quinta-feira, novembro 10, 2005

Brincando aos clássicos (1ª parte)

O mês de Novembro fica marcado, em Lisboa, pela estreia de três peças que abordam o universo criativo de William Shakespeare. Já a partir desta semana, no São Luiz - Teatro Municipal apresenta-se Romeu e Julieta, com encenação de John Retallack e tradução de adaptação de Fernando Villas Boas, enquanto que no Teatro Nacional D. Maria II, se estreia a versão infantil de A Tempestade, intitulada A Ilha Encantada, com adaptação de Hélia Correia e encenação de João Ricardo. E a partir de dia 17 de Novembro, Mónica Calle leva à cena na Culturgest, o seu mais recente projecto Julieta - Cartas fragmentárias a um amor perdido.

Mas se as peças de William Shakespeare são regularmente apresentadas em Portugal, o mesmo já não se pode dizer das tragédias e comédias gregas, textos que fundaram e estabeleceram as regras da dramaturgia universal. Sobretudo no que diz respeito às apresentações destes textos no Teatro Nacional D. Maria II, em Lisboa.

O Melhor Anjo publica hoje e amanhã uma investigação acerca do extraordinário facto de nunca, desde a sua fundação (1846) até hoje, alguma vez se ter apresentado uma tragédia ou comédia grega pelas companhias/administrações que trabalharam/geriram o primeiro teatro do país. Fica aberta a discussão sobre o papel de um teatro nacional, a relação entre textos e cena, as influências e opções dos criadores, mas, sobretudo, sobre o papel que o teatro ocupa na sociedade.



Brincando aos clássicos
sobre a ausência de representações de textos clássicos gregos
no Teatro Nacional D. Maria II (1846-2005)


Eis os factos: nunca o Teatro Nacional D. Maria II apresentou uma tragédia ou comédia grega nos seus palcos tal qual elas nos chegaram. As produções próprias são versões: «Antígona» de Sófocoles, por Júlio Dantas em 1946; «As Troianas» de Eurípides, por Jean-Paul Sartre, 1996; e as apresentações de textos gregos foram deixadas a cargo de grupos escolares: «Os Pássaros»[1] de Aristófanes, pelo Teatro Universitário do Porto, 1963; «Les Choephores», de Ésquilo pelo Grupo de Teatro do Liceu Francês Charles Le Pierre, 1982.

O caso poderia ter pouco significado, não fosse o facto de se reclamar a herança clássica como linha estrutural de grande parte da dramaturgia nacional -e até mesmo do ensino das artes dramáticas -, e ainda, o papel que ao Teatro Nacional coube defender, desde Almeida Garrett a Amélia Rey Colaço ou às diversas administrações que a seguiram: a construção de um repertório nacional e uma recuperação dos textos fundamentais e estrangeiros da dramaturgia teatral. São 159 anos de ausência, facto tanto mais surpreendente se tivermos em conta que o mesmo não sucedeu em teatros similares pela Europa fora.[2] No entanto, num plano editorial, sabe-se da existência de traduções desde a Arcádia Lusitana, incluindo tragédias de menor relevo.

A proposta de lei de Almeida Garrett para a construção de um teatro nacional no seu sentido mais lato[3] interessa-nos na medida em que a própria Rainha D. Maria II ordenou que o dramaturgo executasse, «sem perda de tempo [...] um plano para a fundação e organização de um teatro nacional [...] o qual, sendo uma escola de bom gosto, contribua para a civilização e aperfeiçoamento moral da nação portuguesa». Os diplomas da reforma vêm ao encontro das teorias de Garrett que no prefácio a «Auto de Gil Vicente», afirma que em Portugal, nunca chegou a haver teatro; o que se chama teatro nacional, nunca [...] o teatro é um grande meio de civilização, mas não prospera onde a não há. Não tem procura os seus produtos, enquanto o gosto não forma os hábitos, e com eles a necessidade. Para principiar, pois, é mister criar um mercado fictício» (Cruz, 1988: 72). O caminho que Almeida Garrett traça, e que Amélia Rey Colaço viria a tomar como “regra” para o “seu” Teatro Nacional, tentará construir para o edifício do Rossio essa responsabilidade de edificar uma dramaturgia nacional digna e que acompanhe, também, os novos ventos da cena internacional.

