segunda-feira, maio 01, 2006

Relembrar Allan Kaprow (1927-2006) I

O texto que se segue serviu de base à conferência que Ana Pais, investigadora e professora da Escola Superior de Cinema e Teatro, apresentou na Culturgest em 2002. O desaparecimento do performer norte-amerciano Allan Kaprow, no passado dia 09 de Abril justificou o convite à publicação do texto até agora inédito. Nesta primeira parte a autora dá conta da noção de happening, termo criado e desenvolvido por Kaprow, a partir de alguns exemplos que puseram em causa a relação objecto-espectador-performer na década de 60. O texto continua amanhã e depois.

A HERANÇA VIVA DE ALLAN KAPROW
por Ana Pais


Os anos 60 constituem um período de efervescência artística em que a experimentação de linguagens da obra de arte se expandem por novos caminhos. Até então, as fronteiras entre as disciplinas artísticas eram estanques e os seus géneros reconhecíveis pelos materiais e linguagens específicos de cada arte. Do contexto pós-guerra, emerge a segunda vanguarda (ou neo-vanguarda) do século XX, na qual se incluem nomes como, por exemplo, Piero Manzoni em Itália, Yves Klein em França, Kantor na Polónia, o movimento Fluxus entre a Europa e a América, Claes Oldenburg, Jim Dine e Valie Export nos Estados Unidos.

Imaginem que, neste ambiente de agitação, recebem em casa um convite para a inauguração de uma galeria de arte no qual se diz terão lugar 18 “happenings”, palavra então desconhecida e enigmática, e se convida o visitante a “colaborar” com Allan Kaprow (conhecido artista plástico e professor de história de arte na Universidade de Rutgers), na realização do acontecimento. Acrescenta-se que os convidados se tornariam parte integrante dos happenings e, simultaneamente, os experimentariam.

Mais ainda, acautela-se o público para não esperar encontrar pinturas, esculturas, dança ou música; apenas situações “envolventes” cujo formato o artista entende por bem deixar sem título. Outros materiais promocionais anunciavam acções “íntimas e austeras”, sem qualquer ambição de produzir um sentido claramente formulado por parte do autor.

Imaginem agora que chegam ao local do evento (o loft da Reuben Gallery, no dia 4 de Outubro de 59) e recebem um programa, com instruções e lista de participantes, bem como três cartões, indicando quando e onde se devem sentar (por exemplo, na parte 1 e 2, sente-se na sala 1, sendo que o seu acompanhante deveria dirigir-se à sala 3). Ao separar os visitantes que já se conheciam pelas várias zonas, estes cartões permitiam reformular as relações entre eles, criando um conjunto de indivíduos reunidos em torno da apresentação que teria lugar.

Imaginem que, ao olhar para o programa, reparam que, na coluna do elenco, não constam nomes de personagens, mas apenas funções (como falar, mover-se, tocar um instrumento) para cada um dos 6 performers (entre eles, os promissores artistas George Segal e Robert Whitman, para além do próprio Kaprow). No elenco, figuram igualmente os “visitantes” (que seriam convidados especiais como Grooms ou Rauschenberg).

Na coluna das instruções, podia ler-se: “A performance divide-se em 6 partes. Cada parte contém 3 happenings que ocorrem simultaneamente. O princípio e o final de cada uma será assinalado por 1 toque de campainha. No fim da performance, ouvirão 2 toques de campainha.” Todos devem seguir atentamente as mudanças de lugar previstas nos cartões. E não era tudo: dizem-lhe que, entre a parte 1 e 2, haverá um intervalo de 2 mn e que deverá permanecer sentado; que entre a parte 2 e 3, haverá um intervalo de 15 mn e que aí poderá deslocar-se à vontade, e assim sucessivamente; decreta-se ainda que não haverá aplausos no final de cada parte, mas que, se desejasse, podia aplaudir no final da 6ª parte, embora ninguém viesse agradecer.

Imaginem que, ao entrar pelo amplo espaço rectangular da galeria, se deparam com três salas, diferentes em tamanho, assinaladas numericamente; a primeira é a zona onde se encontram e de onde se vêem a Segunda sala, à esquerda, e a terceira, atrás e mais à direita. As três salas estão divididas por uma estrutura de madeira coberta a toda a volta com plástico semi-transparente, não chegando ao tecto da galeria e formando corredores de passagem. Ao fundo, por trás da terceira sala, esconde-se a zona de projecções de slides e uma espécie de bastidores, por onde se farão as entradas e saídas dos performers.

