Prossegue hoje a publicação do ensaio da crítica e investigadora Ana Pais sobre o legado do performer Allan Kaprow, falecido no passado dia 05 de Abril. Nesta segunda parte é colocado em confronto a noção de happening e o teatro, dando-se conta da "morfologia" defendida por Kaprow. Para além disso dá-se conta da relação arte e vida, defendida por Kaprow como uma experiência capaz de construir pequenas narrativas.
A herança viva de Allan Kaprow
por Ana Pais
A. Kaprow, Los Angeles, 1961
Do ponto de vista dos estudos de teatro, os happenings tendem a definir-se pela negativa ou por uma condição “não-matricial”, ou seja, o happening não apresenta uma matriz de representação, na terminologia de Michael Kirby, um dos primeiros teóricos da performance (inclusive, a minha descrição de “18 happenings em 6 partes” foi baseada na obra “Happenings”, de 1966, e é um dos poucos registos de que tenho conhecimento). Sendo aparentemente um acto teatral, o happening não recorre às matrizes de representação tradicionais do teatro: não usa o palco, nem representa um espaço; não remete para um tempo, o tempo é o tempo real da duração da acção; não conta uma história; não existem personagens nem actores e daí a minha insistência em utilizar o termo performers. Esta é uma das perspectivas de leitura dos happenings, que, frequentemente, integra as histórias das artes performativas, analisando-os em contraste com o teatro.
As características dos happenings que me parece importante destacar aqui são três: a utilização do espaço, o acto irrepetível de duração variada e a relação com o público, porque são elas que, no meu entender, mais marcaram as artes performativas.
1. O espaço. Já referi que o tratamento do espaço é fundamental para os happenings. A partir do momento em que uma galeria de arte é inaugurada com uma “nova arte”, que resulta da justaposição de linguagens plásticas e performativas, tal como o propôs Kaprow, o espaço torna-se o ponto comum onde a obra se implanta e acontece, simultaneamente. Por um lado, ele consiste na criação de “ambientes”, com materiais que despertem memórias ou ligações com o quotidiano, produzindo um contexto novo de sentidos onde o espectador é integrado. O próprio espaço físico onde se realizam os happenings são lugares do quotidiano: a rua, a natureza ou espaços não-convencionais. Muito próxima das instalações ou dos espectáculos site-specific contemporâneos, a relação com o espaço ganha então uma qualidade dramatúrgica, na medida em que a selecção e organização dos materiais na obra parte do pressuposto que todos eles são paritários e que potenciam sentidos; esta é uma das linhas de pesquisa das artes performativas (lembro que a palavra original de “ambiente” é “environment” e é a partir dela que Richard Schechner desenvolveria o seu conceito de “environmental theatre”).
Por outro lado, o que impulsiona a exploração do espaço é o questionar os limites artísticos que condicionam a obra e a criação. Para compreender este aspecto é necessário referir o percurso artístico de Kaprow. Nos anos 50, começa por fazer colagens, depois assemblages (procurando então materiais exteriores à pintura, tal como Rauschenberg, incluindo desde logo o som) até chegar aos “ambientes” (“environments”), proto-instalações com objectos retirados do quotidiano, ocupando todo o espaço da sala da galeria. A sua procura faz-se no sentido da transgressão dos limites da obra pictórica, sendo a “extensão” a sua unidade de medida preferencial: ampliar o leque de materiais, ampliar o espaço (da superfície às 3 dimensões; da sala da galeria até à rua).
As características dos happenings que me parece importante destacar aqui são três: a utilização do espaço, o acto irrepetível de duração variada e a relação com o público, porque são elas que, no meu entender, mais marcaram as artes performativas.
