Ao longo da semana, O Melhor Anjo publica uma conversa com o coreógrafo e bailarino João Fiadeiro, director artístico da Re.Al, a sua companhia de dança que comemora esta semana 15 anos. Hoje fala-se do método de Composição em Tempo Real, que o coreógrafo tem vindo a desenvolver na construção dos seus espectáculos.
"Fazemos o que temos a fazer", uma conversa com João Fiadeiro (III)
Da mesma forma que temos, no teatro, uma constante investigação acerca do lugar do actor na hierarquia cénica, temos na dança diversos movimentos e correntes que pensam o lugar do intérprete e a margem de criação deste num processo de criação, atendendo àquilo que são os códigos clássicos e a perpetuação destes em companhias de repertório. A Composição em Tempo Real (CTR) é a teoria/proposta filosófica (a resposta) da Re.Al e do João Fiadeiro para uma pesquisa sobre o lugar do intérprete na criação?
É também. A CTR é um monstro… e ainda está no início. Mas já tem um tempo de vida grande. É um espaço que intervém em várias áreas e uma delas é reflectir sobre o lugar do corpo e do intérprete na composição, no fazer, no imaginário, no significado. Pode transformar-se numa teoria da própria percepção ou da representação. É também um espaço onde se trabalha de uma maneira quase exclusivamente técnica, para quem queira só trabalhar, diria, nos seus níveis de confiança, de auto-conhecimento perante aquilo que pode fazer, de relativização… Mas também tem capacidades de intervir na definição de estratégias da própria mise-en-scéne, de escrita dramatúrgica… Neste momento a metodologia tem regras, técnicas muito concretas, exercícios próprios… e daqui a um ano ou dois talvez ela se feche num objecto não digo final…
Como é que foi desenvolvida e como é que se chegou a uma primeira hipótese de confrontação/utilização com outros?
Eu ainda não descodifiquei as razões, mas parte desta ideia do “porquê?”. Ou seja, em vez de fazer sem saber porquê, ou de fazer porque me mandam e porque sempre se fez assim, eu questionei “será que eu não posso saber porquê?”, “como é que eu cheguei aqui?”, “como é que este gesto aparece?” ou “o que é que faz com que este gesto recorrente seja quase uma assinatura”, “até que ponto é mesmo assim ou é uma projecção”, o sentido da pertença, a cópia da cópia… Questões “simples” que têm a ver com o facto de eu vir de uma formação clássica (no Ballet Gulbenkian) e ter vivido o lado de lá. Houve coisas que eu não gostava, que eu não queria, que fazia porque me mandavam. Até que há um ponto em que eu pergunto “porquê?”. E quando eu faço esta questão inicio o processo. Começo a interessar-me por coisas relacionadas como a improvisação, o contact improvisation. As minhas primeiras peças são, no fundo, projectos de simulação e de projecção e adaptação, de aplicação de coisas que aprendi nos workshops para as minhas peças. Até que há um momento em que volto a perguntar “porquê?”. E aí começo a negar, a fechar, a evitar essa recorrência. Começo a desconfiar mais de mim e do meu corpo. “Este gajo não faz necessariamente aquilo que devia fazer. Se calhar anda-me a enganar. Então deixa-me descodificar como é que isto funciona”. Depois há uma fase em que me começo a interessar em ciências cognitivas, sobre o funcionamento comportamental, aquilo que nos faz ser quem somos, aquilo que é a percepção, um interesse sobre as ciências humanas… Começo a ser contaminado por todas essas estratégias e percebo que eu próprio tinha mecanismos que já me eram naturais. Mecanismos de vivência do presente muito intensos, de selecção de memórias, que podiam ser muito interessantes se descodificados e utilizados primeiro como técnica, depois como método. Não tinha sido por acaso que uns anos antes eu me tinha feito aquela pergunta. Mais tarde percebi que tinham também a ver com a minha vida pessoal, enquanto filho de exilados, uma vida um pouco trágica, a minha relação com a morte até aos dez anos… fez com que eu me esquecesse de coisas. A coisa foi evoluindo até ao ponto em que eu sozinho já não conseguia processar nem tanta informação nem a complexidade destas questões, e comecei a reunir uma série de pessoas que não só de dentro faziam como de fora pensavam. Os workshops passaram sempre a ser acompanhados por pensadores e fazedores e começámos a criar um discurso, a simplificar, a separar. Ao mesmo tempo que ia ensinando, ia testando e aprendendo coisas. Depois ficava a remoer…
Devemos, então, ao se falar do método falar também de um processo onde deve ser utilizada (ou manipulada) a autobiografia, convocado o modo como a pessoa se relaciona quer com o quotidiano - quer com o processo criativo, mas também com o modo como vai construindo uma persona -, ou, pelo contrário, é precisamente um abandono de todas essas regras de composição, para se poder perceber a “justificação” para se poder fazer uma determinada coisa e não outra?
