quinta-feira, novembro 16, 2006

O Melhor Anjo no 35º Festival d’Automne: Até que deus é destruído pelo extremo exercício da beleza, de Vera Mantero & guests

crítica de dança

Nota: Este texto foi escrito tendo visto a versão mostrada em França que entretanto, e a partir da apresentação em Portugal, sofreu alterações, nomeadamente ao nível da disposição cénica.

Até que deus é destruído pelo extremo exercício da beleza
de Vera Mantero & guests
09 Novembro 2006
Le Quartz – Scéne Nationale de Brest
Sala quase cheia
O espectáculo apresenta-se em Paris, no Centre Pompidou, até sábado 18 e em Lisboa, na Culturgest, a 23 e 24 Novembro.


A ilusão cénica

O poema de Herberto Helder, «Lugar II», ao qual o mais recente espectáculo de Vera Mantero, «Até que deus é destruído pelo extremo exercício da beleza» foi roubar o título, fala da condição fatal daquele que ama, condenado que está ao desassossego, à busca incessante de um momento de paz que nunca chegará, «pois não há paz para aquele que ama».

Também na peça de Vera Mantero - estreada em França no passado dia 09 de Novembro e que se apresenta em Lisboa, na Culturgest, a 23 e 24 de Outubro, depois de uma passagem pelo 35º Festival d’Automne em Paris – há uma busca que surge a partir de inquietações que há muito atravessam o seu percurso: como se constitui um movimento, o que pode um intérprete, para que serve a dança. Questões que aqui são exploradas a partir de um imenso diálogo entre o grupo de intérpretes e o público. Os seis co-criadores – Antonija Livingstone, Brynjar Bandlien, Loup Abramovic, Marcela Levi, Pascal Quéneau e a própria Vera Mantero -, estabelecem desde muito cedo que o exercício de resistência a que se prestarão só provocará efeito se dele resultar uma resposta. Mesmo que ao longo do espectáculo nos apercebamos que aquilo que dizem é de uma banalidade comovente, mesmo que falem de guerra, manipulação, máquinas e identidade, importa notar que há nesta espécie de lamento colectivo um grito contra a resignação, a forma e o reconhecível.

Há uma frase do pintor Robert Rauschenberg em entrevista na década de 60, em que este afirmava não classificar as suas obras como pintura, mas antes como «combinados» (ou «combinações», o termo inglês é «combines»), uma vez que, por causa da utilização de diversos materiais, e sobretudo pela nova forma de pensar a utilidade da tela, mais facilmente seriam classificadas como esculturas do que como pinturas. E, com este novo termo, ele salvaguardava-se de qualquer contraditório menos fundamentado. Vera Mantero não tem qualquer pudor em assumir que «Até que deus…» é um espectáculo de dança, mesmo que, para a maior parte do público, aquilo que eles fazem em palco tenha muito pouco a ver com dança. Num plano formal teriam razão: eles não dançam. Ou, pelo menos, não se mexem muito de acordo com aquilo que se espera de um espectáculo de dança. E mais ainda de um espectáculo de Vera Mantero, onde o corpo sempre foi objecto para a exploração de diversas neuroses, inquietações e outros reflexos do que o rodeia. A verdade é que, mesmo sem uma atenção muito demorada e atenta, há mais dança em cada um dos seus movimentos quotidianos que em muitas sequências virtuosas de um espectáculo tradicional.

Este espectáculo, que é tão só o extremar de posições claras sobre o comportamento do corpo em palco, não devia constituir qualquer surpresa para quem quiser olhar a fundo a obra desta coreógrafa que, com «Até que deus…» valida, uma vez mais, a sua condição paralela à cena nacional. O uso da palavra enquanto primeiro elemento de comunicação existe no espectáculo não somente enquanto ponto de chegada de um discurso sobre o intérprete enquanto um todo (corpo, voz e presença), mas também enquanto rampa de lançamento para uma discussão sobre o silêncio em palco, a relação entre pensamento e acção e a presença da dança num discurso artístico colectivo.

