sexta-feira, novembro 11, 2005

Brincando aos clássicos (2ª parte)


Conclui-se hoje a publicação do texto Brincando aos clássicos (ler aqui a 1ª parte), acerca da ausência de representações de tragédias e comédias gregas no Teatro Nacional D. Maria II, desde a sua fundação (1846) até aos dias de hoje. Fica aberto o debate sobre o lugar da dramaturgia clássica no teatr português, as influências e recusas, o papel do teatro Nacional e a relação público-teatro.

Brincando aos clássicos
- sobre a ausência de representações de textos clássicos gregos
no Teatro Nacional D. Maria II (1846-2005)


Édipo Rei pelo Teatro Habimah (Israel)


Alexandre Herculano, num artigo publicado em 1835 no jornal «Repositório Literário», faz eco das teorias do romantismo e exorta os autores portugueses a «aproveitarem os nossos tempos históricos mais belos que os dos antigos». Herculano, que assistiu à fundação do Teatro Nacional, questiona-se sobre o papel dos clássicos naquela altura, ou melhor, a importância dada aos clássicos. «Não seria melhor que entendessem o mundo que os rodeia e que vestissem os filhos da sua imaginação com os trajes da actualidade?». E continua, afirmando que «não basta sacudir o jugo dos preceitos pueris das poéticas para escrever o drama histórico» já que este pressupõe «a ressurreição completa da época escolhida para nela se delinear a concepção dramática», ou seja, «viver com os grandes de outrora os seus passos esplêndidos mas assistir também às misérias e agonias dos peões» (Rebello, 2000: 98).

O papel atribuído ao Teatro Nacional, que Almeida Garret considerava o lugar onde se deveriam «decentemente representar os dramas nacionais», deu lugar, com o evoluir dos tempos (sujeitos a mudanças de regime, golpes militares, censuras e recuos culturais) a um palco onde reinaram «o regionalismo, a crítica social, o drama sentimental com ressaibos psicológicos, a comédia de costumes populares, a farsa de situações» (2000: 23).

Em Portugal o caminho parecia ser um outro que, não obstante, conduziu «à degradação da literatura dramática, tão aviltada pela retórica oca dos poetas trágicos e pelo servilismo dos elogios dramáticos [bem] como pelas chocarrices dos autores dos persistentes entremezes “de cordel”» (2000: 92). O teatro português, define Rebello num ensaio para a Europália, é «aberto na gargalhada franca da comédia, ora fechado no ricto doloroso da tragédia, memória e testemunho da vivência colectiva de um povo cuja identidade procura exprimir através da sua linguagem própria» (1991: 07).

Curioso é notar que esta definição resulta de anos de percursos individuais quer da Academia quer do teatro. Como já atrás se referiu, desde o tempo dos árcades que a tradução de textos gregos existia. A Arcádia Lusitana, criada em 1756, precisamente para restaurar os cânones aristotélicos e disciplinar, na mais clássica e rigorosa das medidas, a criação teatral não teve grande impacto na evolução do gosto do público. A ideologia da Arcádia carregava uma certa preocupação social e política e insistia numa necessidade de seguir os modelos antigos, com desígnios e objectivos na transmissão das virtudes e não dos vícios. A intenção dos árcades passava mais pelo que o actor deveria dizer e menos o que deveria fazer. O conceito de teatro nacional residia numa doutrinação, numa moral e em costumes nos quais a relação cidadão/poder se estruturava num programa de educação e transformação do gosto através de edições e traduções de textos clássicos. Tratava-se de uma missão e menos de dramaturgia para ser representada. O resultado foi a anulação de um perpetuar das bases da criação do teatro grego.

Importa aqui dar conta da gestão da empresa Amélia Rey Colaço – Robles Monteiro, já que foi a que mais tempo teve a cargo Teatro Nacional D. Maria II (1929-1974). Assiste-se a um percurso de aproximação dos palcos portugueses aos estrangeiros, através da apresentação de autores como Ibsen, Pirandello, Shaw, O’Neill, Strindberg ou Tchekov, na medida que a censura o permitia. Pergunta Jorge de Sena se esse retorno à tragédia, em que a utilização de dramaturgias estrangeiras feitas segundo o modelo trágico era utilizado em substituição da matéria-prima original, não seria «com retornos ou sem eles, uma aguda situação espiritual, precisamente porque, só por existir, desmascarava uma certa inanidade real dos exercícios comuns». Jorge de Sena considerava que estes textos eram «literatura de novos-ricos, que compraram, nos armários da cultura, uns metros de tragédia grega, encadernada na cor mais a seu gosto, quando não for requintadíssimo exercício literário [...] [se] o retorno à tragédia fosse coisa inerente às épocas trágicas, a maior parte dessas últimas obras-primas não teria surgido, porque surgiram quase sempre em épocas de esplendor social, como súmula crítica de um ciclo cultural» (1989: 372-374).