Há um princípio base que é a ideia de que tu não controlas o que representas. Portanto, não vale a pena começar por aí. Tu só sabes o que significas no fim e só se alguém te disser ou, sobretudo, quando se fecha um ciclo da tua actividade. Enquanto intérprete não deves agir em função de uma imagem que tens de ti, ou do que tu pensas representar, mas agir em função de um conjunto de critérios que o método te fornece para que não percas o eixo, o fluxo da tua presença. Mas esses critérios não têm nada a ver com aquilo que significas. Isso é o trabalho de quem te vê. Tem a ver com critérios que são definidos pela própria metodologia. Isso liberta imediatamente o intérprete daquilo que representa e, portanto, do julgamento de si próprio.
Portanto, não vale tudo…
Não vale tudo, antes pelo contrário. É até uma metodologia bastante rígida, no sentido em que não se antecipa – não há um guião ou uma dramaturgia -, mas os condicionalismos são tantos e tais, e de uma exigência e complexidade tal que quase só podes fazer aquilo. É muito ténue a relação entre o livre-arbítrio e a noção de liberdade. A liberdade está muito associada a uma ideia de responsabilidade, e a responsabilidade a uma ideia de escolha, de opção perante duas ou três, quatro, cinco, seis possibilidades... O que o método faz é dar-te a possibilidade de escolha, de cada vez que chegas a um sítio em que tens que tomar uma opção. E essa escolha não te é dada cerebralmente, é antes a intuição que manda. Nesse aspecto o método está completamente dependente dos níveis de confiança que cada intérprete tem, de modo a que no momento de escolha a sua intuição – e não uma intuição pessoal, mas uma artística, de “compositor”, decida por aquela opção que for a melhor, a mais apropriada tendo em consideração a sua experiência, a sua sensibilidade. O que é importante neste processo é que tu te libertas do que representas. Tudo tem a ver com medos de “ir para ali”, receios de representar “isto”, desejos de representar “aquilo”. “Eu quero” não existe. “Eu gostava” não existe. “Eu desejo” não existe. O que existe é “eu faço”. É evidente que se tu vais numa determinada linha, se vês uma determinada acção, e de repente o teu corpo te diz “não vás por aqui” – já que ele tem exactamente como função preservar a tua segurança -, mas tu disseres “não, vou por aqui, porque estou a aplicar este método que não me pertence mas que eu aplico”, vais entrar em conflito com o teu corpo. Daí vai surgir qualquer coisa de emocional, que tu tens que gerir também. Mas a verdade é que o teu corpo não pode ganhar. E uma das razões [do método] é permitir que o corpo possa ir para sítios para onde nunca iria, se fosse “por livre vontade”. A ideia não é impedir que o intérprete ouça o seu corpo e que não confie no seu corpo, antes pelo contrário.
O “formalismo” no qual um espectáculo se organiza, dado pela fixação de gestos e sequências, não poderá contradizer o modo como esse processo se desenvolve?
