domingo, abril 30, 2006

Dossier Dia Mundial da Dança VI: A liberdade do intérprete

A música não é um elemento estranho ao universo de Vera Mantero, a coreógrafa portuguesa que desde 2000 decidiu lançar-se em concertos onde interpreta clássicos americanos, canções do compositor brasileiro Caetano Veloso ou se apropria do universo zen do poeta português Herberto Hélder. Algumas das suas peças estabelecem relações de dependência com a música e o som, podendo transformar-se quase em objectos sonoros. É o caso de «A Dança do Existir» (1995), onde o som tinha uma presença fundamental, já que era através dele que atribuíamos uma relação (de verdade, autobiográfica, dramatúrgica) com o que víamos em palco: uma mulher com um vestido glamoroso, uma t-shirt rasgada e um par de ténis. Depois, em 1996, uma outra peça, em homenagem a Josephine Baker, «Uma estranha Coisa disse e. e. cummings*», era através de um intenso monólogo que a voz se tornava no movimento que se impunha ao conjunto coreográfico. E em 2000, numa coreografia para o extinto Ballet Gulbenkian, o compositor Nuno Rebelo criava, a partir da sua voz, uma banda-sonora para «Como rebolar alegremente sobre um vazio interior».

Estes exemplos servem para a definição de um lugar de Vera Mantero na dança enquanto imaginário onde co-habitam uma multiplicidade de níveis sensoriais. Os seus processos, onde a palavra sempre teve um papel fundamental (a criadora gosta de escrever e pôr os outros a escrever porque acredita numa mudança do sentido de interpretação a partir da dependência da palavra escrita) procuram uma forma transitória entre a música, a expressão cénica e o efeito teatral. Estamos perante um trabalho de intensa pesquisa que a crítica classifica como uma aproximação à vida. Ou seja, em Vera Mantero a coreografia serve-se de determinados elementos para se justificar, e não para propor acumulações cénicas.

Razão pela qual, e numa altura em que o corpo parece ter deixado de estar no centro da coreografia e o movimento a estar cada vez mais presente de outras formas (visuais, plásticas, textuais), os concertos a que agora (também) se dedica, podem ser lidos como uma evolução nessa sua relação com o objecto “som”. E, no entanto, a resposta de Vera Mantero é desarmante: «O meu trabalho é tão só o de alguém que interpreta canções de repertório. Há algo que tem que ver com o facto de querer ser intérprete em geral. Isso acontece ciclicamente. Eu gosto de actuar, gosto muito de ser intérprete». É esta liberdade de ser “só” intérprete que faz dos concertos um momento de partilha de um prazer que classifica como a exploração de «uma possibilidade enorme de diálogo que na dança não existe. Podes saber o que estão as outras pessoas a fazer mas a interacção com isso é muito diferente. Uma espécie de omni-visão».

Podemos considerar que o pressuposto coreográfico dos concertos de Vera Mantero existe no trabalho de voz como ponto de partida para a exploração de outras linguagens performáticas. Isso é evidente em «Comer o Coração», apresentado em 2004 no âmbito da 26ª Bienal de Artes de São Paulo (Brasil), na qual a voz era o elemento que se soltava do corpo aprisionado na enorme escultura de Rui Chafes. Estamos certamente perante uma relação emocional com as letras interpretadas, sobretudo porque partem de sensações que o corpo transmite. «Interessa-me uma exploração da voz enquanto corpo e enquanto língua, dentes… tudo isto que ela é. É uma outra forma de explorar um ‘corpinho’ tal como exploro um corpo maior», diz a coreógrafa/intérprete, ao mesmo tempo que reflecte sobre o poder da música: «a música é um meio muito mágico e que mexe connosco de uma maneira muito curiosa. Entra-te pelo corpo dentro, não se vê. Tem um poder enorme sobre as pessoas». E é esse poder que lhe permite assumir, desassombradamente, a posição de intérprete: «As canções têm essa coisa muito engraçada de serem uma forma de teatro. É uma personagem que está a contar qualquer coisa. Há uma relação estreitíssima entre o verbal e o não verbal. Se há uma osmose ela existe na canção». Mas é só.

Qualquer leitura conceptual, seja sobre a necessidade de repensar o lugar da dança no contexto criativo, seja para estabelecer uma relação entre o trabalho coreográfico e os concertos, se não é uma coincidência, também não é uma manipulação perversa dos códigos performáticos: «não é de todo a ideia de que tudo aquilo que eu queria dizer com a dança posso agora dizer com o canto. Nunca vi o trabalho de voz como uma espécie de inserção de figuras já existentes na música, mas sempre como a exploração de mais um elemento do meu corpo, trabalhado como o resto do corpo. Seria como se na dança fosse dançar formas já existentes». Até porque, como sempre nestas coisas, aconteceu tudo um pouco por acaso: uma brincadeira durante o lançamento de um livro num festival em Berlim, ao qual assistiam alguns programadores que lhe começaram a marcar concertos, quase por graça.

E, no entanto, há na forma como se deixa envolver pela música, na disposição do corpo em palco e nas modulações da sua voz uma semelhança coreográfica mais ou menos tensa conforme o registo em que se apresenta, que parte certamente do modo como o movimento moldou o seu corpo. Poderíamos falar na criação de um corpo virtual, para o qual contribuía o som em vez do visual e a memória em vez da presença, mas os concertos em que se apresenta estão longe dos processos que desenvolve para as suas coreografias: «só cantar tem um gozo específico que não tem nada a ver com o gozo que têm as outras formas físicas no meu trabalho mais experimental». O corpo de Mantero, que quando dança se debate entre a conformidade e a subversão, encontra na música uma forma de se libertar, sem que isso represente o desenvolvimento de uma linguagem que equilibre música e coreografia. Trata-se, tão somente, do prazer de cantar.

[texto publicado na edição de Abril da revista alemã Ballet-Tanz]

ler entrevista a Vera Mantero publicada neste blog e que esteve na origem do texto.

1 comentário:

Anónimo disse...

:)