Mas talvez se compreenda uma mais rápida assimilação destes textos contemporâneos, porque, ao serem actuais ou meta-actuais, mais depressa atingiriam os objectivos propostos do que as “versões” gregas. O discurso de Sena agudiza-se: «de um ponto de vista político-filosófico moderno, imaginar-se que uns coros gregos e uma consciência de fatalidade bastam para garantir uma essência prática, ainda que o sentimento trágico teatralmente se cumpra, é, quanto a coros, uma ingenuidade coral de coros que se vêem gregos nessas e noutras matérias; e, quanto a consciência de fatalidade, uma noção extremamente errada e profundamente reaccionária».

Das razões que se podem apontar para este “lapso” tomemos em consideração a falta de conhecimentos do público, mas também o que disse Amélia Rey Colaço em carta datada de 1974 e dirigida a Marcello Caetano, que «em grande parte por influência do cinema, o espectáculo teatral foi evoluindo de molde a exigir encenações poderosas com implicações técnicas de montagem e de cenários cada vez mais complexas e dispendiosas, agravando os custos da produção teatral a níveis inteiramente incompatíveis com os minguados recursos financeiros da Empresa» (1929: 275). Não se fala aqui em opções dramatúrgicas ou de repertório, mas antes de evoluções quase naturais quando contextualizadas no panorama português. O que agrava esta ausência, atendendo às potencialidades especulativas dos textos gregos.

A representação dos textos clássicos gregos era frequentemente utilizada para sublinhar certos acontecimentos e, no caso português, nem sequer os regimes mais autoritários perceberam que as dimensões de certos textos poderiam servir de veículo de transmissão de valores e virtudes afectos à causa. Tal como aconteceu em França ou na Alemanha, incluindo a apresentação simultânea de originais e versões. Mas reflecte também uma tendência para espectáculos de grande público, pouco dados a psicologismos e o peso das responsabilidades de bilheteira.

A verdade é que na gerência de Amélia Rey Colaço – Robles Monteiro apenas foi levada à cena uma versão da «Antígona», em 1946, por Júlio Dantas em cuja capa se inscrevia «peça em 5 actos, inspirada na obra dos poetas trágicos gregos», que a crítica do jornal «A República» referiu tratar-se «não de uma concepção original ou sequer de uma interpretação nova da histórica figura da Antígona como algumas pessoas pretendem fazer-nos acreditar, mas de uma simples versão livre da velha tragédia de Sófocles [...] Há quem diga que à Antígona, na versão de Júlio Dantas, falta aquele “fogo sagrado” que deve animar a verdadeira tragédia grega e que tudo aquilo é, literariamente, frio, calculado, desenhado, como a escadaria de pedra que conduz no palácio real de Sabdácidas que se ergue, em cena, na rigidez do seu peristilo dórico. Sejamos justos, Júlio Dantas, com a sua arte de punhos de renda e de espadim doirado, não é, não pretende ser, um trágico».

A outra versão de uma tragédia[1] levada à cena no Teatro Nacional D. Maria II data de 1996: «As Troianas» de Jean-Paul Sartre (datada de 1965), com encenação de João Mota, utilizou o texto de Eurípides, apresentando-os como co-autores. Um espectáculo «onde a tragédia grega, à luz da interpretação de um autor contemporâneo, assume toda a sua intemporalidade», lê-se no programa. O que nos leva imediatamente à questão da interpretação das consequências mais do que à análise dos factos. Como poderia o público reconhecer quer «Antígona», quer «As Troianas» se não lhes era dado a conhecer o original?

Mas se as companhias residentes ou administrações designadas não procuraram a apresentação das tragédias e comédias gregas, o mesmo já não se pode dizer dos dois únicos exemplos de apresentações de que há registo. No âmbito de um festival de teatro universitário promovido pela Fundação Calouste Gulbenkian em 1963, o Teatro Universitário do Porto apresentou «Os Pássaros», de Aristófanes, numa encenação de António Pedro[2]. E até o Liceu Francês Charles Le Pierre, em 1982, apresentou um exercício escolar com alunos que apresentaram em francês «Les Choephores» de Ésquilo. Quer num caso quer noutro não se encontraram nos arquivos razões de enquadramento na programação artística que justificassem o acolhimento.

Teria Eça de Queirós razão quando disse que o teatro em Portugal esteve sempre para acabar, «primeiro pelo abaixamento geral do espírito e da inteligência entre nós; e depois pelas condições industriais e económicas dos teatros» (Bettencourt, 1929: 6)?