É um perigo. Mas isso é verdade em projectos de grupo. Uma coisa é fazeres isso sozinho e isolado como eu fiz, por exemplo, no I am here, um produto cem por cento CTR. A ideia é que se consiga num grupo fazer a mesma coisa. Já não depende de ti, mas de ti no meio dos outros, no que isso exige de uma qualidade de auto-observação e auto-reflexão… Há outros aspectos, como por exemplo, a escrita dramatúrgica. Saber até que ponto podemos ou não fazer com que o método interfira não só na produção da matéria, mas na sua preservação, e na capacidade de reprodução, sem que perca qualidades à medida que vai sendo reproduzida. E isso é um grande desafio. Há pouco tempo apercebi-me de um equívoco de foco que tinha em relação à própria metodologia, que achava ter como principal objectivo entregar àquele corpo a credibilidade que só a primeira vez pode produzir. De alguma maneira eu negava-me a fixar e a única coisa que fazia era desenhar uma estratégia de condicionalismos. Eu condicionava a acção, mas não intervinha na acção, porque estava convencido que era no facto de ser a primeira acção, a primeira vez, que estava associada a credibilidade. Não deixa de ser verdade, mas é perfeitamente possível repetir-se e preservar a credibilidade, desde que naquele momento da repetição estejas também presente. Por outro lado, há uma coisa que sempre me fascinou muito, que é a ideia de ir mais longe na complexidade que uma frase pode ter desde que haja tempo de olhar para ela, assentar, deixar morrer…
É o corpo que está ao serviço do processo criativo ou o processo que vai caucionando o discurso que o próprio corpo produz?
Eu acho que é o corpo que está ao serviço de um processo criativo. É esse o objectivo principal desta metodologia, para além dos processos e vantagens periféricas ou paralelas que possa ter ao nível do auto-conhecimento e da própria solidificação da “personagem” uma vez construída. Estamos a falar aqui de uma fase de trabalho anterior à apresentação, anterior à “personagem”. Estamos à procura.
Mas é anterior até mesmo à concepção?
Exactamente.
O processo não existe como ponto para chegar a algo que possa ser questionado directamente por quem vê?
Sim, mas esse “algo” só ganha forma no fim. Não existe antes, ao contrário de outros processos. Só no fim é que vamos perceber o que fizemos e porque é que o fizemos. E saber se isso que fizemos tem ou não consistência para ser depois trabalhado de uma maneira já completamente distanciada das opções do próprio intérprete. Se tivermos a imagem do escultor tradicional que trabalha em pedra, estamos à procura da pedra. E de uma pedra que já tenha a escultura em potência.
Era o que dizia o Miguel-Ângelo acerca do seu David. Ele já estava dentro da pedra.
Exactamente. Ou seja, eu prefiro perder 80% do meu tempo à procura da pedra, do que 20% à procura dela e 80% a esculpir uma pedra de má qualidade. A metodologia tem essa função que é produzir a pedra de qualidade. E há um momento em que se diz “a pedra está aqui, agora vamos trabalhar nela”. E este é um trabalho muito complexo também.
Essa será já uma segunda fase.
Sim. E completamente distinta, na qual a metodologia já tem a função que tem na criação de um espectáculo de teatro. Já não tem nada a ver com o intérprete. Inclusive pode ser outro intérprete. Não tem que ser o mesmo que produziu a pedra. Porque uma coisa é a produção do ambiente, do potencial dramatúrgico de um espaço a trabalhar e outra coisa é trabalhá-lo. Ao trabalhá-lo já são outras sensibilidades. Uma das estratégias que vamos ter aqui é, numa primeira fase, trabalhar-se uma matéria bruta, numa segunda trabalhar em estratégias de fixação, na terceira os imaginários, e numa quarta fase trabalhamos em processos de mise-en-scéne. São fases distintas, que implicam lógicas distintas e quase como se uma não tivesse nada a ver com a outra. Agora ainda estamos a ver até que ponto é que a metodologia, mesmo na sua produção original da pedra, dessa matéria-prima, consiga resolver grande parte dos problemas, quer da escrita, quer da fixação, quer da própria mise-en-scéne. O acto criativo depende muito de uma sensibilidade, de uma disponibilidade, de uma atenção, de um tempo e de uma confiança, de uma capacidade de perder. Uma das coisas que o método de CTP diz é que tu tens que ir quase até ao fim e, se possível, “sobreviver” a morte de uma acção. Porque só assim é que podes perceber que houve uma ilusão de óptica e tu não estás tão perto do fim quanto pensavas. Muitos dos reflexos que o intérprete que trabalha de uma maneira mais convencional tem é de nunca chegar perto desse limiar. O que é francamente uma pena, porque a maior parte das coisas passam-se aí.
E não chega porquê? Porque não tem noção do perigo que isso possa representar?
