Do outro lado do espelho
(Análise ao espectáculo Figurantes, Teatro Nacional S. João, encenação de Ricardo Pais)
Figurantes funciona num jogo de espelhos e reflexos que, como dizia José Luis Borges, revelam muito mais a quem ousa aproximar-se deles. Quase nos fazem cair lá dentro. Do outro lado está Arranha-Céus (1999, Teatro Nacional S. João). Talvez o não possa parecer de forma directa, já que de 1999 a 2004, Jacinto Lucas Pires escreveu outros textos e desenvolveu técnicas de escrita. Mas é-o, na medida em que, ao representar o regresso do autor às mãos de Ricardo Pais, se permite o cruzamento de memórias, fantasmas, referências e até citações. Mais não seja, porque entre estes espectáculos de Jacinto Lucas Pires há duas de linhas de força sempre presentes: a definição das relações e o cinema como espaço de crença.
Se Arranha-Céus funcionava como um puzzle sem lógica aparente que no final era apresentado ao espectador como uma fantasia onírico-cinematográfica, já Figurantes invade um território de desconhecimento alicerçado somente nas descrições dos actores e na vontade de conduzir o espectador num território secreto, obscuro e vago (ia dizer de vácuo, mas ...). Arranha-Céus era pleno de referências quotidianas e sinais/signos de imediato reconhecimento. Insistia num cruzamento de universos para dar conta de um padrão comportamental comum. Contudo, abandonava o espectador nessa ilusão cinematográfica, onde tudo é possível. Onde tudo é real. Basta crer.
E se Arranha-Céus era puro cinema (não faltava Marilyn, canções, movimento, personagens cartoonescas, situações inverosímeis que só o cinema permite), Figurantes é puro teatro. Não só porque imediatamente nos reportamos a Pirandello e a Seis personagens em busca de um autor (mas também Beckett e, sobretudo, Ionesco), mas ainda porque se aposta numa nova definição para a mítica 4ª parede. Em Arranha-Céus o espectáculo explodia e atravessava a plateia para redimensionar as noções de arquitectura teatral. A cena terminava literalmente suspensa no tecto do S. João, numa espécie de metáfora acerca do amor que faz voar. Mesmo que a intenção fosse o suicídio.
Já Figurantes existe a um nível quase subterrâneo. No que antes era explosão, agora temos introspecção. As personagens deixam de cumprir caminhos diferentes que se cruzam para construírem uma história comum, composta por aquilo que sabem e reconhecem no outro como seguimento da sua própria história. Funcionam como uma espécie de respigadores, quando antes eram manequins. Curiosamente, nem uma nem outra definição os torna mais humanos. Nunca deixam de ser fantasmas, bonecos, visões... E aposta-se numa constante mutação entre seres visíveis e invísiveis; personagens reais e fictícias. Teatro e cinema, afinal, como veículos para uma percepção da realidade. Ou, no fundo, a arte como uma construção/reconstrução da natureza, num questionar permanente sobre as suas regras de funcionamento.
O aspecto mais visível deste aparente jogo de espelhos é uma aposta num simulado anacronismo entre a velocidade do texto escrito e o registo de encenação. Como se um e outro quisessem aniquilar, através da manipulação do corpo e da voz do actor, uma identificação por parte do espectador. Em Figurantes, o nível de abstracção/indizível é de tal forma evidente que se torna necessário confiar nas personagens. Mesmo que estas aparentem um alheamento da realidade e pouco mais saibam que o espectador. Mesmo que o discurso pareça um forçado representar do quotidiano. Portanto, menos Billy Wilder e mais Fellini. Menos humanos a fazerem de actores e mais actores a fazerem de humanos.
Sendo o teatro um jogo de maior risco que o cinema (a imprevisibilidade do momento tanto age a favor como contra), Figurantes aposta nesse risco para se apresentar como um objecto invísivel, em que nem sequer o corpo/expressões dos actores (normalmente suportes emocionais para o espectador) parecem indicar a solução. Permanentemente isolados, espectador e personagens/actores, num jogo de servidão e controlo. Por quem? Provavelmente pelos manipuladores autor e encenador, uma espécie de deuses ex-machina que tardam em aparecer. Para que a história termine. Mesmo que não seja num final feliz.
Figurantes
Teatro Nacional S. João - Porto
13 a 23 Janeiro 2005
3ª a Sábado 21h30; Domigo 16h00
de JACINTO LUCAS PIRES encenação RICARDO PAIS cenografia PEDRO TUDELA figurinos BERNARDO MONTEIRO desenho de luz NUNO MEIRA desenho de som FRANCISCO LEAL preparação vocal e elocução JOÃO HENRIQUES interpretação JOÃO REIS, ANTÓNIO DURÃES, JOÃO CARDOSO, JORGE VASQUES, EMÍLIA SILVESTRE LUÍSA CRUZ MICAELA CARDOSO NUNO M CARDOSO PEDRO ALMENDRA
Outros espectáculos apresentados no PoNTI'04 e analisados neste blog:
mPalermu + La Scimia (encenação Emma Dante, Teatro Garibaldi, Itália)
Die Glasmenagerie + Zerbomt (encenação Armin Petras, SchauspielFrankfurt, Alemanha)
Teatro de Papel/Anfitrião (encenação Marcelo Lafontana, Teatro das Formas Animadas de Vila do Conde/Teatro Nacional S. João, Portugal)
Sobre o PoNTI'04 e o Seminário Internacional de Jovens Críticos de Teatro
(Análise ao espectáculo Figurantes, Teatro Nacional S. João, encenação de Ricardo Pais)
Figurantes funciona num jogo de espelhos e reflexos que, como dizia José Luis Borges, revelam muito mais a quem ousa aproximar-se deles. Quase nos fazem cair lá dentro. Do outro lado está Arranha-Céus (1999, Teatro Nacional S. João). Talvez o não possa parecer de forma directa, já que de 1999 a 2004, Jacinto Lucas Pires escreveu outros textos e desenvolveu técnicas de escrita. Mas é-o, na medida em que, ao representar o regresso do autor às mãos de Ricardo Pais, se permite o cruzamento de memórias, fantasmas, referências e até citações. Mais não seja, porque entre estes espectáculos de Jacinto Lucas Pires há duas de linhas de força sempre presentes: a definição das relações e o cinema como espaço de crença.
