Ao longo da semana, O Melhor Anjo publica uma conversa com o coreógrafo e bailarino João Fiadeiro, director artístico da Re.Al, a sua companhia de dança que comemora esta semana 15 anos. Hoje João Fiadeiro fala das condições de criação em Portugal e da recente polémica depois da recusa em participar, no passado mês de Setembro, na Plataforma de Dança Contemporânea, em Faro.
"Fazemos o que temos a fazer", uma conversa com João Fiadeiro (II)
Qual o papel da Re.Al, ou de outras estruturas, para as acolher as segundas e terceiras gerações, de modo a que depois possa haver a possibilidade de crescerem e criarem o seu trabalho autónomo? Há menos resistências da parte deles, também por causa do trabalho que as anteriores gerações fizeram?
Parece-me que estas novas gerações só se safam se, de certa maneira, estiverem associados à Re.Al, ao Rumo do Fumo, à Bomba Suicida, que é um projecto super interessante… Porque se forem sozinhos como nós fomos, não conseguem. Não é o timing deles. E nem sei se será na próxima. Acho que ao nível daquilo que são os conteúdos, a reflexão, é muito boa. Em alguns casos até que para melhor do que a nossa. Só que lhes falta a tal endurance, a visão mais global. Falta-lhes uma consciência que para mim é simples, mas não será tão evidente para outros, que é a de que podem dizer não, que o que existe só existe porque eles existem também. É para eles. O Instituto das Artes seria impensável se nós não existíssemos. E isto é um poder imenso. Só que as pessoas não se apercebem disso. E pronto, aí a REDE [Associação de Estruturas Para a Dança Contemporânea] terá responsabilidades e temos que nos organizar para isso. Agora, para esta geração isto é ingrato. Quase que mais valia que dissessem que “não, a dança contemporânea não é uma prioridade para nós, deixem-se lá disso”. Eu não posso desassociar o atraso estrutural que Portugal tem, ao o facto de ter tido uma revolução muito tardia, que demorou muitos anos a resolver-se, como se ainda estivéssemos hoje numa adolescência tardia.
Tu achas que as novas gerações estão ainda a viver essa adolescência tardia?
Em Portugal ainda estamos a viver uma coisa de autor, de certa forma, muito artesanal. E há aqui uma mistura com uma certa qualidade. Do ponto de vista sociológico é sedutor. Ainda se encontra aqui qualquer coisa de manual, de artesanal nas pessoas, no terra-a-terra, mas com níveis de acuidade e pertinência contemporânea que torna a coisa sedutora. Porque há de facto uma experiência e um know-how grandes. Mas como preservar isso e, ao mesmo tempo, exigir melhores condições de trabalho? Como não deixar que o conceito de instituição mate esta relação com o elementar? E aí, é os tais anti-corpos que cada um tem que criar em si, são fundamentais. O objectivo é estarmos imunes e conseguirmos ter as condições que precisamos, mantendo a qualidade de não nos esquecer-mos. Não nos podemos esquecer.
Porque é que assinas o texto "(Não) é assim a vida" [sobre a recusa de participação na Plataforma de Dança Contemporânea, organizada pela Faro 2005, e um desabafo sobre as condições de criação em Portugal] com o teu nome, e não com o nome da Re.Al?
Porque é uma carta pessoal. Demorei uns dias a saber se a faria, se avançava. Não quis implicar nem a Re.Al nem a REDE numa coisa que era tão pessoal e também não quis perguntar às pessoas se achavam que o devia fazer. Maturei um bocadinho, aconselhei-me com as pessoas mais próximas, e avencei e acho que tinha que ser uma posição muito pessoal. Há momentos em que tenho que ser eu a assinar. Há um discurso da Re.Al que quando é assinado pela Re.Al é discutido por todos, embora seja eu a tomar a decisão final enquanto director artístico. Mas há atitudes que são do foro pessoal que tem que ser achadas por cada pessoa, mesmo que eu não concorde com elas. Nunca me passaria pela cabeça dizer ao Tiago [Guedes] para desistir. Ele pensou e tomou a sua decisão. Mas também foi porque há uma fragilidade no tecido muito grande. Ele tinha intérpretes que dependiam muito daquele dinheiro, já tinham contratos, já tinham tudo elaborado. Ele foi e, de certa forma, arrependeu-se a seguir. Acho que isso só comprova que somos um modelo internacional. Há de facto estruturas que acolhem individualidades distintas e cada uma pensa pela sua cabeça.
Mas esse murro na mesa é também um murro que a Re.Al assume como seu, na forma de trabalhar, na forma de discurso, de apresentação…
Sim, é claro porque os murros que eu dou, de alguma maneira, contaminam a Re.Al. Eu é que já não tenho, não posso, não consigo caucionar essas lógicas intermináveis de negação, que eu nem sei como qualificar e que vão acontecendo de tempos em tempos. Alguns dos que participaram, no fundo, fizeram aquilo que eu já fiz, quando podia ou quando tinha que fazer.
