domingo, março 25, 2007

Olga Roriz: gestos que vão do corpo à alma



excerto do texto Momentos de Transição publicado no programa do espectáculo Programa da Primavera, da Companhia Nacional de Bailado, que se apresenta hoje em Lisboa, dia 29 em Aveirto e dia 31 em Leiria.






Treze Gestos de Um Corpo estreou no Ballet Gulbenkian em 1987 (na foto), dois anos depois de Olga Roriz conceber para a Companhia Nacional de Bailado As Troianas. O diálogo entre estas duas peças era evidente, tendo Roriz, na altura em franca ascensão, encontrado margem de trabalho que lhe permitia conceber, para companhias de repertório, uma linguagem assumidamente pessoal e íntima. Ligavam as peças a forte presença do corpo marcado por um movimento ousado e reivindicativo, uma plasticidade tanto ao nível da disposição cénica como da própria estruturação coreográfica, e ainda uma proximidade e identificação da autora com as potencialidades dos elencos.

Só em 2003 é que Roriz regressou à CNB para conceber Pedro e Inês e mais tarde, em 2005, para remontar Sete Silêncios de Salomé, de 1993. Vinte anos depois, regressa a Treze Gestos…, necessariamente repensando-a de acordo com uma filosofia de trabalho que a obriga a conceber uma remontagem numa massa de corpos que não são os da sua companhia, nem sempre são conscientes da sua força enquanto intérpretes e, sobretudo, vivem de uma permanente adaptação/adequação às linguagens de cada coreógrafo com quem trabalham. São, ao mesmo tempo, corpos experimentados mas corpos viciados. É esta dimensão de prática que importa resgatar numa peça que marcou uma época, tanto ao nível do percurso da coreógrafa como da própria dança em Portugal.

Em 1987 começávamos a ter acesso aos primeiros trabalhos dos coreógrafos da Nova Dança Portuguesa que tinham vivido em Nova Iorque e em França, chegando agora com novas ferramentas que imprimiriam outras dinâmicas ao modo de fazer, pensar e ver dança. Era o tempo da série de televisão Fame, que libertava a presença dos rapazes na dança de ridículos preconceitos e democratizava o movimento. O papel das instituições, e em particular o papel das companhias de repertório, necessitava de uma definição, de uma reformulação. Em boa hora a Gulbenkian encontrou em Olga Roriz a audácia necessária para recentrar o intérprete no interior da coreografia, indo ao encontro das perguntas fundamentais da teórica Laurence Louppe [1]: “como pode o corpo contemporâneo encontrar a sua liberdade? Mas sobretudo a possibilidade de inaugurar um espaço que lhe seja próprio?”.

Treze Gestos de um Corpo respondia àquilo que eram as novas abordagens coreográficas da dança independente introduzindo-as no contexto de uma companhia de repertório, nomeadamente essa da individualidade. Cada um dos 13 homens e das 13 mulheres, dos solistas aos estagiários, ocupavam um mesmo destaque na peça, entre os quais Gagik Ismalian, solista do Ballet Gulbenkian. A democratização que isto pressupõe não se explica sem ter em consideração as revoluções estéticas, burocráticas e filosóficas que aqui se conjugavam. Não era de todo evidente que a peça conseguisse impor uma linguagem própria, e para esse sucesso em muito concorreu a conjugação do trabalho de Roriz com os de Nuno Carinhas, nos figurinos e cenário, de Orlando Worm, no desenho de luz, e de António Emiliano, na composição sonora. Mais do que uma peça de um só nome, antes um trabalho de colectivo para outro colectivo. Um confronto de forças. De um lado os génios criativos de quem procurara um espaço artístico mais amplo e transversal. Do outro uma massa de corpos ansiosos por serem notados.

Aquilo que esta peça propõe é uma dissecação de um só corpo em vários outros através de solos pessoalíssimos, no qual são exploradas as valências de cada intérprete. Na estreia da peça foi fundamental que os elencos de dividissem em homens e mulheres, abrindo assim o leque de possibilidades de leitura. Eles numa linha bastante mais sensual, porque viril e tensa (e Olga Roriz sempre criou peças onde os homens eram mais sensíveis – mesmo mais humanos – que as mulheres), elas numa procura mais explosiva. O verso e o reverso de um mesmo gesto, explorado que era por corpos diferentes que buscavam a mesma unidade. Corpos que eram, eles mesmo, verso e reservo de si.

Há no modo como Roriz sequencia os vários solos uma qualquer melopeia que quase trabalha em sentido contrário à extraordinária e profundamente urbana banda sonora de António Emiliano. Na agressividade do gesto reside um poder imenso de sedução que também é de procura e de carência. Peça marcadamente humana, Treze Gestos de um Corpo constrói-se a partir das energias de cada bailarino que precisa saber encontrar a coerência da sua personalidade no confronto com o desenho proposto pela autora. Ela nitidamente projecta-se naqueles corpos. Veja-se, por exemplo, Jardim de Inverno, o solo que criou para si em 1989, onde o corpo solitário explode num território marcado. Mas, sobretudo repare-se na recorrência imagética de peças que vivem de solos, Sete Silêncios de Salomé e Pedro e Inês, dando aos intérpretes um confronto corporal exposto a todos, mas profundamente privado.

Ecos de um legado precioso que Roriz sempre soube explorar, nem sempre da melhor forma, mas suficientemente coerente para se compreender que o gesto e o corpo de que fala são um gesto e um corpo interiores, prisioneiros, necessitados de uma explosão. Que o tenha sabido fazer aqui e que, vinte anos depois, conserve uma força, uma identidade e um desígnio próprio, é a prova de que a história é feita de momentos que não só captam com a acuidade certa o ar do tempo como o perpetuam. Ajudando-nos assim a abrir janelas pelas quais respirar. Ou, no caso, portas por onde escapar.


[1] Poetique de la danse contemporaine, Contredanse, Bruxelas, 2004,
Fotografia de Eduardo Saraiva

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