Não é preciso falar dos diversos concertos que tem vindo a realizar, ou recuar até ao solo «uma estranha coisa disse e. e. cummings» (1996), onde Vera Mantero recriava a famosa artista Josephine Baker do alto de uns cascos e através de um disruptivo monólogo, ou mesmo a «Comer o coração» (2004), onde a voz servia para rasgar a prisão a que se sujeitava o corpo encravado na imensa escultura de Rui Chafes, para reconhecer que o corpo do qual a coreógrafa fala depende de uma reflexão teórica intensa que, não se inscrevendo tanto na reformulação dos códigos da dança, parte deles para definir de que modo a dança pode ser interventiva e politicamente activa. Basta recordar a intervenção apocalíptica que realizou no São Luiz – Teatro Municipal, no fim do Alkantara festival, no passado mês de Junho em Lisboa, «um mergulho - pensamento, poesia e corpo em acção», e que serviu para lançar o processo criativo de «Até que deus…», para perceber que este é um exercício de resistência. Estamos, muito provavelmente, perante um dos gestos políticos mais acutilantes que nos foram dados a ver em tempos recentes.

Tratamos aqui de uma ilusão cénica. Os corpos que aparentemente não se mexem estão em constante ebulição. Sentados nas cadeiras alinhadas à boca de cena, cada um dos intérpretes existe a partir de uma fisicalidade intensa. Os seus gestos, mínimos e comuns ao colectivo, são uma dança introspectiva que, por surgirem das palavras, as seguem e as ampliam. Depois, a cada mudança de posição das cadeiras no palco vazio à sombra de um imenso meteorito, numa geometria precisa e simplificada mas nem por isso menos complexa, os mesmos gestos ganham contornos quase cartoonescos. A sua repetição, se denuncia a banalidade do discurso, é também a única possibilidade de vincarem no espaço o vazio das palavras. Há neles uma ligeireza e uma aparente liberdade que esconde a dimensão celebratória, ritualista e religiosa que os sustenta.

De certa forma, aquilo a que assistimos é a um momento de transe que dura quase hora e meia, e onde os seis intérpretes, vestidos como se saídos de uma fábula distorcida – do efebo sado-masoquista (Brynjar Bandlien), à mestre de cerimónias em registo bestial (Vera Mantero) -, efectuam uma dança do pensamento a partir das modulações da voz. Reside aqui uma, se não a principal, das forças deste opus sonoro-visual. A circunscrição do movimento às expressões faciais e aos entusiasmados braços dá às palavras a total liberdade de expressão. Isso mesmo se comprova pelo modo como palavras insuspeitas dão origem a outras inusitadas, como ladram e miam, como transformam as palavras e o corpo em máquinas («We love machines», repetem-no vezes sem conta), como através de uma palavra procuram o conforto na cadeira… Tudo resultando numa coerente cacofonia, todos os paradoxos incluídos («a vida não só não é perfeita… como é curta», dizem perto do fim).

O espectáculo, num inglês assumidamente burlesco e gutural, constrói-se a partir dessa coesão do elenco («We are a group», insistem), da voz e do gesto invisível. E essa espécie de massa colectiva e cumulativa, que impressiona pelo modo como se mantém intocável ao longo de toda a performance sem nunca se perceber onde começa um e acaba o outro, vai ganhando terreno contra o desconforto de quem vê, preso à necessidade de aceitar as regras do jogo ou recusá-las, receoso de não as compreender e, por isso, não lhe serem dirigidas.

Se é verdade que podemos ver aqui uma certa dificuldade em ultrapassar uma barreira quase impositiva, não é menos verdade que só dessa forma se poderá obter uma reacção. Porque, se o espectáculo é um convite ao diálogo, é também um longo lamento sobre a impossibilidade desse diálogo acontecer de forma justa e equilibrada. Razão pela qual é corajoso que alguém o faça numa altura em que os coreógrafos que fizeram o corte com a dança pós-moderna e reivindicaram um espaço para a reflexão devolvendo a dança ao terreno da confrontação com a própria sociedade (logo, ampliando a noção de contemporaneidade), estão a ser confrontados com reacções bastante violentas (veja-se Maguy Marin, Jêrome Bel, Christian Rizzo, Xavier Le Roy, Meg Stuart) e acusações de autismo, imaturidade e alguma displicência quer para com os espectáculos quer para com o público.

