terça-feira, novembro 15, 2005

Debate (3)


Ver contextualização e razões de publicação aqui

De uma certa mistificação na queixa dos vencidos
de Francisco Luis Parreira (enviado por e-mail)

Caro Jorge Silva Melo, fizeste publicar, em número recente do semanário Expresso, um texto com aspiração polémica, endereçado ao teu amigo João Fiadeiro e destinado a lamentar, se bem compreendi, o destino de quem em Portugal tem que confrontar a sua experiência de criador com um Estado incapaz de lhe assegurar condições justas. Espero que não te incomode (nem ao João Fiadeiro) a minha intromissão nessa correspondência e, em particular, que faça a imitação do teu estilo, usando contigo, inclusivamente, a segunda pessoa gramatical. É verdade que, em vez de fatigar as páginas do Expresso com as considerações que se seguem, teria preferido comunicar-tas pessoalmente [1]. Desgraçadamente, nós não somos amigos; e, mesmo que o fôssemos, não recorrer a um jornal para expender algumas confidências amenas seria uma imperfeita imitação do teu estilo. Embora, a bem dizer, esta falta de amizade me conferisse vantagem na tua agenda, pois, como desoladamente confessas, com os amigos só te é dado tutoyer quando o chefe faz anos. O rei, quero dizer.

Colige-se da tua carta o seguinte. Que na organização subjectiva do artista Jorge Silva Melo avultam duas categorias limite, respectivamente representadas pelos termos “nós” e “eles”. Que “eles”, no que ao artista diz respeito, “têm a faca e o queijo nas mãos” e que é o seu bruto arbítrio (patente no encerramento de A Capital) que “nos” impede de fazer a ponte entre a arte e a vida. Que “eles”, prosperando nos assentos confortáveis do IA e do ICAM, e vivendo das artes, por “nós” representadas, no fundo não nos recebem, pelo que apenas nos resta cair num estado de definhamento unicamente assimilável à experiência dos vencidos. Que, assim sendo, cumpriria pôr fim a tal usurpação, ocupando “nós” o Ministério da Cultura.

Pelo meio, ficamos a saber que até o dr. Louçã, creditando-te a sua descoberta do Pinter, padece daquela mesma universal percepção da tua pessoa — percepção distorcida e viciosa! — que gosta de separar-te do “nós” a cujo serviço te devotas, atribuindo-te os prestígios do chefe incontestado. Tratas então de corrigir higienicamente o dr. Louçã, e vê-se bem porquê (embora não à primeira): o postulado de um chefe havia de comprometer o carácter homogéneo e indiviso desse “nós” a que te referes, turvando a sua perfeita demarcação do “eles” dos poderosos.

Até tu verás, caro Jorge, que dicotomias tão apressadas não correm o risco de tornar os leitores mais críticos ou inteligentes do que eram. Mas, sendo tu, em contrapartida, um homem inteligente, suspeito que há nelas um elemento mistificador que não será para ti totalmente inesperado. É essa mistificação que está aqui em análise; serei obrigado, portanto, a imitar o teu estilo até na sua preocupação higiénica, mas desta vez para te corrigir a ti. A correcção não se aplica exactamente à dicotomia em si. É possível que, em abstracto, ela até seja pertinente e o mundo se divida entre “eles” e “nós”. O problema está mais no teu uso dela. É que, no teu caso, ela é inteiramente destituida de sentido e creio mesmo que, naquilo em que ela serve de medida ética, tu serás o menos apto a usá-la. E demonstrá-lo é uma pequena higiene sem a qual, infelizmente, não podemos aspirar a uma sadia clarificação do nosso estado das artes.

Vamos, em primeiro lugar, ao “nós” a que te referes. Destituido esse “nós” de existência jurídica patente, julgo tratar-se da comunidade constituida pelos teus amigos e prosélitos (de que os AU serão uma pequena parte). Estarei certo? Em escritos anteriores, pelo menos, essa comunidade comparece assiduamente. A sua evidência foi muitas vezes gritada em crónicas semanais e rascunhos reunidos. Como já deves ter reparado, os teus escritos estão eriçados de nomes próprios, precedidos sempre do artigo (o Miguel, a Glicínia, o Gogol, o Pavese), como se, comoventemente, os teus amigos fossem amigos ecuménicos, tal como, para o vasto público, são as personagens boas dos folhetins melancólicos. Mas o name dropping tem um resíduo dissonante, um travo, como se diz do vinho. De tanto lhes repetires o nome, fica-se a pensar que esses amigos, mortos e vivos no mesmo saco, são uma espécie de semi-ausência, uma espécie de fantasmática privada a que só a repetição pode dar realidade.

