Discreto como o mais refinado dos venenos, saiu ontem em Diário da República o novo regulamento de apoio às artes, da responsabilidade do Ministério da Cultura. O documento, que teve uma discussão pública muito pouco participada, vai transformar radicalmente o modo de funcionamento das companhias. Faltando a publicação da portaria que o legitimará, prevista para daqui a algumas semanas, o novo diploma, Decreto-Lei n.o 225/2006 de 13 de Novembro, acaba com quaisquer dúvidas sobre as intenções do Ministério em hierarquizar a atribuição de apoios sem uma real consciência do mercado.
Abre-se o documento dizendo: «os tipos de apoio, os processos e os critérios de apreciação são diferenciados em função do perfil das entidades e da natureza dos projectos. Para além da distinção por área artística, estabelece-se uma distinção de base entre actividades de criação e actividades de programação, distinguindo-se igualmente actividades continuadas de criação ou de programação de projectos de natureza pontual, sendo a apreciação destes últimos também diferenciada segundo as suas características e objectivos. Importa ainda distinguir, dentro de cada área, entre projectos estruturalmente diferentes, cuja avaliação não é comparável. [...] Deste modo, pretende-se tornar mais transparente a avaliação das diferentes situações e conferir-lhe maior objectividade, comparando o que é comparável».
O diploma prevê que os apoios passem a existir a partir de «acordos tripartidos entre Ministério da Cultura, autarquia e entidade de criação e protocolos entre Ministério da Cultura e autarquias para apoio à programação. No mesmo sentido, é ainda desenvolvido, como oficina virtual gerida pelo Instituto das Artes, o Programa Território-Artes, que disponibiliza em tempo real toda a informação relevante, tanto do lado da criação, como do lado das infra-estruturas de programação, permitindo o ajuste contratualizado por essa via do tipo de actividade, dos locais, do calendário e das condições técnicas e financeiras da sua realização».
Convém lembrar que o que se está a passar no Porto com o Teatro Rivoli, sobre qual, aliás, a Ministra da Cultura vai moderar um debate acerca do papel das autarquias (et pour cause?!) lança negras perspectivas sobre essas divisões com as autarquias. E ainda que este programa Território Artes prossegue algo que já existia, no tempo em que o Instituto das Artes se chamava IPAE e que foi suspenso, não só por falta de verbas, mas porque as autarquias não compravam os espectáculos.
O novo programa tem como objectivos «assegurar o acesso público aos diversos domínios da actividade artística», «descentralizar e dinamizar a oferta cultural, corrigindo as assimetrias regionais» - a partir do «índice populacional» e «avaliação qualitativa e quantitativa do tecido cultural local» -, e, entre outros, «promover a partilha de responsabilidades do Estado com os agentes culturais, as autarquias locais e outras entidades, públicas e privadas, com vista a incentivar a criação, a produção e a difusão das artes».
Valores nobres, certamente, mas que se distribuem a partir de critérios um tanto enviesados. No caso das entidades de criação («qualquer organização profissional privada legalmente constituída, sediada no território de Portugal continental, que exerça uma actividade regular predominantemente no domínio da programação, com experiência demonstrada na gestão e programação de salas, espaços de exposição e recintos, bem como na gestão e programação de actividades culturais»), os apoios quadrienais directos serão considerados, cumulativamente, da seguinte forma:
«a) Ter, nas áreas do teatro e da música, pelo menos, 15 anos de actividade profissional continuada, e ter tido apoio financeiro do Ministério da Cultura durante um período de 8 anos no cômputo dos 10 anos imediatamente anteriores à data do processo de selecção;
b) Ter, nas áreas da dança e transdisciplinar, pelo menos, 10 anos de actividade profissional continuada e ter tido apoio financeiro do Ministério da Cultura durante um período mínimo de 4 anos no cômputo dos 8 anos imediatamente anteriores à data do processo de selecção;
c) Ter núcleo profissional permanente;
d) Ter instalações próprias licenciadas, ou possibilidade de utilização regular dessas instalações através de cedência gratuita, arrendamento ou concessão, para apresentação dos espectáculos e criações;
e) Obter parecer favorável da comissão de acompanhamento e avaliação».
No caso dos apoios bianuais directos «podem candidatar- se as entidades de criação e as entidades de programação que tenham, pelo menos, cinco anos de actividade profissional continuada à data da abertura do procedimento» ou «as entidades que tenham, pelo menos, cinco anos de actividade profissional continuada à data da abertura do procedimento e cuja actividade principal seja a formação em contexto não escolar ou o apoio à criação através de residências artísticas».
Já no caso dos pontuais, a porta abre-se a todos, companhias, criadores ou espaços, independentemente de terem recebido um apoio quadrianual ou bianual desde que o mesmo não tenha sido contemplado no apoio já recebido. E justificam-se dizendo que se valorizam «sinergias que contribuem para a qualificação e o desenvolvimento sustentado da actividade artística». E, logo de seguida (como se a contradição não fosse óbvia), acrescentam: «pretende-se promover uma distribuição equilibrada das actividades artísticas por todo o territórionacional, mas ao mesmo tempo evitar o subfinanciamento e o desperdício de recursos que decorrem da multiplicação excessiva do número de entidades apoiadas».
O Ministério garante que, com este novo programa, «haverá uma contratação por objectivos com as entidades beneficiárias que as estimule a mudanças ou progressos qualitativos e quantitativos e permita corrigir aspectos em que estas revelem fragilidades quando comparadas a nível nacional e ou regional com entidades congéneres», ao qual não é alheio o desejo de «promover a fixação de entidades de criação e produção artísticas no interior». Para isso o Ministério inventou uma fórmula que desvendará as «zonas do território de menor índice de oferta cultural». Ou seja, «o concelho ou conjunto de concelhos cujo número de entidades apoiadas pelo Ministério da Cultura é inferior à média nacional, resultante da divisão do número de entidades apoiadas no País pelas cinco direcções regionais, e à média da zona de competências da direcção regional de cultura respectiva, resultante da divisão do número de entidades apoiadas nessa direcção pelo número de concelhos nela existente». Como disse?
Para lá da esquizofrenia de criar um diploma para um Instituto das Artes que está condenado a transformar-se, mesmo que sem data prevista nem sequer menção no documento, em Direcção-Geral das Artes, o Ministério pouco mais adianta sobre o modo como vai garantir o funcionamento do programa Território Artes, como vai controlar o equilíbrio das responsabilidades das autarquias, verificar a acumulação de projectos e nomes, assegurar que a formação e o processo de trabalho possam ser feitos em condição não precárias, prever alternativas para as cativações, avaliar correctamente as companhias cujos resultados são desfasados dos apoios atribuídos e, sobretudo permitir que a criação artística não seja somente avaliada a partir dos seus resultados economicistas.
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