Não terá noção, mas o seu corpo sim. No fundo, há uma aparente perversão do trabalho que é a de retirar ao intérprete um conjunto de características que nós temos como adquiridas – ou que o intérprete deve ter -, “eu sei, eu gosto, eu quero, eu sou criativo porque faço o que quero”. Isso desaparece tudo, sendo que é recuperado se, de facto, sobreviveres à ideia de perder, à ideia de silêncio, de não significar, à ideia de não controlares o que significas, que é das coisas mais difíceis. Tens só que confiar. E se tu estás, o outro também está… estão todos no sítio certo. E se todos estão no sítio certo, criam-se as condições para que quem olha de fora possa projectar a sua própria interpretação. De certa maneira o trabalho proporciona uma espécie de tela branca para que a escrita seja feita. E um dos grandes objectivos da metodologia, é criar uma qualidade invisível para que o “sub-texto” possa sobreviver e emergir. Ou seja, que o texto em si seja só uma arquitectura, uma estrutura necessária, porque sem ele não há sub-texto ou entrelinhas… e o que é importante é o que está nas entrelinhas. As linhas são necessárias, mas não podem criar questionamento ou poluição visual, imagética ou outra. Têm que ser limpas. É um método que, de alguma maneira, questiona de forma violenta e radical alguns dos pressupostos do que é o compor, como seja só saber no fim o que disse, ou a relação entre liberdade e livro-arbítrio e o ir contra o corpo, questioná-lo…
E o que é que isso está a dizer aquilo que é a dança? Como é que um processo tão complexo no final se apresenta como “óbvio”?
Isso para mim é um falso problema. O método tem uma noção muito profunda sobre o acto de fazer, de percepcionar e de viver, de ficcionar, mas sem perder a relação com a convenção. É evidente que à semelhança de outros métodos isto poderá ser muito útil se não for por osmose, por adaptação… E é verdade que o tipo de trabalho que eu faço, por exigir uma consciência do intérprete, quase reflexa, onde existe uma periferia à volta de um centro, implica uma liberdade grande em relação à ideia de concreto. Ou seja, é exigido ao intérprete uma velocidade de circulação entre aquilo que é a convenção – eu sei que tu sabes que eu sei que tu sabes… -, e o seu negativo, onde tu podes ir beber, ir trabalhar, “ir e voltar”, exactamente para criares esses pequenos desvios, essas nuances, que é o que vai criar a possibilidade de tensão, ruptura, questionamento. Vai preservar a atenção do espectador a partir da tensão que tu provocas interiormente a partir desse “ir e voltar”. Não se trata de ir e não voltar, porque isso é ficção científica e é um trabalho que tem a ver com probabilidades, mas de preservar a tensão do possível, ali na fronteira do descarrilamento total. Mas sem nunca passar para lá.
Então não deixa de ser uma reflexão dentro das fronteiras do que é a dança…
Não me interessa ter um caminho do lado de fora, porque só através das convenções é que me poderei questionar e ao espectador. Tem a ver com o manual, o artesanal, o poder-se tocar. Isto implica que eu tenha um intérprete com este tipo de características. E, normalmente, um intérprete que venha da dança, se não estiver muito condicionado pela sua própria formação e estratégias, é um intérprete perfeito. Por um lado partilha todas as condições que partilhamos – porque é uma pessoa como todas as outras e se tiver um bocado de espírito crítico, capacidade de análise e distanciamento de não se levar tanto a sério -, consegue colocar-se no meio de uma massa imensa de movimento, em que ele tem muito pouca capacidade de controlo. Por outro lado tem a capacidade – porque aprendeu, porque sabe -, de se desviar, de aceitar a abstracção como algo de perfeitamente concreto.
O que é que isto poderá dizer não só às novas gerações de criadores, mas também aos outros colaboradores, de outras áreas, sobre uma necessidade de pensar seja o lugar da dança seja o lugar do intérprete na composição coreográfica? Como é que um conjunto de elementos se podem organizar para a construção de objectos performáticos que pensem dentro das convenções, conscientes desses limites, para que o objecto seja menos efémero do que inerentemente é?
