terça-feira, janeiro 25, 2005

PoNTI' 04 (I)

Após a apresentação do texto sobre o espectáculo FIGURANTES, e com a publicação no novo número do jornal do Teatro Nacional S. João (Porto) dedicado ao último PoNTI' 04/13ª Festival da UTE, de um outro texto sobre os espectáculos La Scimia e mPalermu, dá-se conta de todos as análises feitas no âmbito do Seminário Internacional de Jovens Críticos de Teatro. Encerra-se, assim, este dossier, disponível para consulta na coluna da direita. Disponibiliza-se, neste post, o referido texto, intitulado O atravessar do espelho no jornal, mas que aqui se apresenta com um título comum aos três posts.

Jogos duplos, espelhos e objectos invisíveis (I)

Traços comuns no fim de semana de inauguração do Po.N.T.I. '04

No fim de semana de inauguração do Po.N.T.I. '04/13º Festival da UTE apresentaram-se, aos espectadores, estimulantes jogos de memória e relações, criando uma teia entre os espectáculos que, se não os torna mais fortes, pelo menos, recusa a ideia de efemeridade normalmente atribuída ao teatro. Um jogo de espelhos e reflexos que, como dizia José Luis Borges, revelam muito mais a quem ousa aproximar-se deles. Quase nos fazem cair lá dentro. Tomemos como exemplo, o exercício de memória/reflexão proposto pelo programa duplo do Teatro Garibaldi (Itália), mPalermu (13 Novembro, Teatro Carlos Alberto) e La Scimia (14 Novembro, Rivoli - Teatro Municipal) , ambos encenados por Emma Dante.


La Scimia

Aparentemente convencional, o teatro de Emma Dante utiliza-se de processos biofágicos para aplicar uma exposição e se contradizer. De um lado temos a empatia criada com o espectador através da utilização do corpo como elemento dramatúrgico. Do outro a dificuldade em ultrapassar os tempos teatrais dados pela saturação dessa técnica. Num difícil equilíbrio entre objectividade e subjectividade, os dois espectáculos funcionam como lados de uma mesma moeda; até como diferentes representação da mesma realidade. Tanto mPalermu como La Scimia apropriam-se da convenção teatral, baseando-se na necessidade de acrescentar algo à realidade, devolvendo depois o objecto num aspecto quase irreconhecível. Ou universal, se quisermos. No fundo, o problema da família Carollo, em mPalermu, é o problema de um território encravado num país anacrónico... no fundo, de todas as micro-realidades sufocadas pelas suas particularidades.

E nesta leitura, que depressa se transforma numa parábola sobre a perda de identidade, há um desejo expresso de explodir e recusar a diversidade e singularidade como mero folclore cultural. Antes se aposta num trabalho de reflexão comportamental que insiste num envolvimento com o público baseado em gestos, movimentos e acções facilmente reconhecíveis. Ou seja, "olha-te ao espelho não para veres o que vês, mas o que recusas". E o sentido de libertação dessa outra ofegante realidade para a qual os empurram (a família Carollo, os habitantes de Palermo, os espectadores) toma um sentido especial de revolta e contrariedade quando se escuta a 5ª Sinfonia de Beethoven. Essa que o compositor dedicou a Napoleão quando ele era uma espécie de herói e logo renegou a dedicatória quando reconheceu o vilão. Assim, também mPalermu caracteriza aquelas personagens como gente que, mais do que dividida, se sente traída e abandonada. Inocentemente abandonada.



mPalermu

Já em La Scimia o que está em causa, mais do que ver o que o espelho mostra é o reconhecimento dessa imagem. Trabalhando uma ideia (bastante frágil e óbvia, aliás) do conflicto sexo/religião como um cartoon, Emma Dante desafia o espectador a reconhecer nos clichés a força das convicções. Para isso coloca em confronto três níveis de fé/crença: o do homem (que se divide pelos dois padres e as duas beatas), o do animal e o do espectador. Ou seja, o racional, o irracional/ausência de noção de fé e o da dúvida. Nesta abordagem aos limites da entrega religiosa é notória a importância que se dá às convicções de cada uma das partes, sendo que facilmente se sobrepõem. A figura do macaco funciona, então, como elemento de teste ou resistência, já que obriga a uma clarificação. É-se crente por natureza ou imposição? "O pecado inventou-o o homem", diz um dos padres, antes de rasgar o hábito e se entregar à força do animal que, sacrilegamente, subiu ao altar e se prostrou como Cristo.

