terça-feira, janeiro 10, 2006

Perspectivas

1. Em 2002, quando Morais Sarmento, ex-ministro do PSD acabou com o programa ACONTECE, dirigido por Carlos Pinto Coelho na entretanto extinta RTP 2, a razão foi, uma vez mais, custos. Disse o iluminado dirigente que, com o que o programa custava, e tendo em conta a sua audiência, poderia pagar-se uma viagem à volta do mundo a cada espectador. A boutade demagogica, serviu para as mais absurdas especulações, mas os factos consumaram-se. O programa acabou e foi substituido por um hibrido, quase igual ao outro, mas agora disfarçado com grafismos conceptuais, muitos genéricos e demasiada informação para ser devidamente trabalhada. No entretanto, o dinheiro gasto em cada programa deve continuar a dar para pagar uma viagem a cada espectador, ja que a hora a que passa assim o permite. Vem isto a proposito das declarações de ontem do Secretario de Estado da Cultura, Mario Vieira de Carvalho, que afirmou não se justificar o salario de Antonio Lagarto, "uma remuneração que era sensivelmente o dobro ou muito perto do dobro do director do Teatro Nacional de São João [Ricardo Pais] para fazer o mesmo trabalho", quando o trabalho apresentado não podia ser comparado. E a adicionar a esta excelente oportunidade para comparar os tamanhos dos cheques, reflicta-se sobre a grande meta de Carlos Fragateiro, director indigitado para o Teatro Nacional, e que acha que todas estas movimentações, cartas e vigilias são feitas por quem não percebe o que é trabalhar em cultura: adaptar-se aos 1.5 milhões de euros que, segundo contas feitas, certamente a partir da relação despesas/receitas do Teatro da Trindade, dara para gerir 3 teatros. Ou seja, se em vez de se colocarem mais batatas, se puder meter mais agua, a sopa tera o mesmo sabor. O que o Secretario de Estado não explica é como é que é possivel que se possa gastar o mesmo mas obter-se mais, num espaço que precisa ser refundado, de modo a, aì sim, poder-se cumprir o programa do governo. E, ainda, para quem se esta a gastar, não dentro de uma linha estética, mas de programação, como referiu Isabel Pires de Lima, nas poucas coisas coerentes da conferência de imprensa de ontem. Mais uma vez, batemos aqui no argumento do resultado imediato numa area que se faz de constante investimento (despesas que geram publico que geram receitas). Achar-se que uma sala cheia é sinonimo de programa de governo cumprido é tornar inutil a substituição de Frausto da Silva do CCB, ja que bastaria continuar-se a alugar a sala para concertos e equilibrar depois com qualquer coisa assim mais "à margem" para garantir abrangência de publicos. A cultura não são so numeros e usar-se a cultura para defender a imagem de um pais tem custos, que é preciso cobrir. Não bastam as salas cheias, o "teatro minoritario" de que falou a Ministra é, em grande medida, a razão de ser do Ministério da Cultura, ja que so ele tem os meios para garantir que a arte não seja sempre pão e circo. Porque o Estado, ao não querer ser estético, deve procurar perceber o que é que é fundamental para um pais, e o que é que nele falha. Ora, aqui o que falha é uma cultura de formação. Ler uma revista ou ler um livro não é a mesma coisa, como ver um texto de Freitas do Amaral não é certamente a mesma coisa que ver Brecht. Isso não tem nada a ver com gosto ou estética, coisa que qualquer ex-comunista devia saber de cor.