É também. A CTR é um monstro… e ainda está no início. Mas já tem um tempo de vida grande. É um espaço que intervém em várias áreas e uma delas é reflectir sobre o lugar do corpo e do intérprete na composição, no fazer, no imaginário, no significado. Pode transformar-se numa teoria da própria percepção ou da representação. É também um espaço onde se trabalha de uma maneira quase exclusivamente técnica, para quem queira só trabalhar, diria, nos seus níveis de confiança, de auto-conhecimento perante aquilo que pode fazer, de relativização… Mas também tem capacidades de intervir na definição de estratégias da própria mise-en-scéne, de escrita dramatúrgica… Neste momento a metodologia tem regras, técnicas muito concretas, exercícios próprios… e daqui a um ano ou dois talvez ela se feche num objecto não digo final…
Como é que foi desenvolvida e como é que se chegou a uma primeira hipótese de confrontação/utilização com outros?
Eu ainda não descodifiquei as razões, mas parte desta ideia do “porquê?”. Ou seja, em vez de fazer sem saber porquê, ou de fazer porque me mandam e porque sempre se fez assim, eu questionei “será que eu não posso saber porquê?”, “como é que eu cheguei aqui?”, “como é que este gesto aparece?” ou “o que é que faz com que este gesto recorrente seja quase uma assinatura”, “até que ponto é mesmo assim ou é uma projecção”, o sentido da pertença, a cópia da cópia… Questões “simples” que têm a ver com o facto de eu vir de uma formação clássica (no Ballet Gulbenkian) e ter vivido o lado de lá. Houve coisas que eu não gostava, que eu não queria, que fazia porque me mandavam. Até que há um ponto em que eu pergunto “porquê?”. E quando eu faço esta questão inicio o processo. Começo a interessar-me por coisas relacionadas como a improvisação, o contact improvisation. As minhas primeiras peças são, no fundo, projectos de simulação e de projecção e adaptação, de aplicação de coisas que aprendi nos workshops para as minhas peças. Até que há um momento em que volto a perguntar “porquê?”. E aí começo a negar, a fechar, a evitar essa recorrência. Começo a desconfiar mais de mim e do meu corpo. “Este gajo não faz necessariamente aquilo que devia fazer. Se calhar anda-me a enganar. Então deixa-me descodificar como é que isto funciona”. Depois há uma fase em que me começo a interessar em ciências cognitivas, sobre o funcionamento comportamental, aquilo que nos faz ser quem somos, aquilo que é a percepção, um interesse sobre as ciências humanas… Começo a ser contaminado por todas essas estratégias e percebo que eu próprio tinha mecanismos que já me eram naturais. Mecanismos de vivência do presente muito intensos, de selecção de memórias, que podiam ser muito interessantes se descodificados e utilizados primeiro como técnica, depois como método. Não tinha sido por acaso que uns anos antes eu me tinha feito aquela pergunta. Mais tarde percebi que tinham também a ver com a minha vida pessoal, enquanto filho de exilados, uma vida um pouco trágica, a minha relação com a morte até aos dez anos… fez com que eu me esquecesse de coisas. A coisa foi evoluindo até ao ponto em que eu sozinho já não conseguia processar nem tanta informação nem a complexidade destas questões, e comecei a reunir uma série de pessoas que não só de dentro faziam como de fora pensavam. Os workshops passaram sempre a ser acompanhados por pensadores e fazedores e começámos a criar um discurso, a simplificar, a separar. Ao mesmo tempo que ia ensinando, ia testando e aprendendo coisas. Depois ficava a remoer…
Devemos, então, ao se falar do método falar também de um processo onde deve ser utilizada (ou manipulada) a autobiografia, convocado o modo como a pessoa se relaciona quer com o quotidiano - quer com o processo criativo, mas também com o modo como vai construindo uma persona -, ou, pelo contrário, é precisamente um abandono de todas essas regras de composição, para se poder perceber a “justificação” para se poder fazer uma determinada coisa e não outra?
Há um princípio base que é a ideia de que tu não controlas o que representas. Portanto, não vale a pena começar por aí. Tu só sabes o que significas no fim e só se alguém te disser ou, sobretudo, quando se fecha um ciclo da tua actividade. Enquanto intérprete não deves agir em função de uma imagem que tens de ti, ou do que tu pensas representar, mas agir em função de um conjunto de critérios que o método te fornece para que não percas o eixo, o fluxo da tua presença. Mas esses critérios não têm nada a ver com aquilo que significas. Isso é o trabalho de quem te vê. Tem a ver com critérios que são definidos pela própria metodologia. Isso liberta imediatamente o intérprete daquilo que representa e, portanto, do julgamento de si próprio.