Tens noção do efeito que essa carta teve junto dos programadores presentes e da comunidade?
Teve uma reacção super complexa e positiva em termos internacionais. Fiquei muito surpreendido. Vários coreógrafos escreveram-me, criaram-se dinâmicas internacionais que me ultrapassaram completamente. Saiu um artigo forte na Mouvement, e isso criou dinâmicas em países como a Suiça, a França e a Alemanha que aproveitaram essa minha tomada de posição para justificarem as suas próprias reflexões. Sei que o Xavier LeRoy ou o Gilles Jobin a agarraram. Agora vou fazer uma conferência em Cork, na Irlanda, cuja razão do convite tem a ver com a posição que tomei. Criaram-se movimentos e dinâmicas. Aqui em Portugal houve algumas reacções, menções, citações. O [Jorge] Silva Melo fez aquele texto [Eles já ganharam, João, Expresso, 10 Setembro 2005] na semana seguinte. Silva Melo com quem eu não falo há um ano e tal, mais até. Não conseguimos estar juntos. Mas já há uns anos que eu escrevo uns textos e nunca recebo nada da comunidade. Isso é um facto. Ou não lêem os jornais, ou lêem e… é uma coisa portuguesa, que entra no discurso do José Gil da falta de espaço público. Não sei.
Gostavas que tivesse havido um movimento que se opusesse àquela organização?
Isso teria sido fantástico.
Mas foi com essa intenção?
Eu escrevo “tomem uma posição”. Não digo “boicotem”. Mas digo para tomarem uma posição, de acordo com a sua consciência, porque os dados eram iguais para todos. Pediam-nos para pagar tudo, etc. . Houve algumas reacções, o Paulo Ribeiro, o Rui Horta, a Clara [Andermatt], o Miguel Pereira foram-me telefonando. Houve reacções, mas na maior parte dos casos a dizer “eu não posso”. Houve casos que me diziam “eu já investi muito” ou “eu já fiz contratos”. Mas as pessoas ainda não perceberam que se não for por aí tu não ganhas posição de negociação em relação ao Estado. E o Estado continua a pensar que pode fazer de ti o que quiser e bem entender. E eu achava que era o momento. Porque, esta é uma sociedade onde tu não tens mecanismos de defesa estabelecidos, provedores do artista, pessoas a quem possas dizer que isto está mal, e isto está mal… Não tens direitos. Como é que se pode reivindicar uma coisa que ainda não tem? É muito estranho, porque não estamos a perder nada. Não é como nas greves de vários sectores em que há pessoas que estão a perder direitos. Nós não os estamos a perder porque não os temos sequer. Estamos numa fase tão pré-histórica do nosso trabalho que, se não for nesses eventos institucionais de fachada… Aliás, a forma como foi organizado pareceu-me detestável, com carrinhas que, embora seja uma prática corrente das plataformas, aqui pareceu-me muito terceiro mundista, parecia a Coreia do Norte. Os programadores de um lado para o outro em camionetas, a não poderem ficar com os artistas porque perdiam a camioneta para ir para a outra cidade. Depois a ficarem em hotéis de luxo e os artistas a trabalharem em condições muito precárias, passou todos os limites.
E da organização da Faro 2005 tiveste reacção?
Não. Isso foi estranho também. Tivemos uma comunicação anterior, umas duas semanas antes. Eu avisei antes que ia fazer, esperei dois dias a ver se acontecia alguma coisa, não aconteceu nada, e publiquei. A partir daí mais nada. Ignoraram, inclusive. E isso é outro fenómeno que eu acho doentio, e que é o branqueamento. Os programadores internacionais que foram, não foram informados de que eu não estava. E muitos foram, não digo só por causa de mim, mas na expectativa de me ver, e isso acho uma falta de respeito enorme. Nem sei qual foi a justificação que deram aos programadores para não estar presente, mas fizeram uma brochura em que eu já não estou lá. Portanto esta carta é escrita três ou quatro semanas antes e, ou estavam atrasados, ou tiveram tempo para me branquear. Mas o mínimo era uma declaração a dizer que “o João Fiadeiro não concorda”.
Até porque atendendo ao nome e ao número de pessoas convidadas, era impensável não se explicar o porquê.
Claro. E isso revela um lado doentio e perverso que é de Portugal, do português, da forma como tu preferes fingir que não aconteceu. Ninguém enfrente o seu trauma, ninguém enfrente o que acontece. Inclusive nas conversas que tive com a Luísa Taveira [programadora de dança na Faro 2005], ou mesmo com algumas trocas de e-mail que tive com o presidente da Faro 2005 [António Rosa Mendes], eles, de certa maneira davam-me razão. Mas pediam para eu confiar, cegamente. Bom, e isso é um discurso que eu já ouço há muito anos e desde sempre. Nem é contra eles. Eu até acho que a existência de plataformas pode ter um lugar, desde que faça parte de uma estratégia mais alargada, mais inteligente.
