quarta-feira, dezembro 21, 2005

Perseguir o movimento: nos bastidores de D. Quixote (III)

A directora da Companhia Nacional de Bailado, Ana Pereira Caldas, assume que não compreende o espanto da comunidade artística acerca do convite que dirigiu a Mark Deputter, director do festival Alkantara e prémio Almada 2004, para programar o Teatro Camões, espaço que a CNB gere desde 2003: «Parece-me que é uma noção errada sobre a dança achar-se que o clássico e o contemporâneo não comunicam. Pior, que não conseguem comunicar. Convidei o Mark Deputter porque sabia que seria a pessoa indicada para nos ajudar a transformar o Teatro Camões no teatro da dança. É fundamental que a dança tenha um espaço transversal, que cumpra as necessidades do público e dos criadores. O papel da CNB, enquanto única companhia do Estado, é perceber, dentro da sua lei orgânica, quais as valias que pode prestar. E se o seu repertório responde a determinados preceitos, é a partir do que dele se cria que se pode pensar o lugar da dança». Nesse sentido, o papel de Mark Deputter, segundo Ana Pereira Caldas, mas também de acordo com o que o programador afirmou na conferência de imprensa, no passado dia 30 de Novembro, será o de estabelecimento de laços e parceiras, não só com a Companhia, mas também com projectos que possam alargar um discurso sobre o que é a dança. A programação do espaço, mesmo com dificuldades financeiras que o levarão a arrancar em força só a partir de 2007, pretende incentivar a reflexão, razão pela qual, tentará equilibrar espectáculos com debates, encontros com processos. A mesma linha de pensamento serve para a directora da CNB justificar as parcerias que a companhia estabeleceu com criadores independentes, nomeadamente, Olga Roriz, Vasco Wellenkamp e Rui Lopes Graça, que utilizam os espaços da Rua Victor Cordon (sede da CNB) e do Teatro Camões para ensaios e apresentação de espectáculos: «estabelecem-se dinâmicas que, naturalmente, acabam por contaminar, positivamente, o trabalho de todos. É muito importante para essas companhias terem as condições que só a CNB pode oferecer». Mas trata-se de uma opção artística da CNB o apoio a estas companhias? «Estas foram propostas que nos chegaram, não partiram da CNB, mas dos criadores. A CNB considerou relevante apoiar os projectos destes criadores, não só porque acredita neles mas porque há uma base de entre-ajuda entre a CNB e os próprios. Os nossos bailarinos conhecem o trabalho deles, já trabalharam com todos, é uma combinação de esforços». Mas esta imagem de coerência é amplamente contestada por uma comunidade que, segundo a ex-professora, a quem alguns alunos chamavam de «mamã» (pelo seu estilo dedicado mas sempre sincero), tem mais preconceitos em relação à dança clássica do que esta em relação à contemporaneidade: «parece que se esquecem que a base da dança é o movimento clássico. São as Giselles, os Lago dos Cisnes, mesmo o D. Quixote. A história da dança é evolutiva, não é confrontacional. E se existe confronto, deve existir fundamentação para esse confronto. Eu vejo espectáculos de criadores contemporâneos e percebo que alguns jamais poderão fazer clássico, enquanto que estes bailarinos da CNB podem ser mais abrangentes. É essa a mais valia de uma companhia de bailado. E magoa-me que não exista o esforço de se compreender que falamos todos a mesma linguagem, mas de diversas formas. Essa é a riqueza da dança. Não peço a ninguém que saiba fazer tudo, mas exijo que se perceba porque escolhe determinado caminho. É a honestidade de que já aqui falei. Um corpo parado em palco é um corpo em movimento se eu perceber que carrega em si um discurso sustentado. Caso contrário não está ali a fazer nada». Facilitismo em alguns criadores? «Nem todos poodem ser criadores, há que saber porque se quer criar. Talvez facilitismo seja uma palavra muito forte, prefiro dizer que há que provar o que se diz. Isso tanto pode ser feito através de um movimento complexo como na simplicidade de um corpo imóvel». Para Ana Pereira Caldas, o fosso entre contemporaneidade e clássico não é inultrapassável, mas é certamente mais difícil de suprir do que a compreensão de que um gesto, venha ele de onde vier, quando é honesto, vale mais que mil discursos.










Fotografias de José Luis Neves (direitos reservados)
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Coreografia Mehmet Balkan Cenário Tayfun Cebi Figurinos Vera Castro Desenho de Luz Robert Cremer

Agradecimentos:
REAL, Companhia Nacional de Bailado, Cristina de Jesus, João Pedro Mascarenhas, Mariana Paz

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