terça-feira, novembro 15, 2005

Debate (1)

O dramaturgo e tradutor Francisco Luís Parreira abalou o meio teatral há cerca de uma semana e meia com uma carta dirigida ao encenador Jorge Silva Melo, a propósito de um artigo deste para o Expresso, publicado a 10 de Setembro, em jeito de desabafo a propósito da carta aberta que o coreógrafo João Fiadeiro publicara, a 03 de Setembro, também no jornal Expresso. A carta de Fiadeiro queria dar conta do seu estado de alma em relação às condições precárias entre a criação artística e a produção de espectáculos, e muito concretamente aos problemas que afectaram a realização da Plataforma de Dança Contemporânea, decorrida no passado mês de Setembro (17, 18 e 19), no âmbito da Faro 2005 - Capital Nacional da Cultura.

O Melhor Anjo recebeu a carta de Francisco Luís Parreira e irá publicá-la. Mas, em virtude de se tratar de uma resposta a um outro texto, a mesma carece de contextualização. Assim sendo, seguem-se três posts onde se dá a conhecer a carta de João Fiadeiro, o artigo de Jorge Silva Melo e a resposta de Francisco Luís Parreira. Entende-se que num país onde a discussão falha, as paredes têm mais ouvidos do que devem, e há sempre alguém disposto a não assumir nada, a pertinência dos três textos merecem leitura em conjunto. Independentemente das posições pessoais de cada um, e das razões que levaram à escrita de qualquer um dos textos. Pesa aqui, unicamente, a criação de um espaço onde os textos e a sua relevância, não desapareçam depois de lido o jornal. Os textos são da responsabilidade dos autores e O Melhor Anjo publica-os na qualidade de espaço de reflexão sobre as artes performativas em Portugal.

Debate 1

(NÃO) É ASSIM A VIDA...


de João Fiadeiro (publicada no jornal Expresso, 03 setembro 05)


Estou a orientar neste momento um «workshop» no NEC (Núcleo de Experimentação Coreográfica) do Porto. Nele participa a Teresa Prima, coreógrafa da «segunda geração», que apareceu depois de mim, da Vera Mantero, do Francisco Camacho, do Paulo Ribeiro ou da Clara Andermatt, e quem, no início dos anos 90, apoiei dando-lhe condições de produção para as suas primeiras obras. Nem sei se na altura ela já teria 20 anos. Sei que agora tem 30 e que, passados estes anos todos, depois de a terem sugado até ao tutano nas Expôs e nas várias capitais da cultura, teve que voltar para casa dos pais no Porto, cidade de onde saiu cheia de esperança aos 17 anos para ir para Lisboa.

Deixou de ter condições para viver sozinha porque não tem meios de subsistência que lhe dêem o mínimo de segurança. Não tem subsídio de desemprego porque não existe em Portugal a figura do intermitente do espectáculo, não pode dar aulas e transmitir os seus conhecimentos únicos porque não existem em Portugal escolas de dança contemporânea que aproveitem este «produto» pós-revolucionário e não pode apresentar espectáculos. Não porque não os tenha, mas porque não existe em Portugal uma rede de teatros que programe de uma forma regular os seus artistas. E, como a Teresa (artistas que o próprio Estado, e instituições públicas, legitimou e abandonou), existem centenas de outros entre coreógrafos, bailarinos e colaboradores.

Vem esta reflexão a propósito da decisão que tomei, no início da semana, de anular a minha participação na Plataforma de Dança Contemporânea da Faro 2005 prevista para meados de Setembro. Devido a um congelamento de verbas do PIDDAC, imposto pelo Ministério da Cultura, a organização da Faro 2005 não pode assinar contratos com os artistas. E, como se isso não bastasse, propõem que sejamos nós a pagar todas as despesas de deslocação e que avancemos com o dinheiro para alugar material técnico que os teatros ainda não têm. Perante este quadro, o normal seria dizerem-nos que têm que adiar ou anular os espectáculos por não poderem assegurar que os nossos compromissos sejam respeitados. Mas não. Pedem-nos para confiar neles e matracam-nos com a velha história da «realidade portuguesa». Mais um «é assim a vida» de que nos fala José Gil em O Medo de Existir.

Estou cansado (exausto mesmo) que continuem a pedir-nos para fingir, que nos peçam para assumir esta condição de eternos periféricos e que nos exijam que continuemos a ter 20 anos quando já temos 30, 40, 50... Durante os anos 80 e 90 — quando tínhamos de facto 20 anos — passaram o tempo a pedirem-nos para ocupar as montras das fachadas institucionais de forma a manter e alimentar a imagem de um país avançado e europeu. O argumento era a necessidade de se investir na «auto-estima» dos portugueses, na certeza de que, uma vez ganha essa etapa, iríamos passar para a seguinte, a das infra-estruturas, a das estratégias a médio e longo prazo, onde as condições socioprofissionais dos trabalhadores do espectáculo seriam respeitadas, onde se iria passar a dar mais atenção à formação e à investigação e onde a circulação das obras se processaria de uma forma mais fluida. A tal «sociedade do conhecimento» de que tanto se fala. Pois eu tenho notícias para vocês, caros governantes, presentes e passados (ou seja, os mesmos): vocês falharam! A vossa estratégia de fachada não resultou!

Não percebem que esta lógica de se investir na aparência não resulta. Náo percebem que estão a hipotecar as vidas de toda uma geração que acreditou em vocês, que tinha esperança na visão de futuro que vocês lhes pintaram e que agora se sentem à deriva nesta jangada de betão que teimam em edificar (dez estádios de futebol?!?). Não, a vida não é assim. Não pode ser assim. Aconteceu estar em França há dois anos e acompanhei o início das movimentações dos trabalhadores intermitentes e precários, com as suas assembleias gerais espontâneas nos «foyers» dos teatros e os boicotes aos festivais de Verão (Avignon, Montpellier, Lille...).

Estamos a anos-luz dessa realidade, dessa consciência cívica, porque não se pode perder ou sentir a falta do que não se tem, mas chega de falinhas mansas. Não podemos continuar a ser cúmplices desta total e impune falta de respeito. Por isso, faço um apelo público aos outros participantes da Plataforma de Dança Contemporânea da Faro 2005: não continuem a jogar o jogo e tomem uma posição. Não sejam cúmplices de mais uma obra fechada.

João Fiadeiro
Coreógrafo e bailarino


parágrafos, itálicos e bolds da responsabilidade d'O Melhor Anjo

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