2. é por todas estas questões que a carta Queremos um Ministério capaz não foi feita para defesa de Antonio Lagarto, mas como alerta (uma vez mais!!) para um estado de coisas que nunca mudam. Nunca se tratou da fulanização, como também nunca se tratou de fazer rolar cabeças so pelo gaudio em vê-las, humilhadas, pela escadaria do Palacio da Ajuda fora. Fez-se isso com Sasportes e não deu em nada. Trata-se, isso sim, de exigir uma politica coerente, de acordo com aquilo que foi sufragado e não aceitar a movimentação populista das cadeiras, como se dos lugares de decisão não dependessem centenas de logicas que modelam uma paisagem cultural. A substituição de Antonio Lagarto foi, por isso, a gota de agua, e não o farol de uma atitude conjunta. Eu proprio, ao considerar o ainda director do Nacional como figura do ano na area do teatro, fiz questão de apontar uma série de problemas, mas ainda assim ter sido capaz de re-colocar o teatro na vida cultural da cidade. Se agora se sabe que Antonio Lagarto ja sabia que Carlos Fragateiro andava a negociar o salto para Dona Maria II, e se é reprovavel que nada tenha dito, em nada se invalidam as acções decorridas. Pelo contrario, saem reforçadas, uma vez que se libertam do "peso" fulanizador que muitos lhe atribuiram. Razão pela qual agora, mais do que nunca, é preciso levar por diante essa atitude. Vão os signatarios por uma nova politica cultural, permitir-se a co-produções com o Nacional (designação agora por demais ironica) de Fragateiro, ou fazer por elevar o nivel da criação nacional? Esta, portanto, na altura de saber o que é, quem são e em que acredita a comunidade artistica. Sim, falo precisamente de boicote à programação, à participação em actos publicos no Nacional, à recusa de parcerias. Eduardo Prado Coelho, num regresso à lucidez, ja o assumiu hoje, no PUBLICO: "Pessoalmente, depois da demissão de Lagarto, não voltarei a participar em qualquer colóquio no D. Maria II nem lançarei ali nenhum dos meus livros. Questão de ética." Não se podem voltar a escudar em logicas financeiras, porque isso sera sempre visto como ter dois discursos. A lista de nomes que assinam a carta aberta - e muitos deles a fazerem-no pela primeira vez, como explicaram ao PUBLICO hoje Miguel Lobo Antunes, programador da Culturgest e Nuno Judice, poeta -, é por demais significativa da transversalidade dos problemas. Não se trata aqui de defender coutadas, mas de se ser coerente com os discursos criticos manifestados. A mudança de mãos do Nacional (um passo historico por demais importante se tivermos em conta a rivalidade entre Nacional e Trindade ao longo do século XX) é a prova cabal de uma ingerência politica que podera permitir a capitulação de uma ideia de cultura para um pais ultra-dependente de modelos. é assim tão grave, pois.

3. Por isso mesmo não podemos deixar que o estado das coisas caia de podre, como se nada tivessemos a ver com isso. Os erros não se pagam mais tarde, pagam-se no exacto momento em que se cometem. Acreditar na justiça divina, ainda mais em Portugal, é um acto de grande ingenuidade, para não dizer de cobardia. Esperar que a culpa seja atribuida a posteriori é uma atitude tão ou mais retorica e demagogica como aquela que impede que se tomem decisões. O respeito ganha-se por se recusar aquilo que parece irrecusavel. Veja-se o caso de Luis Miguel Cintra, que sempre recusou o cargo de director do TNDMII, precisamente por ausencia de programa politico. A partir do momento em que Carlos Fragateiro entrar no Teatro Nacional, podem esquecer-se todas as vontades de edificar um modelo programatico consciente e activo. Voltaremos a essa corrente, sempre ambigua e irresponsavel, que foi (que é) "pôr ao gosto português", que, alias, esteve na origem do Teatro Nacional, no ido ano de 1846, e contribuiu, entre outros factores, para o atraso da cultura do pais. A escolha representa um retrocesso, como aqui defendi, precisamente porque evidencia a noção capelista que muitos agentes têm da cultura, Ministério incluido. O facto de quererem fazer parecer uma guerra entre populistas e conceptuais é, por isso, ridicula. Trata-se, efectivamente, de adiar a resolução de um problema grave e que é o de saber qual o papel que o Estado quer que o Teatro Nacional represente. Formalmente podemos todos aceitar que esse papel passe pela presença das produções do TNDMII na rede de cine-teatros que, lentamente (exactamente por falta de verbas) se consolida por todo o pais. Mas então qual é o papel do Ministério nesses mesmos espaços que (co-)tutela? Pense-se no recente exemplo do Teatro Aveirense, em que o coreografo Paulo Ribeiro foi afastado depois de se envolver politicamente na campanha autarquica, e substituido por Rui Sérgio, ex-sub-director do Teatro da Trindade, que ja afirmou ter a intenção de abrir o teatro ao grande publico. é o papel do Ministério so responder consoante o peso do espaço, ou de facto existe uma estratégia? E ainda nos cine-teatros, podemos perguntar: quem é o director do Teatro Municipal de Faro, depois de Antonio Rosa Mendes se ter demitido por falta de orçamento? Quando terminam as obras no Teatro-Circo de Braga? Quem assume a responsabilidade da programação do Teatro Avenida, em Castelo Branco, ja que foi a propria Câmara Municipal a reconhecer não ter pessoas indicadas para o cargo? A circulação far-se-à, então, por onde, senhora Ministra? E o que significa realmente abrir as portas ao publico? é dar-lhes sempre comédias populares e dramalhões inuteis, ou po-los a pensar no que são (e para que servem) as artes performativas? é dar mais do mesmo? é um regresso ao pão e ao circo?