Neste exercício de profanação, Emma Dante reage contra a opressão religiosa italiana e procura forçar a busca do Homem italiano para lá da religião, das imposições, das regras sociais, da indefinição, do ser-se porque sim. Ainda que se possa considerar que o trabalho de encenação aposta no uso da comédia para trabalhar esses conceitos, é fácil perceber que só através da exposição ao absurdo de tais convenções se atingem os resultados pretendidos. Cumpre-se, assim, a ideia de que a tragédia é a comédia com tempo, num registo que tem tanto de Meyerhold quanto de Brecht. Uma espécie de bonecos manipulados que devem ser obrigados a não aceitar sem questionar.

Os espectáculos mPalermu e La Scimia apresentam-se como um objecto único ciente da sua dimensão antropológica, ao mesmo tempo que tentam operar uma nova relação com o facilmente identificável da realidade italiana. Elementos comuns como a nudez, o corpo como elemento dramatúrgico, o texto a ser utilizado como ponto de partida para a discussão (imediatamente tornado abstracto, seja pela criação de uma nova linguagem ou pela apresentação de dialectos ausentes de tradução para o espectador estrangeiro) funcionam como teste para essas definições. Ora provocando ou integrando. Como se no fundo, não existissem diferenças. Daí se poder dizer que o teatro de Emma Dante é "convencional". Afinal, não deveria ser o teatro sempre assim?


mPalermu encenação    EMMA DANTE elenco    GAETANO BRUNO, SABINO CIVILLERI, TANIA GARRIBBA, MANUELA LO SICCO, SIMONA MALATO direcção técnica    CRISTIAN ZUCARO co-produção   TEATRO GARIBALDI (Palermo), UNION DES THÉÂTRES DE L’EUROPE, COMPAGNIA SUD COSTA OCCIDENTALE (Palermo)
estreia/opening    [11NOV01] TEATRO DELLE BRICIOLE (Parma)
administração de digressão    SANDRA GHETTIadministração    ORNELLA VANCHERI

La Scimia [O Símio] a partir de    TOMMASO LANDOLFI encenação   EMMA DANTE texto    ELENA STANCANELLI cenografia    MELA DELL’ERBA desenho de luz    TOMMASO ROSSIelenco    GAETANO BRUNO, SABINO CIVILLERI, MANUELA LO SICCO, MARCO FUBINI, VALENTINA PICELLO técnico   IGNACIO BORRAS LOZANO co-produção    CRT – CENTRO DI RICERCA PER IL TEATRO (Milão), TEATRO GARIBALDI (Palermo), UNION DES THÉÂTRES DE L’EUROPE, LA BIENNALE DI VENEZIA, COMPAGNIA SUD COSTA OCCIDENTALE (Palermo)
estreia   [28SET04] TESE DELLE VERGINI (La Biennale di Venezia)

Outros espectáculos apresentados no PoNTI'04 e analisados neste blog:

Figurantes, encenação Ricardo Pais (Teatro Nacional S. João, Portugal)
Die Glasmenagerie + Zerbombt, encenação Armin Petras ( SchauspielFrankfurt, Alemanha)
Teatro de Papel/Anfitrião (encenação Marcelo Lafontana, Teatro das Formas Animadas de Vila do Conde/teatro Nacional S. João, Porto)

Sobre o PoNTI'04 e o Seminário Internacional de Jovens Críticos de Teatro





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