1. O espaço. Já referi que o tratamento do espaço é fundamental para os happenings. A partir do momento em que uma galeria de arte é inaugurada com uma “nova arte”, que resulta da justaposição de linguagens plásticas e performativas, tal como o propôs Kaprow, o espaço torna-se o ponto comum onde a obra se implanta e acontece, simultaneamente. Por um lado, ele consiste na criação de “ambientes”, com materiais que despertem memórias ou ligações com o quotidiano, produzindo um contexto novo de sentidos onde o espectador é integrado. O próprio espaço físico onde se realizam os happenings são lugares do quotidiano: a rua, a natureza ou espaços não-convencionais. Muito próxima das instalações ou dos espectáculos site-specific contemporâneos, a relação com o espaço ganha então uma qualidade dramatúrgica, na medida em que a selecção e organização dos materiais na obra parte do pressuposto que todos eles são paritários e que potenciam sentidos; esta é uma das linhas de pesquisa das artes performativas (lembro que a palavra original de “ambiente” é “environment” e é a partir dela que Richard Schechner desenvolveria o seu conceito de “environmental theatre”).
Por outro lado, o que impulsiona a exploração do espaço é o questionar os limites artísticos que condicionam a obra e a criação. Para compreender este aspecto é necessário referir o percurso artístico de Kaprow. Nos anos 50, começa por fazer colagens, depois assemblages (procurando então materiais exteriores à pintura, tal como Rauschenberg, incluindo desde logo o som) até chegar aos “ambientes” (“environments”), proto-instalações com objectos retirados do quotidiano, ocupando todo o espaço da sala da galeria. A sua procura faz-se no sentido da transgressão dos limites da obra pictórica, sendo a “extensão” a sua unidade de medida preferencial: ampliar o leque de materiais, ampliar o espaço (da superfície às 3 dimensões; da sala da galeria até à rua).
Kaprow desistiria muito rapidamente da galeria, a sala implicava uma estrutura arquitectónica e institucional que não lhe interessava, passando a fazer os seus happenings em garagens, pontes, quartos, florestas, ou em vários simultaneamente (foi precursor de “espectáculos em rede” – realizou happenings que ocorriam em cidades diferentes e gostaria mesmo era de fazê-los em diversos pontos do mundo, comunicando por carta ou telefone... hoje, seguramente pela internet). No momento em que observa o modo como os visitantes ocupavam e transformavam os ambientes que criava (com as cores das suas roupas ou pela simples presença no espaço), Kaprow expande o leque dos materiais para a integração total da presença humana nas suas obras. “18 happenings em 6 partes” é um primeiro e incipiente passo para a performatividade, uma primeira experiência limite do que poderia resultar se os materiais do espaço se estendessem pelo tempo através de acções. O teatro abria-lhe portas para o território do acto, do gesto efémero, pretendendo assim libertar-se dos limites das artes plásticas; no entanto, assim que Kaprow sai de um contexto artístico entra imediatamente noutro, vendo-se forçado a posicionar-se e a lidar então, quer com os códigos específicos do teatro (como mencionei há pouco, a teoria do teatro ocupa-se dos happenings, colocando-os numa posição marginal) quer com as expectativas culturais do público.
2. O acto irrepetível. O tempo do happening é o tempo real de duração das acções: é variável (de minutos a dias), descontínuo (têm intervalos de igual variabilidade), simultâneo (alberga várias acções) e irrepetível. A obra de que hoje vos falo teve a duração de 90 minutos, divididos em partes de tempo variáveis em que ocorriam acções repetidas em simultâneo, teve seis representações entre 4 e 10 de Outubro de 1959. A questão do tempo está, naturalmente, ligada à narratividade sequencial aristotélica, quebrada com a simultaneidade e a dispersão de focos de atenção. Mas há outras implicações. O acto quer-se, segundo Kaprow e a generalidade das teorias da performance actuais, efémero e irrepetível. Não só o happening, como a performance em geral, tem como traço distintivo o seu desaparecimento à medida que acontece – a sua existência caminha para a própria dissolução -, como também resiste e nega a documentação, o registo (as imagens que viram são todas de ensaios), combatendo assim a lógica da reprodução ou comercialização da obra e da preservação, inerente aos bens culturais. Um happening não se pode comprar nem levar para casa, e, como rejeita a fixação de imagens (quando o faz, deixa de ser performance para ser fotografia, vídeo, etc.) nem segue um texto, adquire um estatuto de invisibilidade que é a sua força vital. Só quem lá esteve poderá ter usufruído da experiência.