4. Por isso, senhora Ministra, senhor Secretario de Estado, senhores agentes culturais, senhores espectadores, senhores desconfiados e detractores de todas estas manifestações: não esta em causa so a mudança directiva de "um" Teatro Nacional. Esta em causa a ausência de uma estratégia politica clara. Ou melhor, uma estratégia que sirva a cultura e não que se sirva dela para alimentar cofres a qualquer preço. Em suma, esta em causa aquilo que verdadeiramente se quer para a cultura em Portugal. Aquilo que defendemos como cultura. Aquilo que se quer perpetuar. Não é assim tão pouco.

7 comentários:

JPN disse...

"O facto de quererem fazer parecer uma guerra entre populistas e conceptuais é, por isso, ridicula!" Concordo absolutamente contigo neste aspecto. Mas terás de reconhecer que esta questão teve um empolamento que só foi possível por causa dessa tentativa de diabolização, de colocar no plano do sinistro as mudanças que o Ministério da Cultura, com a legitimidade que têm para manter ou para mudar um determinado status quo entenderam como necessárias para o Nacional. E mais do que isso, e é isso é que é triste - porque as lutas de poder são legítimas (se pensarmos que são tão legítimas as de Lagarto como as de Fragateiro)- a uma ridicularização da dramaturgia portuguesa como se o trabalho sobre ela fosse algo que não é feito no diálogo com as outras dramaturgias. Dizer que a ministra abdicou da exclusividade da dramaturgia portuguesa é isso sim, saloio, populista, quando se sabe, sempre se soube, nunca se poderia ter deixado de saber que dizer que o Teatro Nacional tem de assumir como sua vocação o trabalho sobre a dramaturgia portuguesa não é dizer que só se possa fazer textos de autores portugueses e se for necessário, para que a caricatura seja maior a a populaça desate a rir às bandeiras despregadas, que é para fazer os textos do manel, do antónio, do zé, da miquelina. As vozes avisadas de Jorge Silva Melo que tem todo o direito de cumulativamente não gostar de Carlos Fragateiro e ser um dos protagonistas de um dos projectos sobre a dramaturgia portuguesa mais interessantes e esclarecidos dos últimos anos, juntaram-se a um chorilho de asneiras sobre o umbiguismo, sobre a ensimesmamento, sobre o lado sinistro de um trabalho sobre a dramaturgia portuguesa. Como se nunca tivesse havido neste país um projecto como o DRAMAT que deveria servir como um Teatro Nacional pode assumir a sua vocação de apoio ao desenvolvimento da Dramaturgia Portuguesa? Teve de ser uma pessoa que pouca relação tem com o teatro, como a Ministra, a lembrar-lhes o papel da dramaturgia na construção de uma identidade. Ignorância? Má-fé? Jogo político? A quem interessa esta redução do discurso ao grau zero da honestidade? Mas interessava esssa diabolização, esse lado sinistro, pacóvio. Misturando o pacóvio com o político. Sabe bem a mistificação. É intelectualmente profundamente desonesta mas o que interessa isso se o objectivo é uma luta de poder? O que faz lembrar Séneca, no belíssimo espectáculo que a Cornucópia montou há uns dois ou três anos: " que interessa se consegues manter o poder se é todo o teatro que se desmorona na mentira, na calúnia?"