Para tudo dizer, suspeito que verdadeiramente não tens amigos; e que, ao ergueres a tua voz para proteger o sempre acossado idílio lisboeta (ou existencial, não se percebe) dessa comunidade impossível, enumerando as fileiras dos que a compõem, estás apenas a dilatar, a abundar nos signos da sua ausência. Será verdade? Porque a única coisa certa é que tens dependentes, tens quem te faça o chá ou te sirva de chauffeur, tens abaixo-subscritos, tens gente, mais que unida, apinhada para as migalhas do teu poder, tens dramas narcísicos devidamente mediados, quando a oportunidade surge, com cartas públicas. E isto porque, embora não sejas o chefe, és sem dúvida o patrão. E, nessa qualidade, tens conversamente gente, pelo que se diz, apanhada de surpresa com a respectiva expulsão da comunidade (e do artigo definido), talvez enxovalhada, impedida de trabalhar, mas que, em busca de perdão e de salário, sempre volta a emaranhar-se num esquema de relação que desconhece outras virtudes que as da dominação e da vassalagem. Será verdade?

E do mesmo modo que os teus artigos inscrevem persistentemente a ausência dos nomes que estão no seu centro, também o trabalho artístico que chefias é uma forma continuada dessa denegação. É impossível lembrar sem um sorriso aquela designação Sem Deus nem Chefe que abrangia algumas produções dos AU, e o modo como ela veicula uma evidência instaurada pela sua própria negação. Porque, como sabes, o colectivo AU, com excepções, é um conjunto de rapazes muitas vezes esforçados, mas nem sempre lá muito brilhantes, e havia de ser o bom e o bonito sem as directivas inflexíveis do patrão, sem a tua encenação de peças por outros assinadas, sem a vigilância dos implícitos afectivos, sem a tua tutela das horas privadas, sem as implacáveis parcialidades com que absorves na tua solidão criadora a própria vida dos que te rodeiam, em suma, sem o estado de excepção permanente em que, para eliminar deus e chefe, tem o patrão que dar um passo e assumir-se na sua plenitude.

Mas isto é o teu drama, é a talvez fugidia realidade pessoal do criador a tentar sobressair pelo amesquinhamento do que lhe é próximo. E é também a realidade do “nós”. Queremos lá saber. O que já não é admissível é que venha depois o chefe arvorar-se, pública e repetidamente, com a devida invocação de um “nós” idealizado, em vítima do “poder”. Por outras palavras, não se atura que a denegação reclame uma vocação política e se faça derivar, do que é só uma inversão dos termos, um lamento sobre o estado das artes em Portugal. Na sua forma pública, assente nas devidas dicotomias, tem o drama assumido os contornos persecutórios e de auto-vitimização amplamente conhecidos.

A esse psicodrama forneceu o encerramento de A Capital mananciais propícios. São conhecidas as agitações, as mobilizações, os masoquismos, o dedo apontado a “eles”. Quanto a mim, em momentos de vacilação moral, dou por mim a pensar se a A Capital não terá sido bem fechada. Miseravelmente, recordo que a habitava uma companhia que, com noventa mil contos do Estado, não conseguiu mudar uma instalação eléctrica caduca — três mil contos, era o que custava? Digo miseravelmente porque passei no edifício umas quantas noites agradáveis, numa sala do terceiro andar. Recebíamos lá trinta e tal pessoas por noite. É certo que, de vez em quando, me perguntava o que aconteceria em caso de incêndio e por qual das janelas é que precipitaríamos as pessoas.

A este respeito, gostaria de ouvir a outra parte, mas “eles” não devem acordar tão cedo e, nos activos jornais da capital, só se consegue ler as tuas elegias. Talvez a explicação esteja em que “eles”, no fundo, são estúpidos. Ainda no outro dia, dizes tu muito satisfeito, te exigiram uma declaração do próprio Strindberg. Mas a ignorância do poder, convicta talvez da eterna actualidade dos clássicos, tem o seu equivalente rigoroso na revista dos AU que, aqui há tempos, anotando uma tradução, considerava Hugo Claus e Thomas Bernhard como membros da casa real holandesa. Coitado do Hugo, coitado do Thomas. Bem sei que não foste tu, caro e também coitado Jorge, deve ter sido um desses moços a quem gostas de atribuir responsabilidades e afectos. Mas o episódio não é só anedótico. Ele também revela a falsidade essencial das dicotomias através das quais pensas, a dicotomia, em especial, que opõe “eles” a “nós”.

Como vês, a estupidez assemelha-se muito à sabedoria cartesiana, que é, de todas, a qualidade mais bem distribuida. Mas eu não atribuiria a estupidez “deles” ao desconhecimento de Strindberg. A indubitável estupidez (ou ingenuidade) “deles” está em que até te prometeram devolver o edifício devidamente renovado, e levam a sério o embuste de fazer daquilo um “centro de artes”, e até suspendem a programação de um teatro municipal para te acolher, e até te arranjam uma sede, e fazem orelhas moucas aos julgamentos de ignorância que, ao mesmo tempo, propalas nos jornais.