2. O acto irrepetível. O tempo do happening é o tempo real de duração das acções: é variável (de minutos a dias), descontínuo (têm intervalos de igual variabilidade), simultâneo (alberga várias acções) e irrepetível. A obra de que hoje vos falo teve a duração de 90 minutos, divididos em partes de tempo variáveis em que ocorriam acções repetidas em simultâneo, teve seis representações entre 4 e 10 de Outubro de 1959. A questão do tempo está, naturalmente, ligada à narratividade sequencial aristotélica, quebrada com a simultaneidade e a dispersão de focos de atenção. Mas há outras implicações. O acto quer-se, segundo Kaprow e a generalidade das teorias da performance actuais, efémero e irrepetível. Não só o happening, como a performance em geral, tem como traço distintivo o seu desaparecimento à medida que acontece – a sua existência caminha para a própria dissolução -, como também resiste e nega a documentação, o registo (as imagens que viram são todas de ensaios), combatendo assim a lógica da reprodução ou comercialização da obra e da preservação, inerente aos bens culturais. Um happening não se pode comprar nem levar para casa, e, como rejeita a fixação de imagens (quando o faz, deixa de ser performance para ser fotografia, vídeo, etc.) nem segue um texto, adquire um estatuto de invisibilidade que é a sua força vital. Só quem lá esteve poderá ter usufruído da experiência.
E isto leva-nos à terceira característica dos happenings: a relação com o público. Assim que o espectador entra na Reuben Gallery para assistir ao happening, estava de imediato imerso nele. Ele não só era obrigado a deslocar-se no espaço entre as três salas (como numa exposição, só que com regras), como também era impedido de ver a totalidade do que acontecia. A relação frontal público/palco em que o teatro ocidental assentava, e que focalizava o olhar do espectador para uma acção central e linear, dava lugar a uma fragmentação, impedindo a visão total do espectáculo e questionando os tradicionais modos de percepção. (Este é um traço que, seguramente, vos recorda muitos espectáculos pós-modernistas) Nas várias salas de “18 happpenings em 6 partes”, o público teria acesso a uma parte do que acontecia, podendo voltar-se para os lados em alguns casos ou vislumbrar as sequências que ocorriam lateralmente ou por detrás do plástico que dividia os espaços.
O que hoje nos parecerá quase banal (assistir a um espectáculo em pé, seguir actores, deslocarmo-nos pelo espaço, estarmos em espaços não-convencionais), não o seria seguramente para o público nova-iorquino em 59. Para Kaprow, o entendimento do espectador como participante é motivado por princípios de fundo orientadores de toda a sua experimentação: como diria mais tarde numa entrevista, chamar aos espectadores participantes só porque se movem e porque lhes atiram com maçãs, é exigir pouco do conceito de participação. O que estava sobretudo em causa para Kaprow (que, tal como Cage, recebera as influências da filosofia oriental) era a função da arte na sociedade, e o conceito de arte em si, considerando-a viável ao nível da participação empenhada do espectador e da experiência vivida, requerendo igualmente um conhecimento prévio e daí as instruções.