Olhando à volta, observam que cada sala é dominada por uma cor (sala 1: cor-de-rosa; sala 2: azul; sala 3: azul-claro), que as estruturas das salas 1 e 3 estão encimadas por lâmpadas de cores alternadas; que em algumas paredes se encontram colagens e assemblages compostas por materiais de natureza variada (telas amarrotadas, palavras como “was”, “ha”, maçãs artificiais, luzes de Natal, jornais, fios eléctricos, tecido pintado). Notam ainda que a disposição das cadeiras varia igualmente (por exemplo, na sala dois, a do meio, as cadeiras estão colocadas em duas filas, de frente uma para a outra e de lado para as restantes salas, permitindo que estas sejam vistas através do plástico).

Imaginem que ocupam os vossos lugares, talvez um pouco desconfortáveis porque não haverá ninguém ao lado para partilhar infinitas perplexidades, e ...esperam. Ao toque da prometida campainha, sons altos, não-melódicos, urbanos e electrónicos disparam das 4 colunas nos cantos da galeria, elemento que talvez tivesse escapado a um primeiro olhar. Rapidamente se percebia que, apesar da gravação ser a mesma, as colunas estavam dessincronizadas, criando um tipo de sonoridade em “delay” ou em cânone, cada coluna com inícios diferentes, estabelecendo um diálogo entre si. Do fundo da sala, dos ditos bastidores, desfilam devagar, em fila indiana, os performers da primeira parte, vestidos com roupas do dia-a-dia. Cada um com uma cara mais inexpressiva do que o outro, movem-se de forma artificial, o que se manterá até ao final do evento. Caminham sempre em linhas direitas; mudar de direcção só com ângulos rectos e nunca atravessam o espaço na diagonal. Distribuindo-se pelas salas, cada performer pára momentaneamente e desempenha sequências estipuladas no guião minuciosamente escrito por Kaprow (indo ao pormenor coreográfico de prever a duração de cada posição ou dos segundos entre cada movimento) e ensaiado durante duas semanas. Consoante a sala em que estejam sentados, podem ver movimentos gímnicos, gestos do quotidiano ou projecções de slides (desde sequências rápidas de formas geométricas coloridas, obras de Kaprow, passando por desenhos de crianças, obras de pintores clássicos, ou fotos de nus), tudo cronometrado até ao milímetro. No final de cada parte, a campainha toca, as luzes baixam e os performers, em idêntica postura silenciosa e rígida, regressam ao corredor de passagem e saem de cena.

Na parte 3, por exemplo, um gira-discos dirige a acção de dois performers a partir da voz gravada do próprio Kaprow: “Are the gentlemen ready?”, começa, despertando a irónica dúvida de saber se a pergunta se dirige ao público (estaria o público preparado para os happenings?) ou para os dois performers. A situação clarifica-se de imediato, pois a gravação continua com instruções dirigidas a ambos os performers no sentido de colocarem em cima de uma mesa pequenos cubos brancos com letras vermelhas dos lados.

Na parte 4, 4 performers dispostos em linha paralela ao público preparam um concerto “assinfónico”, em que cada um funciona independentemente: um toque nas cordas do violino, um sopro na flauta, cortes abruptos, longos silêncios. Na quinta parte, o “homem-sandwich” (construção com braços metálicos, cabeça e espelhos à frente e atrás) é trazido por uma performer para a sala 2 (onde já está um outro a ginasticar com a sua gravata); ao lado deste, a performer liga o objecto a uma ficha que pendia do tecto e, do gira-discos incorporado no “homem-sandwich”, irrompe uma velha e estridente melodia de polka. Enquanto isso, na sala 1, uma performer espreme, uma a uma, 12 metades de laranja para os 12 copos onde estavam previamente colocadas, bebendo o sumo. O cheiro das laranjas misturado com o da tinta proveniente de duas latas abertas, criava uma atmosfera de aromas a que era difícil ficar indiferente. Depois de terminada a acção, a performer espera imóvel pelo toque salvador do gongo!

Depois de 90 minutos assim, poderão imaginar o sobressalto do vosso pensamento: “será que me enganei? Não era hoje? Eu não devo estar no sítio certo, pois se eu vinha para uma inauguração de uma galeria de artes plásticas?” A verdade é que se tratava de um novo género: o happening, forma híbrida e marginal nos contextos até então conhecidos no âmbito das artes plásticas e performativas, que a partir dos finais dos anos 60/princípios de 70 viria a receber o nome “performance”.

O happening (termo que para Kaprow naquele momento designava somente as acções particulares de cada parte do evento, que ele preferia não nomear) é composto por uma estrutura sequencial de acções de carácter performativo, simultâneas e sem relação causal entre si, num ambiente visualmente cuidado, ou seja, num “environment”. O happening é, sobretudo, uma acção, um acto que assenta na experimentação dos limites das artes que convoca, reunindo uma comunidade de espectadores. Os tempos, os locais ou formas que viriam a assumir são tantas quantos os seus autores; cada um desenvolve um conceito próprio de happening, mas aquele a que me irei cingir aqui é, naturalmente, o de Kaprow.

