sábado, fevereiro 17, 2007

Crítica de dança: Movimentantes, de Né Barros


Movimentantes
Coreografia de Né Barros
Teatro Carlos Alberto, Porto
09 Fevereiro 2006, 21h30
sala quase cheia


Tempo suspenso, tempo reencontrado


Depois de Olga Roriz e Rui Horta, Né Barros, coreógrafa portuense, numa retrospectiva em projecção a convite do Teatro Nacional S. João. Gesto tão mais político quanto simbólico numa cidade de onde não são as boas notícias as primeiras a chegar. Ciclo em fim de ciclos, avisa Ricardo Pais, director, oportuno ainda por acompanhar - coincidência temporal – o regresso de um outro coreógrafo portuense, por adopção, Joclécio Azevedo, que há dias estreou na Culturgest.


Né Barros, então, em estreia, filme, instalações e remontagem numa programação-homenagem onde só falha o lado teórico, tão fundamental para contextualizar a sua prática. Esse que nos ajudaria, precisamente, a compreender melhor Movimentantes, re-olhar de três peças, exo (2001), No Fly Zone (2000) e Vooum (2005), a primeira criada para o Ballet Gulbenkian, as outras para o Balleteatro, que dirige, agora organizadas como uma só, cada uma contribuindo com uma selecção de momentos. Assumidamente obra fragmentada, suspensa, deslocada, sem contexto. Nem por isso de menos interesse, porque livre. A uni-las a banda-sonora de Alexandre Soares, presente em palco, mais discreto que a força da sua música: urbana, caótica, impositiva. Uma linha que segue paralela à coreografia, independente dos seus estados de alma planos, sem clímax, sem fuga.

Esta “dança-dança”, como lhe chama, é perigosa e estimulantemente flat. Vive de princípios e fins de movimentos, intervala suspensões com fugas, organiza-se matematicamente em linhas claras. Se busca um escape, só dele sairá quando com o corpo já nada mais se puder fazer. São, enquanto dançam, reféns de uma situação por eles criada. E tão anónimos quanto aqueles captados por Daniel Blaufuks nas quatro faces de dois módulos que aparecem em No Fly Zone (na foto).

Mas os movimentos desenhados por Né Barros exigem intérpretes que compreendam a diferença entre fingimento/representação e displicência, recusando toda a execução mais ou menos mecânica e autómata. São corpos ausentes de personagens, indiferentes à narrativa, seguidores de hábitos não questionados (e mesmo inquestionáveis). E a estes corpos movimentantes falta tempo, experiência, conhecimento, razões. São executantes (executores?) sem terem noção que do subtil encadeamento dos movimentos breves – repetidos, repetitivos, insistentes –, nasce uma ideia de composição.

Do conjunto de dez intérpretes, Luís Félix, Pedro Rosa e Kanae Maezawa (esta sobretudo em No Fly Zone) são os que melhor escapam à dormência em que dançam os seus parceiros. Deslocam o corpo da abstracção e fragmentação – noções ampliadas pelo desenraizamento do original – para um lírico exercício sobre o caos citadino, o angustiante quotidiano, a circularidade do gesto.

A estrutura da peça, una, é crescente e cumulativa e desvenda micro-partículas que anunciam possíveis saídas, mas é sempre tarde quando os corpos delas se dão conta. No fim de cada sequência os corpos regressam à mesma posição da qual partiram, às vezes deformando-a, outras recusando, ou concentrando todos os movimentos num só. Apenas na terceira parte, vestidos de branco e contra as imagens de mapas da Atlântida ou gares e linhas de comboio, dançam uma qualquer morna desvirtuada. Momento de felicidade raro numa peça hipnotizante.


[texto publicado na terça-feira, 13, no jornal Público. Fotografia: João Tuna]

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