sexta-feira, fevereiro 16, 2007

Crítica de teatro: Duas Metades, de Patrícia Portela e Tiago Rodrigues



Duas Metades
De Patrícia Portela e Tiago Rodrigues
Pequeno Auditório da Culturgest, Lisboa
Terça-feira, 13 Fevereiro, 21h30
Sala a metade.

Em cena até domingo


Da estranheza dos dias


Não é novidade, foi sempre assim, que uma das características maiores da dramaturgia – na verdade a sua força motriz –, passa pela transformação do quotidiano em situações ficcionadas. Esta deslocação, que quer lançar novas interpretações sobre a rotina diária, nem sempre é bem sucedida, perdendo-se muitas das vezes os autores em paródias auto-referenciais que em nada adiantam a essa reflexão urgente: como transportar a vida para o palco sem que a ficção torne a acção irrealista.

Em cena na Culturgest até domingo o díptico Duas Metades, uma de Patrícia Portela, a outra de Tiago Rodrigues, se não responde necessariamente a esta dúvida – que assumo poder ser quixotismo pessoal –, também reconhece a importância de criar um mundo paralelo, entre a realidade e a ficção. Um mundo livre onde a questão da identidade, do autor, do texto, das personagens, dos lugares, possa ser mais relevante que qualquer outra fixação naturalista.

Nascidas no seio de um projecto algo inconsequente e mesmo facilitista, Urgências, coordenado por Tiago Rodrigues, as duas peças que agora se autonomizam, Babbot (Patrícia Portela) e Coro dos Amantes (Tiago Rodrigues) ganham a força e consistência necessárias ao afastamento de um arrazoado pós-moderno e urbano que caracterizava o conjunto das peças apresentadas no Teatro Municipal Maria Matos, Lisboa, em Junho 2006.

O texto de Patrícia Portela é de uma mundividência rara, ausente até, e bem, de alguma da complexidade e armadilhas dramatúrgicas que impediam a clareza de Flatland, a sua obra-maior. Babbot pode ser qualquer um de nós, nunca se sabe, mas é certamente resultado de um olhar crente sobre o mundo. Este homem, que busca uma casa por todo o lado, vive de trocas. Exemplo: “Sem quase sair do lugar, dei um passo e troquei o basalto por calcário, outro passo e troquei por granito, mais um passo, troquei por chumbo, um passo, troquei por ferro, outro passo e troquei por zinco que troquei por bronze, que troquei por estanho que troquei por prata que troquei por jade que troquei por marfim, que troquei por níquel que troquei por fósforo que troquei por urânio”. Construindo o seu mundo a partir das experiências que vai vivendo no mundo de todos, pelo texto passam referências reconhecíveis – do muro de Berlim à guerra, da política aos fluxos migratórios –, mas nenhuma delas suficientemente fixas para localizarem o texto e a acção. Ainda bem.

Esta narrativa, interpretada por Tiago Rodrigues num registo onde vai ganhando terreno quanto mais confortável (ou enredado) está no texto, tem a delicadeza de propor um olhar fascinado, quase ascético, sobre o que nos rodeia. Sozinho em palco, mais tarde substituído por um vídeo, dispensável, onde a viagem se materializa, o actor expande o texto, dando-lhe cor e tom. Mas tudo parte de um imaginário caro à autora, dos raros exemplos da nova geração de criadores que em poucos anos soube fundamentar o seu discurso artístico.

Coro dos Amantes, de Tiago Rodrigues, é um texto maturado e muitos pontos acima de qualquer outro registo no qual o autor também trabalha. A filigrânica estrutura narrativa, que muito deve aos não-olhares dos dois actores, Cláudia Gaiolas e Tónan Quito (na foto), encontra o tom adequado para a descrição – porque é disso que se trata – de um quotidiano angustiante. Aquele homem e aquela mulher, iguais a tantos outros, vivem a ressaca de um acidente de automóvel numa corrida contra o tempo. O tempo físico, do corpo que morre, o tempo espacial, a distância que os separa do hospital e mais tarde separa os corpos já em casa, o tempo ficcional, na projecção que fazem do filme Scarface.

A acção é contada em coro, pois, ele e ela dando os dois lados da mesma história, por vezes encontrando-se, outras afastando-se. Sem nunca quererem ver o lado do outro, mas desesperadamente empenhados em convence-lo a dar o passo da reconciliação. Os dois amantes, sem nome, marido e mulher, seguem apáticos, ultrapassados, ausentes numa vida pouco relevante, igual a tantas outras, entre as “pequenas coisas sem importância, a ver os noticiários, a ler os jornais, a tomar cafés, a enviar facturas, a escrever mails, a falar ao telefone, a agrafar papéis, a tocar às campainhas, a bater às portas”. Ao ter desenvolvido a história para lá do ponto onde antes a tinha deixado, à porta do hospital, Tiago Rodrigues encerra as personagens num quotidiano claustrofóbico. O momento em que esperam por que o chá aqueça, de silêncio longo e tão reconhecível é o espaço ideal para compreender o não-retorno em que se encontram.

E se Babbot chegou a casa – chegou? Ele diz: “Enquanto pensava que o tempo se calhar é o maior país, um país que sobrevoa todos os outros, acumulando todos os estados anteriores de terra e deixando cair reminiscências dos lugares onde não tinham estado antes, apeteceu-me concluir. E como uma conclusão não é mais do que uma parte de um silogismo, nunca mais cheguei a casa; mas passei a dormir descansado”. Bom, pelo menos a um sítio onde pode dormir descansado, mais ou menos casa, mais ou menos seu –, os amantes corais ainda andam à deriva. Uma deriva que também é a casa, porque é o que de mais familiar têm.

Duas Metades, afinal da mesma moeda, completam-se sem perderem força, autonomia e identidade. E o espectáculo segue ligeiro, como os dias. Sem mais.


Fotografia de Magda Bizzarro

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