A sua composição estética, tal como a define Kaprow numa obra escrita maioritariamente em 1959 (“Assemblages, Environments and Happenings”), consiste numa “colagem de eventos que ocorrem em determinados períodos de tempo e em determinados espaços”. Essa colagem, ou justaposição, opera sobre um leque de materiais muito variado, incluindo, em particular, elementos até então exteriores à arte tais como plásticos, roupas, brinquedos, fotografias, objectos de madeira, peças de máquinas, etc.. Kaprow entende estes elementos extraídos do quotidiano, do contexto urbano, por um lado, como materiais que constituem a subjectividade da própria obra de arte – trazem consigo e geram na obra sentidos -, ao contrário da acepção tradicional de materiais como formas inócuas que transportam a subjectividade do autor, aquilo que o autor “quer dizer”; e, por outro, como componentes tão válidos como os meios artísticos por excelência, ou seja, habitando a obra com igual estatuto e importância. O método utilizado por Kaprow para organizar e seleccionar esses materiais deriva de operações de acaso, ou seja, ele tira partido de procedimentos aleatórios (girando uma roleta, jogando dados ou extraindo papéis de um saco) como uma forma de questionar e perturbar padrões de composição convencionais.

Literalmente, o happening é “aquilo que acontece” a partir de um guião ou de uma estrutura ensaiada, contemplando, porém, espaço para o que pudesse surgir inopinadamente na situação. Contrariamente ao carácter improvisado e espontâneo que tendencialmente lhe está associado, o happening, sobretudo no início, é altamente elaborado e regrado. (Inclusive, conta-se que Kaprow ficava furioso quando os convidados para “18 happenings em 6 partes”, artistas como Red Grooms, Jasper Johns ou Rauschenberg, se levantavam das cadeiras entre o público, mas não pintavam exactamente os círculos ou riscas, conforme lhes tinha sido pedido...) Kaprow irá abandonar esta atitude progressivamente (assim como os ensaios) e, no meu entender, ela reflecte apenas uma reacção perante o desconhecido e não tanto uma questão de controlo autoral, coisa de que muitas vezes é acusado: ele sente necessidade de controlar, de dominar a criação, porque tem consciência de que a obra lhe escapa, que se projecta num universo cujos códigos não conhece e por isso a sua insistência em não lhe dar um nome e deixá-la acontecer. Numa entrevista de 1968, reconhecerá que, apesar do controlo ser necessário ao happening, se for em demasia não funciona. Mas, assume, que o que ele não sabia na época era como fazer as pessoas felizes naquela situação tão diferente.

“18 happenings em 6 partes” é um evento que contém, em embrião, os traços basilares das transformações vanguardistas da segunda metade do século XX, pertinentes para o entendimento da performance na actualidade. É um objecto fundador de um caminho, único talvez não tanto pela “perfeição” que se exige a um clássico (a contestação da perfeição e superioridade da obra de arte, separada da vida, será, de resto, uma das lutas de Kaprow), mas pela influência que teve nas experimentações coevas e subsequentes no que respeita à diluição de fronteiras entre artes e géneros.

Isto não significa, contudo, que toda a história da performance nasça deste ponto, até porque, os anos que se seguiram evidenciam o surgimento de várias tendências ou movimentos paralelos com origens diversas, decorrentes dos múltiplos cruzamentos e contaminações entre as disciplinas artísticas. O acto de Kaprow é, seguramente, devedor de dois contributos que lhe estão próximos no tempo – a “Action Paiting”, de Jackson Pollock e o célebre concerto de John Cage, “4’33’’". Às telas de grandes dimensões que Pollock estendia no chão, libertando-se dos confins da moldura, Kaprow vai buscar a dimensão do gesto, do acto artístico como acção que se sobrepõe ao objecto (e daí a procura do acto performativo; mais importante do que a obra, era o processo artísitico que começava a ganhar protagonismo), e a noção de estar “dentro” da obra e não frente a ela (e daí o “environment”, obra em que o visitante entra, não fica apenas de fora a ver). Em Cage, de quem foi aluno, Kaprow inspirar-se-ia sobretudo ao nível do composição sonora (que inclui o silêncio e o ruído como “ready-mades” musicais encontrados no quotidiano) e dos métodos aleatórios de criação, para além do facto de “4’33’’” se basear também numa estrutura de acções simultâneas.

continua...

Ana Pais fez crítica nos jornais PÚBLICO e Expresso. É autora do ensaio "O Discurso da Cumplicidade" e organizadora e moderadora dos debates da Associação PRADO, que decorrem no São Luiz - Teatro Municipal. O próximo debate será dia 03 de Maio às 18h30.

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