sexta-feira, dezembro 02, 2005

"Fazemos o que temos a fazer" - uma conversa com João Fiadeiro (IV)

Conclui-se hoje a publicação da conversa que O Melhor Anjo teve com o coreógrafo e bailarino João Fiadeiro, director artístico da Re.Al, a sua companhia de dança que comemora esta semana 15 anos. Hoje fala-de dos novos projectos e do futuro.

"Fazemos o que temos a fazer" - uma conversa com João Fiadeiro (IV)



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É então toda essa reflexão que vos leva a criar esta divisão de projectos e, lançando várias pontes, tentar perceber o que se pode e como se pode fazer?

O que fizemos foi uma divisão interna ao nível da criação e da investigação. No fundo incorporámos uma série de actividades que já aconteciam, mas estavam dispersas e aconteciam de uma maneira pontual e esporádica. E agora têm uma lógica programática, em que no início existe um trabalho de ao nível da investigação sobre a Composição em Tempo Real e as suas aplicações, que é transformado, por exemplo, numa aula semanal aberta à comunidade, na qual as pessoas aparecem. Depois temos outra etapa que são workshops, blocos mais intensos de duas ou três semanas em que há um trabalho localizado no tempo. Depois há o LAB, um espaço de fronteira entre a experimentação e a exposição, ao nível do propótipo. Há estas quatro etapas com os potenciais interessados no processo de investigação. No LAB deste ano há seis participantes, orientados por mim, o [realizador] Pedro Costa e o convidado de cada participante. Os três primeiros são internos, Marta Lança, Ana Borralho e João Galante e o Gustavo Sumpta. Os outros três LAB serão feitos por pessoas que sairão do case-study, onde há um processo de investigação, de modo a que também eu possa evoluir, havendo transmissão entre criação e investigação. É uma dinâmica que não temos pudor em assumir, o nosso trabalho está aberto ao exterior, mas há portas de entrada específicas. Depois há outros dois projectos que são transversais a esta actividade. Um são as aulas de corpo, anteriores à preparação e à investigação, onde decidimos apostar no método de Feldenkrais, que ainda não está em Portugal a não ser pontualmente. A ideia é que daqui a quatro anos haja um centro e haja aulas regulares. Interessa-nos e estamos motivados com esta metodologia. E há uma outra coisa que se chama Blind Date que é um objecto de encontros, que dependem um pouco do momento. São marcados sem antecedência, dois ou três dias antes, e aí convidamos o espectador a vir ao desafio, sem saber ao que vem. Depois há outro aspecto ao nível da documentação. Uma das estratégias - para evitar o que aconteceu no Ginjal [onde estiveram entre 96 e 97], com o rio a entrar pelo Ginjal dentro e as cassetes a boiar, ou quando fomos expulsos da Capital [em 2002] e as coisas ficaram lá um ano a apodrecer -, é começar a arquivar as estratégias de memória. Como preservar esse tempo e essa memória, quase para provar que estivemos aqui.

Havendo a consciência de que o trabalho se faz não por acumulamento mas por sobrevivência e percepção acerca do modo como enfrentar os desafios, tens medo de quê para os próximos 15 anos?

Foi duro chegar até aqui. Muito duro. Já passei por fases muito complexas e acho que conseguimos criar, não só ao nível do método, da dinâmica de trabalho, das colaborações, dos projectos que desenhamos, uma espécie de ética.. Houve dois ou três momentos em que eu podia ter vacilado completamente, perdido o norte, desistido, sei lá. Mas acho que ao chegar aqui criei uma maturidade em relação ao que estou a fazer. A metodologia está num momento muito avançado e foi comprovada com vários pequenos testes, e como tenho um grupo de colaboradores que me impedem de cair e rotinas que têm a ver com uma deformação onde eu ia beber quando estava mais perto da estreia. E se em 2007 esta peça de grupo, na qual já estamos a trabalhar, comprovar que não consigo transportar para o grupo aquilo que já consigo transportar para mim individualmente, será um fracasso. Mas a sensação que tenho, vinda das pessoas que se aproximam de nós e que trabalham connosco, é que há aqui trabalho para 20 anos. Há outros medos. Mas aí já são coisas de sobrevivência elementar e não intelectual ou filosófica, conceptual ou artística

Mas se toda essa parte intelectual está solidificada, caso as outras condições financeiras, por exemplo, não acompanharem, o que é que pode acontecer? Achas que, com base no trabalho desenvolvido lá fora, era possível uma deslocalização? Ou melhor, o que é que faz com que esse trabalho aconteça aqui, em Portugal?

Já tive dois momentos em que estive quase para me deslocalizar. Uma em 1996 e outra em 2002, antes do Tiago [Guedes] e da Cláudia [Dias] aparecerem. E houve inclusive a escrita de um projecto para concorrermos a um Centro Coreográfico francês. Mas em 1996 apareceu o [Espaço] Ginjal [em Cacilhas], e agora apareceu este espaço que nos deu a esperança. E de há dois anos para cá que eu estou plenamente convencido que vai ser aqui que vou fazer os meus próximos quinze anos. As pessoas com quem estou a trabalhar são muito boas e muito interessantes e autónomas. Temos uma dinâmica financeira que nos permite ser apoiados a 40% pelo Estado e 60% por produções próprias. Isto dá-nos muito mais liberdade, mas é verdade que esses 60% estão muito dependentes desses 40%, que pagam a estrutura. Não havendo estrutura é mais complicado. Se houver cortes orçamentais violentíssimos é evidente que não terei outra escolha senão sair, ou se este espaço deixar de existir. Mas acho que já estamos numa direcção, e temos uma dinâmica europeia, que estar em Lisboa já é só “a casa”. E para a investigação estar aqui é muito importante. É mais útil. As consequências são mais fortes e a discussão mais artesanal, mais violenta, com mais feridas abertas. Francamente, acho que estou no início. É como se todos estes quinze anos só tivessem servido para começar. Só agora é que sei que aquilo que fiz serve para o que vou fazer. Se tivesse desistido há dois ou há sete anos, ficava com aquela coisa de não saber. Agora sei perfeitamente que tudo o que fizemos serve para isto que estamos a fazer. Para aquilo que vai acontecer. Se fizermos as coisas com calma, respeitarmos os nossos princípios, se soubermos dizer não quando é necessário, dar a cara quando é necessário, vamos conseguir.


Fotografias: José Luís Neves
Edição: João Miguel Xavier e Tiago Bartolomeu Costa
Agradecimentos: Miguel Bonneville, Eira, Re.Al

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