quinta-feira, março 08, 2007

CNB comemora 30 anos a partir de hoje com novo programa



Treze gestos de um corpo: vinte anos depois

Apenas a primeira das múltiplas celebrações que a Companhia Nacional de Bailado prepara para assinalar a passagem de 30 anos sobre a sua fundação – que em Abril trarão ao Teatro Camões For The Peace of Children of Today and Tomorrow, trabalho de 1999 de Pina Bausch –, o Programa Primavera reúne, já em Março, quatro coreografias de autores idiossincráticos: William Forsythe, Mauro Bigonzetti, Gagik Ismailian e Olga Roriz. Todas as peças são interpretadas pela CNB neste programa pela primeira vez, que se dançará dias 8, 9, 10, 16, 17, 18, 23 e 24 deste mês.

The Vertiginous Thrill of Exactitude, de Forsythe sobre o último andamento da Nona Sinfonia de Schubert, foi estreada pelo Frankfurt Ballet em 1996 e, escreveu a crítica Roslyn Sulcas, “reveste-se de todos os elementos tradicionais da dança clássica: tutus, sapatilhas de ponta, virtuosismo, lirismo e uma agradável formalidade na relação entre os sexos”, numa “arrebatadora demonstração de técnica clássica”.

No mesmo ano estreou Dualidade, a coreografia de Gagik Ismailian (arménio residente em Portugal, antigo primeiro bailarino do Ballet Gulbenkian), pelo Balé da Cidade de São Paulo. A peça, que Ismailian submeteu a uma recriação para a CNB, integra canções de Amália Rodrigues e de Wim Mertens e organiza o discurso coreográfico em torno da noção de dualismo de género: “confrontação e emancipação de dois sexos, um duelo, esta ideia intrigante de confrontar e deliciosamente esperar pela reacção do adversário”, define o autor.

Passo Continuo é a coreografia de Mauro Bigonzetti que a Companhia Aterballetto estreou em 2005. Com música original de Antongiulio Galeandro que consiste em improvisações sobre Johann Sebastian Bach, Passo Continuo é, para Bigonzetti, “um bailado muito corporal. Não relata nada em particular, não contém uma história, expressa apenas encontro e colisão, fusão e separação”.

Mas o destaque do programa vai para Treze Gestos de um Corpo, de Olga Roriz, cuja estreia absoluta, pelo Ballet Gulbenkian, teve lugar há precisamente 20 anos, a 27 de Março de 1987, em Lisboa (na foto). Com música de António Emiliano, luzes de Orlando Worm e cenário e figurinos de Nuno Carinhas, a criação de Roriz viria a tornar-se icónica para o trabalho do Ballet nos anos 80, dado ter marcado público, crítica e até uma geração de bailarinos (quase trinta) que interpretaram a peça nas suas numerosas reposições e digressões: dois elencos, de treze bailarinos e treze bailarinas, com figurinos indistintamente “masculinizantes”.

Treze Gestos de um Corpo parte d’A Obra ao Negro, de Marguerite Yourcenar, para se definir estruturalmente: “acontecia-lhe muitas vezes reabrir uma porta, simplesmente para se assegurar que não a tinha fechado atrás de si para sempre, demonstrando-se, a si mesmo, a sua curta liberdade de homem”. A citação remete para as treze portas de que surgem, um a um, os intérpretes, numa secção inicial que, como escreveu o crítico Clement Crisp, “se assemelha a uma imagem ondulante, pois o gesto de se levantarem e tirarem o casaco passa sucessivamente ao longo da fila de homens sentados. É um conceito fascinante que prolonga e ao mesmo tempo fragmenta a acção, tal como as fotografias analíticas do movimento de Eadweard Muybridge”.

Seguem-se os treze solos, que – assegura Roriz – “têm dinâmicas e exigências técnicas distintas”, implicando uma “cuidada distribuição de papéis”. Nesta peça “sobre o reflexo de uma pessoa em frente de dois espelhos paralelos que formam uma multiplicação de imagens até ao infinito”, a sucessão de solos evidencia que “em cada um desses espelhos a imagem não é igual, é como se em cada um houvesse uma evolução, uma transformação do movimento, uma continuação do gesto anterior”. Yourcenar dizia-o assim: “Ele enumerava as qualidades da substância que via em sonhos. A ligeireza, a impalpabilidade, a incoerência, a liberdade total em relação ao tempo, a mobilidade das formas da pessoa que faz com que cada uma sejam várias e que todas sejam reduzidas a uma”. A raiva, o medo, a angústia, a fúria, o desmaio, vivido por um homem (ou uma mulher) estilhaçado em treze corpos.

Refira-se que a CNB é a quinta companhia a interpretar Treze Gestos de um Corpo. Depois do Ballet Gulbenkian em 1987 (que a levou à cena 81 vezes), dançaram-na o brasileiro Ballet Teatro Guaíra em 1990 (então sob direcção de Carlos Trincheiras), o Ballet Nacional de Espanha em 1992 (sob direcção de Nacho Duato, que assumiu um dos solos), e, em Itália, o Maggiodanza, Ballet do Teatro Maggio Fiorentino em 1999 (sob direcção de Davide Bombana) e, em 2001, o Ballet do Teatro Alla Scala (dirigido por Frédéric Olivieri). Mehmet Balkan re-convoca-a agora a Lisboa.


[texto publicado na revista OBSCENA #2, p.24, e da responsabilidade da redacção. Fotografia: Eduardo Saraiva]

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