terça-feira, junho 13, 2006

Abordagens ao Alkantara (VII): Trilogia Flatland

crítica

Trilogia Flatland
de Patrícia Portela
CCB, 11 de Junho, 20h
Lotação esgotada

[o espectáculo repete hoje e amanhã]

Negativland

por Pedro Manuel

Apresentado pela primeira vez em Portugal na sua extensão, Trilogia Flatland, de Patrícia Portela, reúne o ciclo de três espectáculos sobre a vida e o percurso do Homem-Plano, interpretado por Anton Skrzypiciel: para cima e não para norte, ser é ser visto e baseado numa história verdadeira. Do primeiro ao último espectáculo sustenta-se a tese de que para que as coisas existam (três dimensões) devem passar pelo plano da representação (duas dimensões). Mas, nesta passagem, opera-se também o sentido inverso e as representações tornam-se, de algum modo, reais. Flatland é, afinal, esse horizonte de representação que tem sido problematizado na filosofia ocidental e que se desdobra em implicações ao nível da estética, ontologia e metafísica.

Embora a trilogia seja uma extensa argumentação filosófica, geradora e operadora de conceitos, escapa ao peso de uma argumentação demasiado referenciada, preferindo, e bem, utilizar a noção de entretenimento para expor, ironicamente, a condição paradoxal da ilusão, simultaneamente verdadeira e falsa.

Em Flatland I: para cima e não para norte! a história da descoberta da terceira dimensão por um habitante de Flatland, o mundo das duas dimensões, o mundo dos textos e das imagens, apoia-se em dois modelos dramatúrgicos: o filme O Feiticeiro de Oz e o imaginário de James Bond, perseguições, perigo e Martini. Deste modo, uma estrutura policial e narrativa serve o propósito de descobrir, revelar uma nova dimensão, a terceira dimensão, do espaço, do movimento e do volume, dando a ver a Flatman a chocante verdade da existência real dos habitantes de Spaceland, nós, os produtores de textos e imagens como representações da nossa experiência do real.

É assim que, por um lado, o real se torna virtual. Por outro lado, esta necessidade de representação estabelece uma relação entre ver e ser visto. Deste modo, Flatman irá perceber que não é só ele que está dependente do olhar de quem o vê para poder ser (ser é ser visto) mas que também quem vê está dependente do que é visto, da dimensão Flatland.

A nível formal, esta primeira parte adopta uma estratégia invulgar para encenar o policial de descoberta existencial. Começamos por ler a sua história num grande livro onde são projectados os textos e imagens da sua investigação sendo a presença humana garantida pela voz que narra a história em tempo real. O que se mantém em causa é a criação de ilusão, não através da indistinção entre realidade e falsidade, mas através da noção de virtual. A ilusão que o acontecimento multimédia pretende tematizar é sobre a realidade das representações. Mas, se a representação da representação remete para a ideia de meta-teatro e para a especificidade do espaço de tempo da performance, a verdade é que não existe esta dinâmica irónica sobre o acontecimento. Pelo contrário, Flatland I: cima e não para norte impõe-se como a parte mais coerente e conseguida da trilogia, num espectáculo singular, preocupado apenas com a força da sua manifestação e não com conjunturas teóricas e artísticas. Acontecimento multimédia, entre a performance, o teatro e o cinema, o dispositivo revela o amadurecimento da reflexão dramatúrgica e o desassombro face às exigências da própria proposta, contrariando os esquemas convencionais de espectáculo.

Já a segunda parte Flatland II – ser é ser visto caracteriza-se pela sua fragmentação. Desenvolvendo os conceitos de rapto e espectáculo, teatro e terrorismo, o espectáculo pretende dar continuidade aos pressupostos teóricos e dramaturgicos da primeira parte: o real existe pelo virtual. Uma vez mais, assume-se o princípio de concretização das ideias e não da sua representação e o rapto implica mesmo a deslocação dos espectadores numa carrinha para um lugar fora do CCB, “tornando-se” cúmplices, por via de um contrato, na operação terrorista de ver, ficcionar, conferir existência a Flatman. O espectáculo inclui números de circo, momentos de contador de histórias, dança e reprodução/ repetição/ desdobramento da sua presença em imagens virtuais e especulares. Mas se os conceitos se mantêm coerentes e contínuos, já a sua concretização não é a mais eficiente. Querendo trabalhar a noção de ver e ser visto, de encenação do real, de transformação do virtual em real como acto terrorista, as estratégias formais acabam por redundar numa série de fragmentos mais ou menos desconexos, ainda que divertidos. A relação com o espectador que na primeira parte era assegurada por um discurso directo e um directo entretenimento das imagens, aqui dispersa-se e a observação irónica e mediada torna-se simples observação.

Noutra sala do CCB decorre Flatland III – baseado numa história verdadeira, constituindo a derradeira hipótese de passagem de Flatland a Spaceland, através da relação entre ver e ser visto, simultaneamente, por um processo de representação do mundo e de si próprio como espectador. A televisão, enquanto máquina dos factos, de criação de factos é apresentada num bloco de doze ecrãs, o real torna-se virtual (representação) e o virtual torna-se real (ficção enquanto modelo significante de experiência de realidade). A argumentação dramatúrgica reencontra aqui uma estratégia afim ao conceito, utilizando este painel de ecrãs como um corpo fragmentário mas simultâneo, um mosaico de imagens em zapping, sobrepondo imagens familiares, imagens reais e imagens criadas, confundindo a percepção dos factos, factos reais e factos ficcionais, sobretudo através de programas que funcionam como veículos de verdade, documentários, boletins meteorológicos e, sobretudo, telejornais, os verdadeiros laboratórios de simulacros, de edição da realidade. Esta terceira parte funciona ainda como a síntese de um processo dialéctico que começou com a mediação da presença do intérprete, a negação da sua ausência no segundo espectáculo e ausência completa na terceira parte onde a percepção volta a distanciar-se da familiaridade das imagens e volta criar-se uma leitura irónica, desta vez mais politizada, enquanto prática comunitária e cultural, sobre a influência da mediação na experiência da realidade.

Nesse sentido, Trilogia Flatland expõe essa espécie de espaço negativo, de negação, negativland, mas que se afirma para além do espaço de representação, mediando o espaço da experiência, do espaço, movimento e volume. Por outro lado, não se esforça em transpor um discurso sobre a representação para teatro, por exemplo, levando, sim, a uma leitura abrangente do acontecimento teatral através da mediação tecnológica.

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