terça-feira, novembro 14, 2006

Na primeira pessoa: Meg Stuart

Meg Stuart, coreógrafa iconoclasta norte-americana e instalada na cena europeia, tem atravessado a última década e meia em busca de uma instabilidade no corpo, no espaço e no discurso. O seu último espectáculo «It’s not funny!» prolonga aquilo que Jean-Marc Adolphe, redactor da revista francesa Mouvement, apelida de «dança do desastre». Os corpos, em permanente confronto com o desconhecido, carregam memórias e projecções do que os rodeia, implicando-se com o que se passa. Nesta conversa, decorrida em Berlim uns dias depois da estreia desse espectáculo, Meg Stuart fala da sua vontade em questionar o papel do coreógrafo, insiste numa recusa de um statement e reafirma-se parte de um movimento criativo transfronteiriço.

«Quem quer fazer afirmações num palco normalmente esquece-se de fazer um espectáculo» - Meg Stuart

Começo por uma citação, retirada do programa do espectáculo Highway 101: «I no longer feel I’m a fixed presence. I cut parts of my identity out of their context». Não há um melhor exemplo para dar quando falamos de retórica da identidade do que tu, vinda dos Estados Unidos e trabalhando há anos por toda a Europa. Mas achas que já deixaste de ser vista como exótica?

Isso é uma boa pergunta para ti. [risos] definitivamente não me vejo como uma outsider, mas continuo a criar o meu mundo, as minhas ligações, as minhas pessoas, os meus projectos… uma espécie de abrigos temporários que por vezes cedem e eu crio novos. Eu vivo num outro espaço que não está dividido por realidades físicas como teatros específicos ou dependente de relações pessoais. Estão sobretudo relacionadas com o trabalho.

E com o facto de seres mulher?

Eu sei que o facto de ser uma mulher na Volksbühne tem importância, uma vez que não há encenadoras ou coreógrafas além de mim. Mas as escolhas que eu faço não são dependentes de ser mulher. Eu não tenho, em relação ao meu trabalho, um controlo absoluto de tudo aquilo que ele diz ou pode significar. Todo o meu trabalho é sobre fantasmas, ser um fantasma. Ser estrangeira no país onde trabalho, ser o próprio fantasma que me persegue…mas ao mesmo tempo eu não estou a tentar trazer para os espectáculos as minhas histórias pessoais.

Ou fazer statements?

Isso faz-me lembrar o que alguém me estava a dizer recentemente acerca dos espectáculos no Volksbühne estarem cheios de mensagens… mas eu apresento-me ali e não o quero fazer passar nenhuma mensagem, não quero educar ninguém, não faço statements.

Talvez mais do que uma mensagem se possa falar desta necessidade dos espectáculos terem que ter um significado directo, serem legíveis… uma exigência que me parece estar mais evidente nas artes performativas do que em outras disciplinas. Jean Marc Adolphe fala de «Alibi» [2001] como a 1ª peça pós 11 de Setembro e é verdade que podemos encontrar em alguns dos teus trabalhos já apresentados uma dimensão política mais evidenciada naquilo que ele apelidou de «dança do desastre». A questão é saber se ela existe através da definição clara das questões que queres tratar, por imposição de modelos ou até pelo simples facto de seres permanentemente estrangeira.

Isto é uma evidência o que vou dizer, mas cada coisa que fazes em palco é política, às vezes inconscientemente ou outras propositada. Mas há níveis diferentes. «Crash Landing», foi criada como improvisação entre 1996 e 1999, sendo permanentemente repensada em cada cidade onde se apresentava, e com os contextos a moldarem as implicações políticas. Em «It’s not funny!» [2006] eu não tenho uma afirmação específica mas tenho obsessões às quais regresso e que, no caso, têm a ver com estas normas impostas, ou que se querem impor, sobre como nos devemos comportar, agir ou interagir. E acho que há muita vergonha em assumir isso. Por isso, quando o espectáculo termina com uma lista de situações sobre as quais não se suportam mais novas anedotas, não sei se será óbvio que há ali um discurso político. É claro que em «Alibi» o contexto social amplifica a dimensão politica do espectáculo. As imagens foram tiradas das fotografias de Abu Grahib, mas o mais interessante é que não é possível saber se nos conseguimos identificar com aquele casal. «Alibi» é sobre como nos distanciamos, como não participamos no que está à nossa volta. A grande questão é a indiferença em que grande parte de nós se deixa cair.

É claro que podemos sempre perguntar-nos se existe algum poder na criação para provocar essas mudanças. E, sobretudo, quem lhe reconhece esse poder.

