6 partes” pode ser entendida como uma referência para o fenómeno da performance. Em traços largos, a performance herda, quer a noção de espaço marginal – implicado social e politicamente - quer a de incorporação de materiais e comportamentos do quotidiano, que se estendem e ampliam horizontalmente. Assistimos a um pluralismo de formas e géneros que se caracteriza pela interdisciplinariedade ou por um cruzamento de linguagens: os concertos e performances do movimento Fluxus, a “escultura social” de Beuys, a crítica feminista e autobiográfica de Rachel Rosenthal, espectáculos multimédia como os de Laurie Anderson, as performances pós-coloniais de Guillermo Gomez-Peña e Coco Fusco, entre tantos outros.

A contribuição de Allan Kaprow passa, sobretudo, pela abertura de uma zona interdisciplinar entre as artes visuais e o teatro. O facto de partir de uma dimensão espacial, de introduzir materiais do quotidiano na obra e de desafiar a relação clássica do espectáculo com o espectador terá consequências notórias. Por um lado, o espaço torna-se matéria expressiva e com esta nova consciência o teatro pôde, por exemplo, repensar a sua visualidade ou partir para espaços não-teatrais, facto particularmente evidente nas produções “site-specific” que recuperam a memória e a arquitectura específica de determinado lugar para criar um espectáculo. A par do espaço, e porque se instala uma paridade entre linguagens (o texto, o som, a luz, etc.), todos os outros materiais cénicos ganhariam um outro relevo e autonomia na composição do espectáculo. Por outro lado, ao ser questionada a relação frontal entre palco e plateia, o teatro formula novas hipóteses de organização e de participação do espectador (embora a noção de participação em Kaprow seja bastante particular), criando vários pontos de vista, vários espaços e explorando a perspectiva física da sua percepção.

Gostaria de terminar partilhando uma reflexão particularmente interessante de Allan Kaprow. Talvez um outro contributo possível. Também ele, como a linha filosófica de Hegel a Adorno, considera que a arte deixou de ser fértil, tendo falido como instrumento social. Por isso, e não só por razões de ordem estética, ele procura superar os limites da arte através da interdisciplinariedade e da criação de uma arte, que não é bem arte. Sempre me pareceu um pouco contraditório o facto de a arte permanecer na sociedade contemporânea, enquanto no discurso teórico pós-modernista predomina uma ideia de fim, traduzida numa expressão como “a falência da promessa de felicidade do modernismo”.

Ora, o que Kaprow defende, e eu subscrevo inteiramente, é que o conceito de “transcendência” associado à arte - porque é disso que se trata, da felicidade e da arte como transcendência: a busca da verdade, a revelação, o artista como um visionário - projecta uma promessa implícita de perfeição (de felicidade? acrescento) para um outro âmbito (eu diria, o futuro), diferente da vida do ser humano. A forma que Kaprow encontrou para continuar a criar foi pensando que, em vez de nos cansarmos a lutar pela felicidade, que talvez nunca virá, mais vale demonstrar, no seu caso, através de uma “arte como vida”, um “modo de viver com sentido neste mundo” (ou seja, com direcção e significado, no presente). Não será esta uma forma de gerar felicidade, uma felicidade tangível, ao alcance da mão?

Há pouco falava da universalidade do clássico: não será tão universal, não será tão comum a todo o ser humano, tanto o grande conflito de poder dos reis quanto o acordar ou o respirar todos os dias? Talvez a felicidade seja real apenas no presente – fazendo, participando, construindo – no espaço da arte e da vida, simultaneamente. Talvez por isso a performance se enraize no presente, no efémero, para ser feliz sempre: no tempo, espaço e actos presentes.


Ana Pais é professora e investigadora na Escola Superior de Teatro e Cinema. É autora do livro O Discurso da Cumplicidade, edições Colibri.

Fotografias e hiper-ligações da responsabilidade do blog.

1 comentário:

Anónimo disse...

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