JPN disse...

no post anterior deve ler-se "...se nunca tivesse havido neste país um projecto como o DRAMAT que deveria servir como referência daquilo que um Teatro Nacional...". obrigado

Anónimo disse...

caro jpn,
não hove nenhuma "tentativa de diabolização". A politica cutural deste governo foi desastrosa e a escandalosa nomeação do fragateiro foi só a gota de àgua. sabes bem que ele não tem formação para ser director artístico de nada. é apenas um aprendiz de empresário dentro do aparelho do PS onde se diz encenador e homem do teatro. Quais encenações? no TELA e na Efémero? será o Mário e a Isabel foram ver o TELA e a Efémero?
Foi só a gota de àgua. É teu patrão e quer ser patrão de muita gente para os calar como calou muita gente aceitando ter no Trindade a pior equipa técnica e de produção do teatro português pois o cargo de director era elegivel e havia que "comprar" votos atroco de tolerar a imcompetência.
Foi mais que a gota de àgua, foi a torneira aberta em tanque cheio.

Dos tubarões fugi eu
Os tigres matei-os eu
Devorado fui pelos percevejos

B.Brecht

JPN disse...

Caro Tiago,
se me conhecesses um pouco melhor sabias que não tenho patrões. mas não és obrigado a conhecer-me, nem o quanto me entristece que alguém possa pensar que há alguma correlação entre isso e o que eu digo, mas assumo que isso não releva para nenhuma desconsideração minha do que tu dizes. Vivemos num país de canalhas como dizia o Fernando Mora Ramos quando lhe destruiram o DRAMAT e por isso tomamo-nos todos uns aos outros pela mesma medida. Gosto deste pais assim, com a sua canalhice, a sua filha da putice, mas também com a sua capacidade de se deixar render ao verbo, à retórica das palavras. Como já deves ter percebido discutimos em dois campos de interesse opostos: a ti interessa-te mostrar a incapacidade do C. Fragateiro para assumir o projecto do D. Maria II, eu estou-me borrifando para isso. Ele que se defenda que tem corpo e idade para isso. Eu defendo a dramaturgia portuguesa contra essa ideia pacóvia e só aparentemente cosmopolita que populisticamente tem sido levantada. Ou seja, falando curto e depressa, comam-se uns aos outros mas não estraguem o teatro!!! Se é o teatro que querem mesmo, então ele deverá estar mais forte depois desta contenda. E assuma-se que o dirigismo cultural não é só do Palácio da Ajuda. É também daqueles que com pouco fazem muito estardalhaço. O facto de ter a minha formação académica em Comunicação Social deu-me para saber reconhecer o processo de fabricação de um acontecimento. De "um som que bate". Citei, apropriando-me, Séneca, respondeste com Brecht. Mudo de assunto com Abel Pereira da Fonseca: " Do real também se faz notícia!"

Tiago disse...

olha JPN, não fui eu que assinei anonimamente. Nunca o faria, se sempre assine os meus posts com o e nome.

Tiago disse...

e atenção, não vamos embandeirar em arco o DRAMAT como se com o seu fim tivesse sido posta em causa a sobrevivência da dramaturgia nacional. Até porque, e como deves saber, os autores que la se estrearam, estão hoje bem vivos e representam-se. e é errado da tua parte achares que eu so quero desmontar o Fragateiro, como se alias para isso fosse preciso muito. E quero mais. Eu quero uma politica cultural a serio. Ve la tu bem que eu ate defendo a inclusão de textos de teatro nos programas escolares, para la do Gil Vicente e do Frei Luis de Sousa.

JPN disse...

Boa, Tiago, assim começamos a entendermo-nos no que é importante. Quanto à resposta pensei que eras tu por causa da linha de continuidade do texto. Desculpa. Mas quanto ao Dramat a conversa merece mais umas linhas (em breve vou dedicar isso algum espaço no respirar quando tiver condições técnicas para blogar melhor) embora seja certo e sabido que os autores que lá estrearam (ou que por lá foram publicados como eu)estão vivos e regista-se aliás um dinamismo muito maior desde há uns dois anos para trás muito em parte também devido a alguns empurrões e ajudas internacionais.