Eu não acho que muda. A maior parte das vezes as pessoas “passam” pela arte como se estivessem numa auto-estrada. Mas espero sempre que se alguém escolher sentar-se numa plateia escura para ver alguma coisa, seja comédia ou horror, acabe por ser questionada sobre essa capacidade de mudança. Mas é uma projecção de nós para eles porque, provavelmente nós, os que estão no palco, podemos fazer coisas das quais eles, os que estão sentados, têm medo, ou não conseguem lidar ou, simplesmente, não conseguem ver. Mas isso é só uma parcela do espectáculo. É claro que um espectáculo pode mudar a percepção das pessoas em relação às coisas e abre uma espécie de janela para o mundo. Mas o meu maior conflito com a ideia de afirmação é que, quem quer fazer afirmações num palco normalmente esquece-se de fazer um espectáculo e não assume que, simplesmente, não sabe. Há coisas que as pessoas não sabem, que levam tempo a aprender. E não saber é parte da “coisa”. Antes de qualquer afirmação sobre o teatro ou a dança, é preciso saber-se o que se quer fazer, é preciso ser-se reconhecido, é preciso lidar com os lados negros, com o que lhes é desconfortável… E a maior parte não o quer fazer, razão pela qual o expõe de forma tão evidente no palco. Mas o que é preciso dizer ao público é que, num teatro, eles estão a salvo, não precisam ter medo do que está a ser mostrado.

O teatro como um espaço onde o público está a salvo, de si mesmo, dos criadores, do mundo, dos espectáculos, é uma ideia um tanto utópica.

Eu não digo que eles estão salvos [risos], digo só que não há razão alguma para terem medo do que lhes é proposto. Eu acho que há insegurança, paranóia e tensão no mundo que nos retira a capacidade de perceber o que é ou não real. As pessoas deviam estar dispostas a deixarem-se levar, a embarcar na viagem. E eu estou muito interessada na capacidade de resgate do público para poder ter tempo de pensar com ele e vê-los render-se ao que estão a ver. Há uma manipulação constante das coisas, e isso está muito presente no meu trabalho.

Uma leitura que, certamente depois do 11 de Setembro se tornou ainda mais evidente. Sendo uma americana na Europa, e para mais artista, em que medida houve uma afectação desse acontecimento no teu trabalho?

[risos] Provavelmente teve, mas eu não sei exactamente dizer como. Eu fui a Nova Yorq e vi aquele buraco enorme vazio [o Ground Zero] e isso é certamente perturbador, mas preocupa-me mais o que aconteceu em Nova Orleães [o furacão Katrina, Setembro 2005], que foi o lugar onde nasci. Acho que isso é vergonhoso. Para mim a mudança não está tanto no meu processo de trabalho ou no meu discurso, mas mais no modo como ele é recebido e como existe alguma pressão para que respondas a essas dimensões político-sociais. Não é confortável ser uma americana na Europa hoje em dia por causa das relações conflituosas que se criaram a partir de posições diferentes, nomeadamente, em relação à guerra no Iraque. E isso é triste. É como se, por causa dos acontecimentos recentes, fosses visto com outros olhos.

Ainda assim, por mais estranho que possa ser essa presença americana na Europa, o teu trabalho é feito com condições que, para muitos criadores europeus, são impensáveis.

Eu não digo que seja mais difícil criar, digo só que a recepção é diferente. Mas provavelmente da mesma forma que se criou em relação aos alemães uma forma diferente de os olhar depois da guerra, ou aos palestinianos… enfim, digo que é mais difícil nesse sentido do olhar. E essa diferença que existe não é algo criado por ti. O meu trabalho foi sempre sobre a catástrofe. Quando eu estou no estúdio a trabalhar, sozinha e às voltas, estou sempre a lidar com a recuperação de um acidente, de uma catástrofe… Ou seja, trabalho em busca de uma cura, de uma recuperação… de uma re-integração do corpo que tem um problema de mau funcionamento… mas tudo de uma forma muito profunda e muito implicada com aquilo que me rodeia. Ou seja, não vou pegar em velhos hábitos ou tradições da dança para as reformular. Não vejo mal que exista quem o faça, mas a mim interessa-me explorar os efeitos daquilo que me rodeia neste meu corpo que é um receptáculo e que também participa na construção da realidade. Somos nós que criamos o que nos rodeia.

Certo é que o facto de teres feito uma deslocação dos Estados Unidos para a Europa te deu uma visibilidade, reconhecimento e presença que seria muito diferente da que terias se continuasses em Nova Yorq.