Portanto, não vale tudo…
Não vale tudo, antes pelo contrário. É até uma metodologia bastante rígida, no sentido em que não se antecipa – não há um guião ou uma dramaturgia -, mas os condicionalismos são tantos e tais, e de uma exigência e complexidade tal que quase só podes fazer aquilo. É muito ténue a relação entre o livre-arbítrio e a noção de liberdade. A liberdade está muito associada a uma ideia de responsabilidade, e a responsabilidade a uma ideia de escolha, de opção perante duas ou três, quatro, cinco, seis possibilidades... O que o método faz é dar-te a possibilidade de escolha, de cada vez que chegas a um sítio em que tens que tomar uma opção. E essa escolha não te é dada cerebralmente, é antes a intuição que manda. Nesse aspecto o método está completamente dependente dos níveis de confiança que cada intérprete tem, de modo a que no momento de escolha a sua intuição – e não uma intuição pessoal, mas uma artística, de “compositor”, decida por aquela opção que for a melhor, a mais apropriada tendo em consideração a sua experiência, a sua sensibilidade. O que é importante neste processo é que tu te libertas do que representas. Tudo tem a ver com medos de “ir para ali”, receios de representar “isto”, desejos de representar “aquilo”. “Eu quero” não existe. “Eu gostava” não existe. “Eu desejo” não existe. O que existe é “eu faço”. É evidente que se tu vais numa determinada linha, se vês uma determinada acção, e de repente o teu corpo te diz “não vás por aqui” – já que ele tem exactamente como função preservar a tua segurança -, mas tu disseres “não, vou por aqui, porque estou a aplicar este método que não me pertence mas que eu aplico”, vais entrar em conflito com o teu corpo. Daí vai surgir qualquer coisa de emocional, que tu tens que gerir também. Mas a verdade é que o teu corpo não pode ganhar. E uma das razões [do método] é permitir que o corpo possa ir para sítios para onde nunca iria, se fosse “por livre vontade”. A ideia não é impedir que o intérprete ouça o seu corpo e que não confie no seu corpo, antes pelo contrário.
O “formalismo” no qual um espectáculo se organiza, dado pela fixação de gestos e sequências, não poderá contradizer o modo como esse processo se desenvolve?
É um perigo. Mas isso é verdade em projectos de grupo. Uma coisa é fazeres isso sozinho e isolado como eu fiz, por exemplo, no I am here, um produto cem por cento CTR. A ideia é que se consiga num grupo fazer a mesma coisa. Já não depende de ti, mas de ti no meio dos outros, no que isso exige de uma qualidade de auto-observação e auto-reflexão… Há outros aspectos, como por exemplo, a escrita dramatúrgica. Saber até que ponto podemos ou não fazer com que o método interfira não só na produção da matéria, mas na sua preservação, e na capacidade de reprodução, sem que perca qualidades à medida que vai sendo reproduzida. E isso é um grande desafio. Há pouco tempo apercebi-me de um equívoco de foco que tinha em relação à própria metodologia, que achava ter como principal objectivo entregar àquele corpo a credibilidade que só a primeira vez pode produzir. De alguma maneira eu negava-me a fixar e a única coisa que fazia era desenhar uma estratégia de condicionalismos. Eu condicionava a acção, mas não intervinha na acção, porque estava convencido que era no facto de ser a primeira acção, a primeira vez, que estava associada a credibilidade. Não deixa de ser verdade, mas é perfeitamente possível repetir-se e preservar a credibilidade, desde que naquele momento da repetição estejas também presente. Por outro lado, há uma coisa que sempre me fascinou muito, que é a ideia de ir mais longe na complexidade que uma frase pode ter desde que haja tempo de olhar para ela, assentar, deixar morrer…
É o corpo que está ao serviço do processo criativo ou o processo que vai caucionando o discurso que o próprio corpo produz?
Eu acho que é o corpo que está ao serviço de um processo criativo. É esse o objectivo principal desta metodologia, para além dos processos e vantagens periféricas ou paralelas que possa ter ao nível do auto-conhecimento e da própria solidificação da “personagem” uma vez construída. Estamos a falar aqui de uma fase de trabalho anterior à apresentação, anterior à “personagem”. Estamos à procura.