Se Arranha-Céus funcionava como um puzzle sem lógica aparente que no final era apresentado ao espectador como uma fantasia onírico-cinematográfica, já Figurantes invade um território de desconhecimento alicerçado somente nas descrições dos actores e na vontade de conduzir o espectador num território secreto, obscuro e vago (ia dizer de vácuo, mas ...). Arranha-Céus era pleno de referências quotidianas e sinais/signos de imediato reconhecimento. Insistia num cruzamento de universos para dar conta de um padrão comportamental comum. Contudo, abandonava o espectador nessa ilusão cinematográfica, onde tudo é possível. Onde tudo é real. Basta crer.
E se Arranha-Céus era puro cinema (não faltava Marilyn, canções, movimento, personagens cartoonescas, situações inverosímeis que só o cinema permite), Figurantes é puro teatro. Não só porque imediatamente nos reportamos a Pirandello e a Seis personagens em busca de um autor (mas também Beckett e, sobretudo, Ionesco), mas ainda porque se aposta numa nova definição para a mítica 4ª parede. Em Arranha-Céus o espectáculo explodia e atravessava a plateia para redimensionar as noções de arquitectura teatral. A cena terminava literalmente suspensa no tecto do S. João, numa espécie de metáfora acerca do amor que faz voar. Mesmo que a intenção fosse o suicídio.
Já Figurantes existe a um nível quase subterrâneo. No que antes era explosão, agora temos introspecção. As personagens deixam de cumprir caminhos diferentes que se cruzam para construírem uma história comum, composta por aquilo que sabem e reconhecem no outro como seguimento da sua própria história. Funcionam como uma espécie de respigadores, quando antes eram manequins. Curiosamente, nem uma nem outra definição os torna mais humanos. Nunca deixam de ser fantasmas, bonecos, visões... E aposta-se numa constante mutação entre seres visíveis e invísiveis; personagens reais e fictícias. Teatro e cinema, afinal, como veículos para uma percepção da realidade. Ou, no fundo, a arte como uma construção/reconstrução da natureza, num questionar permanente sobre as suas regras de funcionamento.
O aspecto mais visível deste aparente jogo de espelhos é uma aposta num simulado anacronismo entre a velocidade do texto escrito e o registo de encenação. Como se um e outro quisessem aniquilar, através da manipulação do corpo e da voz do actor, uma identificação por parte do espectador. Em Figurantes, o nível de abstracção/indizível é de tal forma evidente que se torna necessário confiar nas personagens. Mesmo que estas aparentem um alheamento da realidade e pouco mais saibam que o espectador. Mesmo que o discurso pareça um forçado representar do quotidiano. Portanto, menos Billy Wilder e mais Fellini. Menos humanos a fazerem de actores e mais actores a fazerem de humanos.
Sendo o teatro um jogo de maior risco que o cinema (a imprevisibilidade do momento tanto age a favor como contra), Figurantes aposta nesse risco para se apresentar como um objecto invísivel, em que nem sequer o corpo/expressões dos actores (normalmente suportes emocionais para o espectador) parecem indicar a solução. Permanentemente isolados, espectador e personagens/actores, num jogo de servidão e controlo. Por quem? Provavelmente pelos manipuladores autor e encenador, uma espécie de deuses ex-machina que tardam em aparecer. Para que a história termine. Mesmo que não seja num final feliz.
Figurantes
Teatro Nacional S. João - Porto
13 a 23 Janeiro 2005
3ª a Sábado 21h30; Domigo 16h00
de JACINTO LUCAS PIRES encenação RICARDO PAIS cenografia PEDRO TUDELA figurinos BERNARDO MONTEIRO desenho de luz NUNO MEIRA desenho de som FRANCISCO LEAL preparação vocal e elocução JOÃO HENRIQUES interpretação JOÃO REIS, ANTÓNIO DURÃES, JOÃO CARDOSO, JORGE VASQUES, EMÍLIA SILVESTRE LUÍSA CRUZ MICAELA CARDOSO NUNO M CARDOSO PEDRO ALMENDRA
Outros espectáculos apresentados no PoNTI'04 e analisados neste blog:
mPalermu + La Scimia (encenação Emma Dante, Teatro Garibaldi, Itália)
Die Glasmenagerie + Zerbomt (encenação Armin Petras, SchauspielFrankfurt, Alemanha)
Teatro de Papel/Anfitrião (encenação Marcelo Lafontana, Teatro das Formas Animadas de Vila do Conde/Teatro Nacional S. João, Portugal)
Sobre o PoNTI'04 e o Seminário Internacional de Jovens Críticos de Teatro
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