Tal intenção pode ir ao encontro da teoria de Jean Jourdheil: «cette volonté d’atteindre à l’universalité les conduit à gommer et à supprimer dans les ouevres anciennes tout ce qui pourrait sembler dissonant et risquerait de heurter les préjugés des spectateurs d’aujourd’hui» (1976: 59), mas pode encontrar mais entraves que vantagens, como afirma Jorge de Sena: «[Não] se impõe analisar as mais extraordinárias obras tidas como trágicas, por verificar que é do choque dialéctico que duas razões podem estar vivas nos protagonistas, nas situações a que estão sujeitos, as condições sociais que criam essas situações, etc... [...] E ao contrário, exactamente, do que é costume julgar, a verdadeira tragédia resolve a oposição, mesmo quando apenas prende a tese e a antítese, na mentalidade do espectador, remete, nobre e dialecticamente para a consciência, crítica de uma época, a resolução de contrários» (1989: 372-374).

Ou seja, esta ideia de “por ao gosto português” pode ter permitido o desenvolvimento de uma relação deficitária com a cultura helénica, da qual todos, para o bem e para o mal, descendemos. Na verdade, pode até considerar-se que esta espécie de derivação nacional da dramaturgia-mãe foi um contributo para uma luta desigual entre modelos sólidos e universais e outros dependentes da metáfora, alusão ou colagem disfarçada, resultasse isso de factores de ordem técnica ou artística[4].

Talvez se pudesse justificar esta atitude citando Herbert Blau («The Impossible Theater: A Manifesto», 1964) que afirma que a inovação não está na criação de algo novo mas na forma como se trabalha o já existente. Mas a verdade é que ao longo da história do teatro em Portugal são vários os exemplos de documentos que insistem num reforço da dramaturgia nacional que apelasse ao povo e ao público e permitisse a identificação directa.

É curioso notar, no estudo de Ana Isabel Vasconcelos («O Drama histórico português do século XIX (1836-1856)», 2001), que o conceito de tragédia, adopta em Portugal o nome de drama histórico, no que isso implica de “nacionalização” dos factos. De acordo com a investigadora, a dramaturgia nacional que surgiu como resultado desta influência grega apresenta um conhecimento dos factos mas menos dos documentos onde estes apareciam inscritos, defendendo que isso permitiu «perspectivações mais próximas de uma visão mais tradicionalista dos factos, em contraponto com leituras que se inscrevem numa visão mais consentânea com o pensamento liberal da época» (2001: 461). Logo, não se tratam de leituras modernas e nacionais dos textos clássicos, já que estas implicariam uma relação directa baseada no conhecimento da parte do público, mas antes de “imitações” ao melhor nível. Mas porquê?

[1] Utilizam-se os títulos originais dados às produções pelas companhias produtoras. O texto de Aristófanes é sobretudo indicado nas traduções existentes como «As Aves».

[2] Curiosamente o 1º contrato de adjudicação do TNDMII à Companhia Rey Colaço – Robles Monteiro, assinado em 1929, apenas obrigava à representação de, pelo menos, um texto dos séculos XVII, XVIII e XIX, por temporada (cláusula 7ª).

[3] A lei de Almeida Garrett contemplava a existência de um plano de dramaturgia nacional e uma escola de representação, o Conservatório.

[4] Veja-se, a este propósito, o exemplo das representções de Shakespeare ( Carlos Porto, «As Lições de Othello», Jornal de Letras, 29 Junho 1993 e Maria Helena Serôdio, «Othello em Portugal», Cadernos, Revista de teatro da Companhia de Teatro de Almada, nº18, Julho 2003)
continua amanhã (inclui-se bibliografia)

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