Mas é anterior até mesmo à concepção?
Exactamente.
O processo não existe como ponto para chegar a algo que possa ser questionado directamente por quem vê?
Sim, mas esse “algo” só ganha forma no fim. Não existe antes, ao contrário de outros processos. Só no fim é que vamos perceber o que fizemos e porque é que o fizemos. E saber se isso que fizemos tem ou não consistência para ser depois trabalhado de uma maneira já completamente distanciada das opções do próprio intérprete. Se tivermos a imagem do escultor tradicional que trabalha em pedra, estamos à procura da pedra. E de uma pedra que já tenha a escultura em potência.
Era o que dizia o Miguel-Ângelo acerca do seu David. Ele já estava dentro da pedra.
Exactamente. Ou seja, eu prefiro perder 80% do meu tempo à procura da pedra, do que 20% à procura dela e 80% a esculpir uma pedra de má qualidade. A metodologia tem essa função que é produzir a pedra de qualidade. E há um momento em que se diz “a pedra está aqui, agora vamos trabalhar nela”. E este é um trabalho muito complexo também.
Essa será já uma segunda fase.
Sim. E completamente distinta, na qual a metodologia já tem a função que tem na criação de um espectáculo de teatro. Já não tem nada a ver com o intérprete. Inclusive pode ser outro intérprete. Não tem que ser o mesmo que produziu a pedra. Porque uma coisa é a produção do ambiente, do potencial dramatúrgico de um espaço a trabalhar e outra coisa é trabalhá-lo. Ao trabalhá-lo já são outras sensibilidades. Uma das estratégias que vamos ter aqui é, numa primeira fase, trabalhar-se uma matéria bruta, numa segunda trabalhar em estratégias de fixação, na terceira os imaginários, e numa quarta fase trabalhamos em processos de mise-en-scéne. São fases distintas, que implicam lógicas distintas e quase como se uma não tivesse nada a ver com a outra. Agora ainda estamos a ver até que ponto é que a metodologia, mesmo na sua produção original da pedra, dessa matéria-prima, consiga resolver grande parte dos problemas, quer da escrita, quer da fixação, quer da própria mise-en-scéne. O acto criativo depende muito de uma sensibilidade, de uma disponibilidade, de uma atenção, de um tempo e de uma confiança, de uma capacidade de perder. Uma das coisas que o método de CTP diz é que tu tens que ir quase até ao fim e, se possível, “sobreviver” a morte de uma acção. Porque só assim é que podes perceber que houve uma ilusão de óptica e tu não estás tão perto do fim quanto pensavas. Muitos dos reflexos que o intérprete que trabalha de uma maneira mais convencional tem é de nunca chegar perto desse limiar. O que é francamente uma pena, porque a maior parte das coisas passam-se aí.
E não chega porquê? Porque não tem noção do perigo que isso possa representar?
Não terá noção, mas o seu corpo sim. No fundo, há uma aparente perversão do trabalho que é a de retirar ao intérprete um conjunto de características que nós temos como adquiridas – ou que o intérprete deve ter -, “eu sei, eu gosto, eu quero, eu sou criativo porque faço o que quero”. Isso desaparece tudo, sendo que é recuperado se, de facto, sobreviveres à ideia de perder, à ideia de silêncio, de não significar, à ideia de não controlares o que significas, que é das coisas mais difíceis. Tens só que confiar. E se tu estás, o outro também está… estão todos no sítio certo. E se todos estão no sítio certo, criam-se as condições para que quem olha de fora possa projectar a sua própria interpretação. De certa maneira o trabalho proporciona uma espécie de tela branca para que a escrita seja feita. E um dos grandes objectivos da metodologia, é criar uma qualidade invisível para que o “sub-texto” possa sobreviver e emergir. Ou seja, que o texto em si seja só uma arquitectura, uma estrutura necessária, porque sem ele não há sub-texto ou entrelinhas… e o que é importante é o que está nas entrelinhas. As linhas são necessárias, mas não podem criar questionamento ou poluição visual, imagética ou outra. Têm que ser limpas. É um método que, de alguma maneira, questiona de forma violenta e radical alguns dos pressupostos do que é o compor, como seja só saber no fim o que disse, ou a relação entre liberdade e livro-arbítrio e o ir contra o corpo, questioná-lo…
E o que é que isso está a dizer aquilo que é a dança? Como é que um processo tão complexo no final se apresenta como “óbvio”?