Parece-me que estas novas gerações só se safam se, de certa maneira, estiverem associados à Re.Al, ao Rumo do Fumo, à Bomba Suicida, que é um projecto super interessante… Porque se forem sozinhos como nós fomos, não conseguem. Não é o timing deles. E nem sei se será na próxima. Acho que ao nível daquilo que são os conteúdos, a reflexão, é muito boa. Em alguns casos até que para melhor do que a nossa. Só que lhes falta a tal endurance, a visão mais global. Falta-lhes uma consciência que para mim é simples, mas não será tão evidente para outros, que é a de que podem dizer não, que o que existe só existe porque eles existem também. É para eles. O Instituto das Artes seria impensável se nós não existíssemos. E isto é um poder imenso. Só que as pessoas não se apercebem disso. E pronto, aí a REDE [Associação de Estruturas Para a Dança Contemporânea] terá responsabilidades e temos que nos organizar para isso. Agora, para esta geração isto é ingrato. Quase que mais valia que dissessem que “não, a dança contemporânea não é uma prioridade para nós, deixem-se lá disso”. Eu não posso desassociar o atraso estrutural que Portugal tem, ao o facto de ter tido uma revolução muito tardia, que demorou muitos anos a resolver-se, como se ainda estivéssemos hoje numa adolescência tardia.
Tu achas que as novas gerações estão ainda a viver essa adolescência tardia?
Em Portugal ainda estamos a viver uma coisa de autor, de certa forma, muito artesanal. E há aqui uma mistura com uma certa qualidade. Do ponto de vista sociológico é sedutor. Ainda se encontra aqui qualquer coisa de manual, de artesanal nas pessoas, no terra-a-terra, mas com níveis de acuidade e pertinência contemporânea que torna a coisa sedutora. Porque há de facto uma experiência e um know-how grandes. Mas como preservar isso e, ao mesmo tempo, exigir melhores condições de trabalho? Como não deixar que o conceito de instituição mate esta relação com o elementar? E aí, é os tais anti-corpos que cada um tem que criar em si, são fundamentais. O objectivo é estarmos imunes e conseguirmos ter as condições que precisamos, mantendo a qualidade de não nos esquecer-mos. Não nos podemos esquecer.
Porque é que assinas o texto "(Não) é assim a vida" [sobre a recusa de participação na Plataforma de Dança Contemporânea, organizada pela Faro 2005, e um desabafo sobre as condições de criação em Portugal] com o teu nome, e não com o nome da Re.Al?
Porque é uma carta pessoal. Demorei uns dias a saber se a faria, se avançava. Não quis implicar nem a Re.Al nem a REDE numa coisa que era tão pessoal e também não quis perguntar às pessoas se achavam que o devia fazer. Maturei um bocadinho, aconselhei-me com as pessoas mais próximas, e avencei e acho que tinha que ser uma posição muito pessoal. Há momentos em que tenho que ser eu a assinar. Há um discurso da Re.Al que quando é assinado pela Re.Al é discutido por todos, embora seja eu a tomar a decisão final enquanto director artístico. Mas há atitudes que são do foro pessoal que tem que ser achadas por cada pessoa, mesmo que eu não concorde com elas. Nunca me passaria pela cabeça dizer ao Tiago [Guedes] para desistir. Ele pensou e tomou a sua decisão. Mas também foi porque há uma fragilidade no tecido muito grande. Ele tinha intérpretes que dependiam muito daquele dinheiro, já tinham contratos, já tinham tudo elaborado. Ele foi e, de certa forma, arrependeu-se a seguir. Acho que isso só comprova que somos um modelo internacional. Há de facto estruturas que acolhem individualidades distintas e cada uma pensa pela sua cabeça.
Mas esse murro na mesa é também um murro que a Re.Al assume como seu, na forma de trabalhar, na forma de discurso, de apresentação…
Sim, é claro porque os murros que eu dou, de alguma maneira, contaminam a Re.Al. Eu é que já não tenho, não posso, não consigo caucionar essas lógicas intermináveis de negação, que eu nem sei como qualificar e que vão acontecendo de tempos em tempos. Alguns dos que participaram, no fundo, fizeram aquilo que eu já fiz, quando podia ou quando tinha que fazer.
Tens noção do efeito que essa carta teve junto dos programadores presentes e da comunidade?