Sim, é verdade. Não teria o tempo nem a possibilidade de uma série de cruzamentos que fizeram o meu percurso. Eu sou bastante permeável no trabalho. Por exemplo, para a última peça, «It’s not funny!», o convite do festival em Salzburgo foi tão estranho que eu só podia aceitar. Queriam que eu fizesse uma comédia e isso despoletou qualquer coisa. O facto de ser imposta essa ideia de divertimento levou-me a aceitar um convite que, à partida, nada me dizia. Mas isso é sempre uma questão: para onde levar o trabalho? Por isso eu prefiro definir-me como qualquer coisa “entre espaços”.

Ainda assim há uma marca Meg Stuart, essa ideia de «dança do desastre», por exemplo...

Eu sinto que [pausa]… Eu ando a trabalhar há mais de quinze anos. [risos] Mas acho que continuo à procura. Eu também não sei. Eu procuro e observo e experimento e ponho o meu mundo em questão. Eu não estou lá ainda, de certa forma. Mas sei que me dediquei ao trabalho, aos processos, aos intérpretes. E acho que sou consistente naquilo que faço. Neste momento sinto que busco uma forma de evitar as mesmas formas de pensar o corpo. Há questões que me ocupam neste momento: uma problemática teatral, uma fisicalidade narrativa… mas isto tem também a ver com o facto de estar a ficar velha e de aparecerem outros desafios.

É interessante que o ponhas dessa forma, uma vez que, no teu percurso, mais do que uma desconstrução, falamos de uma re-construção. O que me parece aliás evidente nas colaborações com artistas de outras disciplinas, onde não há uma vontade de perceber quem vai ganhar a quem e, ao mesmo tempo, o evitar por completo de uma fusão que descaracterize cada uma dessas linguagens. E essa percepção do objecto enquanto “coisa cumulativa” está, de certa maneira, a ser posta em causa através de definições como hibridismo ou transdisciplinaridade.

[risos] Eu suporto carros híbridos, não posso pagar um, mas defendo-os. Tudo o mais… [encolhe os ombros e ri]. É verdade que eu estou aberta à contaminação, à disrupção, à mudança permanente de contextos… mas parte tudo das obsessões que tenho. Não estou em nenhuma ilha deserta. Eu estou sobretudo interessada na comunicação. Não me interessa o corpo por si mesmo e mais a música e o equilíbrio efémero. Interessa-me saber como nos expressamos, como nos escondemos, como nos revelamos, como nos expomos e interagimos com outra pessoa. E a percepção é muito importante também. Esteve presente em «Visitors Only» [2003] onde os corpos entravam em diálogo com as paredes que se alteravam permanentemente. E isso obriga a viagens constantes entre o corpo e a mente. Torna-te mais primário, mais agressivo, modifica-te. Essa noção de presença em palco interessa-me muito.

Uma presença que me parece orientada para o espectador. Ou seja, onde este se deve sentir confrontado com o que se passa no palco. É assim?

Bom, eu creio que com «It’s not funny!» cheguei a um ponto em que não podia ser mais evidente essa orientação. Mas em «Replacement» éramos nós, os intérpretes, os nossos próprios observadores e não havia qualquer gesto em direcção aos espectadores. Acho sobretudo que lido com actos e consequências. Eu quebro o copo, reconheço que o fiz, há uma reacção a isso. Ou limpo ou ignoro. E é sempre sobre isso. O que eu faço e porquê. Importa-me a qualidade do “como”. E esse “como” chegará de diversas formas a quem vê. Há sempre mudanças que são dependentes de uma série de factores. Não há uma linha directa para a cabeça das pessoas. A dança tem múltiplas camadas, diversos níveis de interpretação. E não acho que seja muito interessante fixar essas interpretações de modo a que sejam identificáveis e se fechem em si mesmas. «Alibi» foi uma contra-acção, por exemplo. Eu acho que estou num diálogo, ainda que por vezes comigo mesma [risos].

É uma questão de escolha e de assumir as consequências da escolha.

Sim. Eu adoro suspense. Adoro perguntar-me o que vai acontecer a seguir. Isso acontece no cinema. E a narrativa, porque nos envolvemos, deixa-nos presos à história.

Mas o suspense e a narrativa devem, dar-nos “chaves de interpretação” para que, no fim, possamos perceber onde chegámos.

Eu gosto de desorientação no corpo, na estrutura e na narrativa. O meu processo é o mesmo em cada nível de trabalho. O que é verdade para o que procuro no corpo, é verdade para o que procuro no público. Há algo estável e, de repente, sentes que algo te perturba e, talvez seja isso, ou talvez não… [risos]

David Lynch em vez de Hitchcock, portanto.

O David Lynch é brilhante. E é isso mesmo.


Com o apoio do Programa de Apoio à Dança do Serviço de Música da Fundação Calouste Gulbenkian, do Roberto Cimetta Fund e do Goethe Institut. Foto: Tina Rusinger

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