Isso para mim é um falso problema. O método tem uma noção muito profunda sobre o acto de fazer, de percepcionar e de viver, de ficcionar, mas sem perder a relação com a convenção. É evidente que à semelhança de outros métodos isto poderá ser muito útil se não for por osmose, por adaptação… E é verdade que o tipo de trabalho que eu faço, por exigir uma consciência do intérprete, quase reflexa, onde existe uma periferia à volta de um centro, implica uma liberdade grande em relação à ideia de concreto. Ou seja, é exigido ao intérprete uma velocidade de circulação entre aquilo que é a convenção – eu sei que tu sabes que eu sei que tu sabes… -, e o seu negativo, onde tu podes ir beber, ir trabalhar, “ir e voltar”, exactamente para criares esses pequenos desvios, essas nuances, que é o que vai criar a possibilidade de tensão, ruptura, questionamento. Vai preservar a atenção do espectador a partir da tensão que tu provocas interiormente a partir desse “ir e voltar”. Não se trata de ir e não voltar, porque isso é ficção científica e é um trabalho que tem a ver com probabilidades, mas de preservar a tensão do possível, ali na fronteira do descarrilamento total. Mas sem nunca passar para lá.
Então não deixa de ser uma reflexão dentro das fronteiras do que é a dança…
Não me interessa ter um caminho do lado de fora, porque só através das convenções é que me poderei questionar e ao espectador. Tem a ver com o manual, o artesanal, o poder-se tocar. Isto implica que eu tenha um intérprete com este tipo de características. E, normalmente, um intérprete que venha da dança, se não estiver muito condicionado pela sua própria formação e estratégias, é um intérprete perfeito. Por um lado partilha todas as condições que partilhamos – porque é uma pessoa como todas as outras e se tiver um bocado de espírito crítico, capacidade de análise e distanciamento de não se levar tanto a sério -, consegue colocar-se no meio de uma massa imensa de movimento, em que ele tem muito pouca capacidade de controlo. Por outro lado tem a capacidade – porque aprendeu, porque sabe -, de se desviar, de aceitar a abstracção como algo de perfeitamente concreto.
O que é que isto poderá dizer não só às novas gerações de criadores, mas também aos outros colaboradores, de outras áreas, sobre uma necessidade de pensar seja o lugar da dança seja o lugar do intérprete na composição coreográfica? Como é que um conjunto de elementos se podem organizar para a construção de objectos performáticos que pensem dentro das convenções, conscientes desses limites, para que o objecto seja menos efémero do que inerentemente é?
Isso já me ultrapassa. Eu faço o que tenho que fazer. Nunca me posso esquecer que sou um artista e que a razão de ser deste método é, neste caso, a criação de espectáculos. Porque se às vezes me esqueço e penso que sou só pedagogo, investigador ou penso que este trabalho pode ter muito interesse noutras áreas do pensamento e das ciências, não posso seguir por aí. Não me posso esquecer ao que vim e porque razão estou aqui. Por ser um método tão complexo, intenso e forte, colocando o dedo na feira de vários problemas que já vêm vindo a ser analisados ao longo dos séculos, quando, por exemplo, o colocarmos em papel, de uma maneira definitiva-provisória, e quando começar a haver uma rotina e uma lógica acho que pode ser um instrumento importante de provocar movimento. Também pelo seu grau definitivo. Trata-se sobretudo de trabalhar no que não se deve fazer. Eu condiciono direcções, não por dizer para onde se deve ir, mas evitando ou impedindo que se vá por certos sítios. E o facto de tu não ires para onde normalmente se vai, obriga-te a pensar porque é que ias.
Fotografias: José Luís Neves
Edição: João Miguel Xavier e Tiago Bartolomeu Costa
Agradecimentos: Miguel Bonneville, Eira, Re.Al
Edição: João Miguel Xavier e Tiago Bartolomeu Costa
Agradecimentos: Miguel Bonneville, Eira, Re.Al
Amanhã: os projectos e o futuro
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