Talvez a explicação tenha vindo em forma de comentário às duas récitas culturais organizadas pelo TNDMII e o Conservatório, em 1967. Estava a “companhia do Estado” instalada no Teatro Avenida, quando se realizaram duas conferências (03 e 16 de Março) genericamente intituladas «A História Maravilhosa do Teatro», com a organização de Eurico Lisboa. Nelas, actores do Teatro Nacional representaram excertos de «Prometeu Agrilhoado» (Ésquilo), «Alceste» (Eurípides), «O Rei Édipo» (Sófocles) e «Medeia» (Séneca). Disse Manuela de Azevedo, no «Diário de Notícias»: «Não é impunemente que as escolas e os teatros oficiais se dissociam do teatro da antiguidade clássica. O que deveria ser simples, corrente, aparece como «bicho de sete cabeças». E afinal, sobre o estilo da representação das comédias e tragédias tudo já está dito e estudado. Nem por isso, porém, a lição lida pode ser apreendida. É preciso vivê-la naturalmente no palco, em lugar de a improvisar».

A ausência de representações de tragédias ou comédias no Teatro Nacional D. Maria II é um facto, uma consequência ou uma evolução? Estes exemplos espelham, ou não, uma realidade e são a consequência de uma série de políticas, tratados, programas, leis, intenções, projectos, objectivos, desígnios e visões diferentes? Em que medida se pode falar de uma consequência natural, dado o percurso feito? E de que forma se foi transformando a dramaturgia nacional? Em que alicerces se baseou essa mesma dramaturgia para que possa ser identificada e reconhecida, ao mesmo tempo como parte de um conceito de teatro nacional? Onde começa e termina a área comum do programa de edição e tradução, que se seguiu depois da Arcádia e tem ainda hoje exemplos (Hélia Correia, Eduarda Dionísio, Jorge Silva Melo, por exemplo) e da sua directa representação, razão primária de ser dos textos? Não se defendendo, contudo, a existência de um teatro nacional somente para a representação da dramaturgia clássica e histórica, que responsabilidades tem um teatro nacional atendendo àquilo que são as “obrigações” do primeiro teatro do país[3]?

Estas questões tornam-se pertinentes porque a existência de um edifício para o teatro nacional implicou uma nova forma de relacionamento entre o Estado e o teatro e entre este e o público. E ao mesmo tempo porque não se concebe uma rede de influências atemporais se não se derem a conhecer os textos no fim a que foram destinados. Se o Teatro Nacional não recebeu a apresentação de qualquer texto clássico, que reflexo teve isso no seu repertório? O que existiu em vez disso? E que público se formou dessa forma? E que teatro português se construiu?

Notas:
[1] Exclui-se o texto de Eugene O’Neill, «Electra e os Fantasmas», apresentado em 1943, por não se tratar de uma nova versão de uma tragédia.

[2] Fez parte de um conjunto de três peças (as outras duas seriam, uma, de Gil Vicente, «Breve Sumário da História de Deus» e, a outra, de um autor checo, Karel Chapek, «Manufactura Universal de Autómatos, S.A.R.L.»)

[3] O Teatro Nacional D. Maria II chegou a ser designado «O Normal», isto é, onde a norma era seguida.

Bibliografia citada
BETTENCOURT, Rebello de
A Função Social do Teatro, Edição do Diário dos Açores, 1929;

COLAÇO, Amélia Rey
A Companhia Rey Colaço-Robles Monteiro (1921-1974). Correspondência; (organização de Vítor Pavão dos Santos), Secretaria de Estado da Cultura e Museu Nacional do Teatro, Lisboa, 1989;

JOURDHEUIL, Jean
L’artiste, la politique, la production, Union Générale d’Edition, Paris 1976 ;

REBELLO, Luis Francisco
História do Teatro Português, 4ª edição, Publicações Europa-América, Lisboa, 1988;
História do Teatro – Síntese de Cultura Portuguesa, Imprensa Nacional/Casa da Moeda – Comissariado para a Europália 1991, 1991;
História do Teatro Português, 5ª edição, Publicações Europa-América, Lisboa, 2000;

SENA, Jorge de
Retorno à tragédia ou a farsa dos retornos in Do teatro em Portugal, Edições 70, Lisboa, 1989,

VASCONCELOS, Ana Isabel
O Drama Histórico Português do Século XIX (1836-56), Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 2001

Outros elementos
Diário de Notícias, 03 Março 1927
Diário do Governo, 16 Novembro 1929, II série

Agradecimentos: José Pedro Serra, Maria João Brilhante, Arquivo do Teatro Nacional D. Maria II

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