A arte como experiência, como actuação directa na construção das pequenas vidas reais, implica o espectador no que respeita a responsabilidade da sua participação no evento e requer o compromisso e a consciência da sua escolha. Os materiais do quotidiano e a experiência são, para Kaprow, a via pela qual a arte seria integrada na vida comum. Esta noção de arte como experiência marcará todo o percurso de Kaprow e decorre de uma outra grande influência: a concepção de experiência estética de John Dewey, um dos filósofos do pragmatismo americano do início do século XX. Para Dewey, a experiência estética radica na experiência da vida quotidiana na medida em que qualquer unidade de sentido passível de fruição imediata, quer na vida comum quer na arte, adquire uma qualidade estética. Neste contexto, o que distingue a arte da vida é a ênfase que o artista dá à fruição imediata, através da sua forma de dispor e recriar os sentidos e valores da vida humana. Esta é, segundo o filósofo, a função crítica da arte, do seu papel questionador mas integrado na comunidade, ancorado na experiência de sentido, comum à vida e à arte, na qual o espectador participa em ambos os níveis.
Assim se compreende que Kaprow entenda o simples acto de lavar os dentes ou de contar carros no cimo de uma ponte como um happening (uma espécie de “ready-made” performance), desde que essas experiências sejam realizadas com um intuito da descoberta, servindo-se de indicações-base que são fruto de uma escolha na qual o artista está implicado, activando um modo de prestar atenção, de ver o que normalmente não vemos.
A atenção constitui para este artista o espaço liminal da performance e não será o único: Cage observa os ruídos da cidade e o silêncio para compor, Cunningham observa os gestos do quotidiano para coreografar, isto para não me alongar pelo fundamental papel político da performance feminista ou do papel ecológico da land-art.
Uma das maiores contribuições de Kaprow, no meu entender, é esta sua capacidade de questionar o conceito de arte através de textos teóricos, da sua profissão enquanto formador e da sua actividade artística. O seu discurso é multifacetado e mais rico por isso. E faz-nos questionar a nós também, pois, se a sua arte é tão próxima da vida ao ponto de não precisar de um público para existir (hoje [2002] Kaprow não admite um espectador observador nos seus happenings) e se toda a sua “extensão” por territórios não sinalizados tem origem numa necessidade de sair dos parâmetros reguladores da arte (e das suas instituições), então ainda é arte? Um dos seus desejos, por exemplo, era o de estabelecer um sistema de “encomenda de happenings”: fazer listas de guiões com actividades precisas (lavar o chão de uma sala com um pincel, marcar encontros em simultâneo em cidades diferentes) que o participante poderia escolher e fazer no seu dia-a-dia, durante uns minutos, dias ou até anos! Uma espécie de “happening-faça-você-mesmo” que o participante poderia experimentar e com o qual poderia aprender.
Este era o Kaprow de 1959, aquele que queria ser o artista mais moderno de toda a modernidade! Em 1966, porém, de tal maneira o termo happening é apropriado pelo discurso artístico e pelo discurso mediático, que Kaprow o recusa. Ir a um happening tornara-se “in”. Num outro texto sobre esta matéria, dizia que a palavra tinha de morrer pois estava comprometida pelo excesso de contaminações que sofria, que toda a vida parecia ter-se transformado num grande happening: por exemplo, o slogan de uma campanha política de Bob Kennedy era “Bobby Kennedy is a Happening” ou uma publicidade televisiva da Revlon terminava “that was a happening by Revlon”. O termo, que pretendia designar uma arte nova, acabara por ser capitalizado numa ideia vazia. De facto, Kaprow passa a designar os seus eventos por “actividades” e o público por “participantes”.
Na verdade, o que Kaprow inteligentemente constrói é uma estratégia de indefinição: indefinição entre o que é arte e o que é vida, procurando cruzá-las num todo, ao contrário da arte tradicional que separa os dois campos; indefinição entre o que é um artista e o que não é. Sabendo que o contexto da arte é limitador, percebe que não pode escapar dele e, assim sendo, a sua táctica será a da dissolução de fronteiras e uma ambiguidade que o levará a afastar-se da fama e do mercado da arte, mantendo-se numa zona marginal de actuação.
Conclui amanhã
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