terça-feira, agosto 16, 2005

O corpo aprisionado

Análise às propostas de Cristina Blanco, Andrea Sonnberger e Gustavo Círiaco
NEGÓCIO
12 Agosto 2005
21h30
Sala cheia

Cristina Blanco

As três primeiras apresentações em registo informal e abertas ao público que o Encontro Lisboa 2005 promoveu, deram conta de um corpo aprisionado. Coincidência ou observação atenta, a verdade é que, mesmo partindo de pontos países e modelos coreográficos diferente, podem estabelecer-se linhas que desenhem um contexto criativo onde a dança serve mais para a procura de códigos de representação, e fornecimento de algumas chaves de interpretação, do que para a construção de uma estrutura formal que envolva e tolde a recepção da proposta.

Em cUADRADO_fLECHA_pERSONA qUE cORRE (40 minutos), da espanhola Cristina Blanco, há um trabalho de reconhecimento e marcação de território. A performance tem tanto de informal quanto de ingénua e inusitada. Não necessariamente por ser inovadora ou apresentar outras formas de pensar o corpo, mas antes pelo modo como se estabelece uma relação entre a consciência do intérprete ao manipular os objectos disponíveis (os visíveis e os que carrega), e a expectativa do espectador em encontrar não só um contexto criativo, mas também uma forma que dê ao conjunto performático algo mais que a simples disposição narrativa.

Ao apresentar-se como performer inocente, Cristina Blanco é também um objecto manipulável no espaço, já que do seu corpo (bem como da sua mente) saem outros objectos que propõem novas (outras) leituras para o que já vimos. Trata-se de um exercício acerca da linguagem, não só porque são projectados códigos e regras de utilização de utensílios (extintores) e vestuário, mas também porque a(s) narrativa(s) que vai desenvolvendo nunca assume(m) outra função que não uma lúdica e de entretenimento. Este jogo irónico, onde a performer se apresenta como espaço para a criação de imaginários quase-infantis, parte de um apurado sentido de rigor e manipulação, através do qual somos surpreendidos pelo modo como os objectos se metamorfoseiam.

Sem nunca impor um modelo de recepção, a performer utiliza placas de sinalização, mimetiza-as e integra-as numa narrativa simples e ocupacional. Trata-se de um jogo de imaginação, onde se serve das pequenas acções para pensar códigos e regras civilizacionais. E, sobretudo, parece assumir uma ideia de auto-aprisionamento, já que a teia em que se enreda dificilmente pode ser quebrada tal a força com que é narrada. No final, quando a porta de saída se revela falsa, pouco mais resta a Cristina Blanco (ou ao 'boneco' que criou) acreditar que quando uma placa indica a saída, é porque certamente é 'por ali'.

Na proposta da austríaca Andrea Sonnberger, Der Boxer I, (20 minutos), o corpo está aprisionado por uma ideia de confronto e espelho. Trata-se aqui de fazer uma experiência coreográfica em torno das relações entre o boxe e a dança, no que isso representa de instalação e domínio no espaço, fixação no adversário (que na dança tanto pode ser o próprio intérprete como o espectador, mas neste caso parece ser a banda sonora de Thomas König) e controlo dos movimentos. Ou seja, procede-se a uma transferência e uma contaminação, esperando que o resultado possa ser uma leitura semiótica do comportamento do intérprete (boxeur ou bailarino).

Mas boxe não é ballet, como dizem os treinadores da modalidade. E Andrea Sonnberger não se esquiva à recriação, naturalmente de forma abstracta e quase retórica, de um conjunto de sequências programadas, que mais não fazem que fragilizar um corpo já de si exposto à condição de inexistente (porque ocupado por uma ideia de ultra-representação, logo, de invisibilidade). A integração de movimentos de boxe em sequências coreográficas cede ao simbolismo superficial. Não sendo exactamente uma coreografia interessante, há pontos de interesse, sobretudo quando corpo e música trabalham em conjunto, e sugerem o cumprimento rigoroso de uma relação entre corpo-matéria e corpo-imaginado (a música).

Há uma economia menos evolutiva e mais estrutural, que faz de Der Boxer I um exercício menos coeso do que desejaria, sobretudo porque, não obstante o trabalho corporal ergonómico e flexível, tudo parece contrariar essa organicidade, em nome de uma proposta que, à medida que avança, se claustrofobiza. A apresentação de um combate de boxe (mesmo um entre um boxeur e um bailarino) seria sempre mais interessante que a fusão dos dois objectos coreográficos.

Do trabalho do brasileiro Gustavo Círiaco, Uma conferência imaginária sobre os meus arredores (20 minutos), não se pode exactamente afirmar tratar-se de uma coreografia no sentido formal do termo (mesmo que esse sentido inclua a instalação tout court no espaço). Trata-se antes de uma proposta feita de sequências interligadas por uma ideia de apresentação, seja do corpo como elemento-receptáculo para a memória, seja da construção de um espaço de intimidade, feito de uma relação de cumplicidade entre o intérprete e o espectador. O corpo é, aqui, lugar para uma tentativa de equilíbrio entre universos pessoais e referenciais, através da convocação de imagens-símbolo brasileiras: modelos, futebolitas, corsos carnavalescos, políticos, bandidos...

No entanto, a viagem que Gustavo Círiaco propõe não é nem interessante nem pertinente. O performer parece recusar outra leitura que não uma superficial do que possa ser um discurso corporal sobre o que é ter um corpo-nação. Ao querer fazer do espaço (e de si) a representação viva de memórias e culturas, cede ao imaginário colectivo e de massas, escusando-se à transformação metafórica que pressupunham os momentos coreografados. O corpo está, assim, aprisionado por falta de escape.

Os trabalhos de Cristina Blanco, Andrea Sonnberger e Gustavo Círiaco mostraram-se como plataformas para o entendimento de um corpo reactivo, que integra e pensa e envolvente. Não tanto no sentido de produzir novas envolventes, mas antes com a vontade de pensar 'o que chega' a uma coreografia. Os elementos e os objectos que são convocados, quase todos residuais, obrigam a uma reflexão sobre o modo como se percepciona o quotidiano e a cada vez mais latente vontade de o traduzir/transportar para linguagens coreográficas.


Ver a programação do Encontro Lisboa 2005 aqui.

Ver outros textos incluídos no dossier Encontro Lisboa 2005 já publicados neste blog:
Espectáculos: No body never mind 002, de Ana Borralho e João Galante
Palestras: Desvios e Traduções, com Sergej Pristas e Nicolina Pristas

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