Teve uma reacção super complexa e positiva em termos internacionais. Fiquei muito surpreendido. Vários coreógrafos escreveram-me, criaram-se dinâmicas internacionais que me ultrapassaram completamente. Saiu um artigo forte na Mouvement, e isso criou dinâmicas em países como a Suiça, a França e a Alemanha que aproveitaram essa minha tomada de posição para justificarem as suas próprias reflexões. Sei que o Xavier LeRoy ou o Gilles Jobin a agarraram. Agora vou fazer uma conferência em Cork, na Irlanda, cuja razão do convite tem a ver com a posição que tomei. Criaram-se movimentos e dinâmicas. Aqui em Portugal houve algumas reacções, menções, citações. O [Jorge] Silva Melo fez aquele texto [Eles já ganharam, João, Expresso, 10 Setembro 2005] na semana seguinte. Silva Melo com quem eu não falo há um ano e tal, mais até. Não conseguimos estar juntos. Mas já há uns anos que eu escrevo uns textos e nunca recebo nada da comunidade. Isso é um facto. Ou não lêem os jornais, ou lêem e… é uma coisa portuguesa, que entra no discurso do José Gil da falta de espaço público. Não sei.
Gostavas que tivesse havido um movimento que se opusesse àquela organização?
Isso teria sido fantástico.
Mas foi com essa intenção?
Eu escrevo “tomem uma posição”. Não digo “boicotem”. Mas digo para tomarem uma posição, de acordo com a sua consciência, porque os dados eram iguais para todos. Pediam-nos para pagar tudo, etc. . Houve algumas reacções, o Paulo Ribeiro, o Rui Horta, a Clara [Andermatt], o Miguel Pereira foram-me telefonando. Houve reacções, mas na maior parte dos casos a dizer “eu não posso”. Houve casos que me diziam “eu já investi muito” ou “eu já fiz contratos”. Mas as pessoas ainda não perceberam que se não for por aí tu não ganhas posição de negociação em relação ao Estado. E o Estado continua a pensar que pode fazer de ti o que quiser e bem entender. E eu achava que era o momento. Porque, esta é uma sociedade onde tu não tens mecanismos de defesa estabelecidos, provedores do artista, pessoas a quem possas dizer que isto está mal, e isto está mal… Não tens direitos. Como é que se pode reivindicar uma coisa que ainda não tem? É muito estranho, porque não estamos a perder nada. Não é como nas greves de vários sectores em que há pessoas que estão a perder direitos. Nós não os estamos a perder porque não os temos sequer. Estamos numa fase tão pré-histórica do nosso trabalho que, se não for nesses eventos institucionais de fachada… Aliás, a forma como foi organizado pareceu-me detestável, com carrinhas que, embora seja uma prática corrente das plataformas, aqui pareceu-me muito terceiro mundista, parecia a Coreia do Norte. Os programadores de um lado para o outro em camionetas, a não poderem ficar com os artistas porque perdiam a camioneta para ir para a outra cidade. Depois a ficarem em hotéis de luxo e os artistas a trabalharem em condições muito precárias, passou todos os limites.
E da organização da Faro 2005 tiveste reacção?
Não. Isso foi estranho também. Tivemos uma comunicação anterior, umas duas semanas antes. Eu avisei antes que ia fazer, esperei dois dias a ver se acontecia alguma coisa, não aconteceu nada, e publiquei. A partir daí mais nada. Ignoraram, inclusive. E isso é outro fenómeno que eu acho doentio, e que é o branqueamento. Os programadores internacionais que foram, não foram informados de que eu não estava. E muitos foram, não digo só por causa de mim, mas na expectativa de me ver, e isso acho uma falta de respeito enorme. Nem sei qual foi a justificação que deram aos programadores para não estar presente, mas fizeram uma brochura em que eu já não estou lá. Portanto esta carta é escrita três ou quatro semanas antes e, ou estavam atrasados, ou tiveram tempo para me branquear. Mas o mínimo era uma declaração a dizer que “o João Fiadeiro não concorda”.
Até porque atendendo ao nome e ao número de pessoas convidadas, era impensável não se explicar o porquê.
Claro. E isso revela um lado doentio e perverso que é de Portugal, do português, da forma como tu preferes fingir que não aconteceu. Ninguém enfrente o seu trauma, ninguém enfrente o que acontece. Inclusive nas conversas que tive com a Luísa Taveira [programadora de dança na Faro 2005], ou mesmo com algumas trocas de e-mail que tive com o presidente da Faro 2005 [António Rosa Mendes], eles, de certa maneira davam-me razão. Mas pediam para eu confiar, cegamente. Bom, e isso é um discurso que eu já ouço há muito anos e desde sempre. Nem é contra eles. Eu até acho que a existência de plataformas pode ter um lugar, desde que faça parte de uma estratégia mais alargada, mais inteligente.
Fotografias: José Luís Neves
Quinta-feira: O método de Composição em Tempo Real e o modo como se constrói uma peça.
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