E queixava-me eu ainda agora de que não tinhas amigos! Pergunto-me se não deverias antepôr o artigo sempre que falas “deles”, caro Jorge, porque “eles” é que são os teus amigos, o teu verdadeiro “nós”, com quem comungas faca e queijo. De facto, essa fraternidade, essa tua omnipresença nos cuidados e na atenção “deles”, tanto como nesse outro poder que é o mundo da opinião, em especial o dos jornais, quase torna inútil a seguinte constatação: é que o poder és tu. Seja qual for o “nós” de que te reclamas, ele não se opõe, antes se confunde com o poder exaustivamente. Basta que sejas tu a falar por esse “nós” para ele logo se consubstanciar enquanto poder. E sabes esta lição tão bem que em ti é já compulsiva a sua negação. E tornas-te em mais um daqueles chefes que não se assumem, que têm com o poder aquela relação insondável que se tem com os vícios ou as inclinações perversas e cuja consciência é tanto mais apaziguada (ou justificada) quanto nos convencem, com desabafos em páginas semanais, de que engrossam o número dos “vencidos”.

Achas excessivo? Deixa-me dizer-te, então, o que há de mais triste na ignorância “deles”: é que tu prosperes nela, é que ela seja tua aliada. É precisamente essa ignorância que te fornece todo o poder que tens. É em virtude dessa ignorância que, do CCB à Culturgest, das editoras aos serviços municipais, se procura a tua caução, o teu conselho, o teu beneplácito. É por ela que a tua política teatral impõe o gosto, e a tua política afectiva a mão de obra, por nomeação, por delegação, por amizade. Uma palavra tua chega a um gabinete e produz-se o apoio, o patrocínio, a difusão. Programações fechadas de há muito abrem-se a todo o projecto patrocinado por um telefonema teu. O fax também se agita: expede para instituições estrangeiras a tua desaprovação, quando estas programam autores portugueses que não lembram ao chefe. Ensaios alheios são interrompidos para ires lá expulsar quem queres.

O director do Nacional agradece aos céus três produções tuas em seis meses e ainda vem dizer que está a dar lugar aos novos. E ainda te sobra o tempo para tomares as decisões das pessoas que tu colocaste nos lugares de decisão. E a cereja do bolo não é o Dr. Louçã agradecer-te um autor que, antes de o dares a “descobrir”, era “reaccionário”. São aqueles mesmos críticos e programadores que, sem abalos deontológicos ou lesões corticais, até engolem a Sarah Kane porque és tu a vendê-la. E vais agora com o João Fiadeiro ocupar o Ministério da Cultura. A sério? Para quê dares-te ao trabalho?

Se, portanto, amigos não te faltam, ali mesmo onde postularas inimigos, e dissolvido o “nós” no “eles” (e vice-versa), resta-nos a seguinte questão: onde estão os teus verdadeiros inimigos? Julgo saber a resposta — e digo-te que nesse conhecimento há algo de verdadeiramente melancólico. O teu principal, o teu único inimigo és tu mesmo. E a melancolia disso está em que, a não ser assim — a não ser a tortuosa psicologia, a mesquinhez de espírito, a sede de poder —, podias ser um grande homem. E, ainda que referida ao mundo dos possíveis, essa é já uma responsabilidade esmagadora que custa ver desbaratada com péssimas mistificações. Não é o génio artístico (que, como sabes à exaustão, não tens assinalavelmente), mas a capacidade de trabalho, a persistência, a cultura, o cosmopolitismo teatral que são assim desbaratados. E custa tanto mais quanto o teatro português nunca conheceu uma escola (no sentido ideológico) que constituisse legado e herança específica— e tu serias o único em condições de iniciá-la.

O que custa é que o palco, neste país, nunca foi lugar de mundivisão nem de transmissão verdadeira— e tu serias o único a poder inventar esse palco. Mas tu preferes ver o inimigo “neles”. Como lógica, Jorge, já se viu que é má. Mas também é triste. Objectivos que poderiam ser altos saem dela irreversivelmente lesados e o pequeno mundo dos nossos empenhos culturais torna-se ainda mais pequeno.

[1] Propus ao semanário Expresso a publicação deste texto, que a recusou.

Francisco Luís Parreira
Dramaturgo e tradutor

Parágrafos, itálicos, bolds e links da responsabilidade d'O Melhor Anjo

Ler debate 1 e 2

2 comentários:

Anónimo disse...

é ridiculo divulgar cartas personalizadas porque nem sequer se tem capacidade de as publicar no Expresso. Descontextualizado este documento até poderia parecer interessante mas no fundo representa nada, que já é alguma coisa embora insignificante. Ignorância erudita é algo que já não é novidade.

Anónimo disse...

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