O que «Até que deus…» mostra é que, na verdade, não há outra forma de captar a atenção – do público, mas também dos criadores e dos pensadores -, senão pelo confronto directo, pelo total abandono da metáfora, pela exposição nua das estruturas do pensamento coreográfico. Tendo-se abandonado já a ideia de que o intérprete é só corpo ao serviço de uma linguagem coreográfica e, consciente da necessidade em discutir como se organiza a presença desse todo num palco – lugar de todas as ilusões, logo, de todos os escapes e subterfúgios -, Vera Mantero oferece-nos a possibilidade de renovação do discurso coreográfico. Fá-lo através de um dispositivo generosamente descarnado – o que vemos é, de facto, o que existe e o que obteremos -, para o qual são convocadas, como numa conversa ébria de fim de noite, todos os assuntos. E neste convite directo ao diálogo, todas as perguntas merecem uma resposta. É possível que se fique com a sensação de que há algo que nos escapa (e não escapa sempre?), que “eles” se divertem mais do que “nós”, que a coesão do grupo, qual tragédia (há neles uma dimensão óbvia de coro grego), lhes será fatal.

«Até que deus é destruído pelo extremo exercício da beleza» é um espectáculo de alerta para um determinado estado de coisas difícil de sustentar. Impõe-se contra a desconstrução e o humor, o facilitismo e a evidência, a nova formulação e o fechamento das classificações. É, como fica dito no texto, «uma cápsula espacial», onde «algumas coisas não são daqui e outras não pertencem aqui». Mas é, mais do que tudo, um dos mais livres e completos espectáculos de Vera Mantero. A maturidade que comporta é suficiente para acreditar que o corpo não precisa de outras formulações. Contêm em si mesmo todas as ferramentas para uma permanente reformulação porque, como disse o compositor John Cage, «there is no such thing as silence».



Texto escrito com o apoio do Programa de Apoio à Dança do Serviço de Música da Fundação Calouste Gulbenkian.

Ler, neste blog, outros posts sobre a coreógrafa Vera Mantero, entre os quais, uma entrevista e um perfil.

3 comentários:

Pedro Ludgero disse...

Devo dizer-te que cirandar por vários sítios a ver espectáculos para depois sobre eles escrever, é uma vida que eu francamente invejo. Melhor só podia ser: fazer os espectáculos e depois cirandar com eles.

Abraço

João disse...

interessantes pontos de vista sobre esta obra simultanemente tao radical e tao quadrada. o grito da vera soa alto, as vezes nao passa de um gemido, mas ao fim fica-se com um sabor estranho, uma paradoxal necessidade de açao e uma impossibilidade de agir, ou de acreditar no potencial transformador de qualquer açao. "we mumble and fumble", beckett em tempos atuais. discordo quando vc afirma que a peça é a mais livre da vera, concordo com o fato dela ser a mais completa. também discordo quando vc afirma que os corpos estao vivos ali, pelo que pude observar o maior problema desta obra esta na fisicalidade indefinida, apatica até. ah, a nao-ficçao da vera as tantas nao consegue escapar ao fato de se tornar uma (isto nao é problema algum, em se tratando de uma obra sincera e frontal como esta). bom, a peça é importante, obriga o espectador a trabalhar infinitamente, fica na memoria, segue causando impressoes mesmo depois da pergunta: "are we ready?"

Anónimo disse...

Eu não devo ter visto o mesmo espectáculo que vocês. Ou então sou muito estupido e não percebo nada. Mas para mim as coisas valem o que são e não o que queremos dizer com elas. Se o som de uma serra eléctrica representar a coisa mais interessante do mundo, eu continuo a achar esse som insuportável e, como tal, não gosto.
Só como coisas que me sabem mal se elas me fizerem bem à saúde... o que não é o caso deste espectáculo que não percebo porque é que se faz, para quê?...
Há gostos para tudo mas uma minuscula elite monopolizar a opinião dos poucos criticos de arte e ficar na "moda" uns tempos é algo que acho provinciano e pequenino.
Não gostei. E gostos são a única coisa que se discute.