quinta-feira, agosto 25, 2005

O corpo aprisionado II

Análise às apresentações informais de Filipa Francisco e Cláudia Müller
Encontro Lisboa 2005
NEGÓCIO
19 Agosto 2005
21h30
sala cheia


Cristina Müller


Concebo os meus trabalhos como histórias da minha experiência física.
Robert Whitman

O 2º grupo de apresentações informais do Encontro Lisboa 2005, cruzou o trabalho da portuguesa Filipa Francisco (Leitura de listas..., 2003) e da brasileira Cláudia Müller (Dois do seis de setenta, 2003). Ambas construíram propostas que tentavam inscrever no movimento e na relação corpo-espaço, uma história pessoal, fosse esta ficcionada ou visivelmente verdadeira. Esta ideia de trabalhar a biografia no corpo, relaciona-se não só com a vontade de inscrição física de uma memória, mas também com a potenciação do corpo como entidade concreta. Um caminho de dois sentidos, que nem sempre se cruzam.

No caso de Filipa Francisco trata-se da busca de um espaço para o corpo enquanto instrumento de manipulação do quotidiano, da vivência e da reflexão organizada sobre essa mesma vivência. Leitura de listas... (45 minutos), procura ser tão simples e metódico quanto o resultado final de uma lista (porque intencionalmente finita) proporciona. Ou seja, é um espectáculo cumulativo, de coreografia reduzida e apostado numa cumplicidade entre o espectador e os itens listados. Memórias de infância, recusas, afazeres profissionais, desvios filosóficos, tradicionais listagens de filmes, discos, canções ou observações irónicas, são a matéria que a coreógrafa combina, numa proposta algo previsível e superficialmente envolvente.

O maior handicap de Leitura de listas... não está, por isso, na construção e organização de um todo pessoal e pretensamente biográfico, mas no modo como Filipa Francisco hermetiza a proposta. A relação que estabelece com o espectador, chegando mesmo a procurar convencê-lo de que a escolha arbitrária de uma lista se prende com uma cumplicidade momentânea, não consegue ultrapassar a sensação de preparação e controlo de toda a proposta. Assim, essa escolha de um caderno, que por vezes se apresenta como um novo desafio (sobretudo quando a essa leitura associa movimento, sai do espaço ou constrói uma ambiência sonora e visual), remete sempre para a frieza e bidimensionalidade das próprias listas.

A ideia preliminar - um trabalho algo informal e up-to-date sobre o próprio processo criativo - parece, assim, ser anulada em nome de uma proposta de conversão de um conjunto de aleatoriedades e coincidências em esquemas formatados, que só a observação atenta força a uma organização. Não obstante, o universo que a criadora escolheu para trabalhar, é suficientemente rico para abrir possibilidades de interpretação e, sobretudo, validar a realização dessas mesmas listas. Parece, no entanto faltar um lado humano, mesmo que normativo, de modo a que esta proposta pudesse ser vista como mais do que um exercício criativo (quando denunciava ser crítico) sobre processos de experimentação e mapeamento de obsessões.

Já em Dois do seis de setenta (20 minutos), Cláudia Müller parte do corpo para construir uma coreografia da dor e da sobre-exposição biográfica. A proposta faz-se de dois segmentos narrativos, um em que a coreógrafa explora uma ideia de libertação e deslocação do corpo no espaço. E outro em que re-inscreve na pele as marcas de acidentes que sofreu. No primeiro segmento, ao fazer do chão e das peças de roupa adversários, a coreógrafa executa um trabalho de minuciosa e angustiante violência. O espaço que a rodeia, com os espectadores espalhados pelas paredes, torna-se demasiado pequeno e é trabalhada uma ideia de claustrofobia. Quase sempre deitada no chão, os gestos são bruscos, animalescos e desesperantes. A sensualidade inerente a um corpo que se despe é aqui substituída por um discurso ausente de delicadeza. Mesmo que, de uma maneira geral, a violência seja sobejamente coreográfica. Mas se na primeira parte o trabalho ergonómico e metamorfoseante da criadora pode impressionar não tanto pela destreza coreográfica, mas pelo modo como desenvolve possibilidades de confronto entre memória e espaço, no segundo segmento Cláudia Müller não resiste a uma figuração dessa memória.

Porque ao escrever datas e locais, ou simplesmente fazer círculos nas marcas e cicatrizes, Cláudia Müller já não está no território da criação de um efeito seja de distanciamento dos eventos reais, seja de evolução dos pressupostos coreográficos. O facto de partir de matéria que se convenciona considerar verdadeira, obrigaria ao desenvolvimento de um outro nível dramatúrgico. O corpo (duplamente) marcado deixa de ser um dispositivo instigador para passar a concentrar toda uma memória, passando então a importar o modo (e a razão) como se percepcionam confrontos com essa mesma memória. A pele, que deveria funcionar como fronteira para o peso que as marcas têm, torna-se espaço para uma exposição inconsequente, porque superficial. A dupla identificação deveria criar novas relações, não só com a memória, mas também com o futuro. E o que Cláudia Müller oferece, numa atitude falhada de ex-machinaé a hipótese de confronto entre as marcas do público e as suas. Fixa, assim, uma ideia de marca e cicatriz que têm menos a ver com uma aprendizagem, mas mais com uma obsessão.

Se considerarmos que o trabalho de Filipa Francisco e Cláudia Müller (bem como o de Cristina Blanco, Andrea Sonnberger, Gustavo Ciríaco e Ana Borralho/João Galante, apresentados anteriormente no âmbito do Encontro Lisboa 2005) pressupõe a criação de diálogos entre corpo, o espaço mas, sobretudo, a criação de teias, redes e pontos de contacto, devemos ter em conta que a coreografia dependente da memória, obriga a uma consciencialização do modo como se organizam discursos performáticos. António Pinto Ribeiro abre o seu ensaio por exemplo a cadeira (Edições Cotovia, 1997), exactamente com aquilo que pode ser um aviso para esta relação memória/ficção corpo/realidade: "um corpo não é uma entidade abstracta, um receptáculo onde se podem colocar atributos tais como alto, baixo, forte, magro; não é uma esfera a que se circunscreve o ser num determinado tempo, mas é uma energia, onde se inscrevem circulações, substâncias, forças, pigmentações, comportamentos resultantes de treinos, de técnicas e de linguagens a que está permanentemente sujeito. Esta é uma constatação essencial e uma alteração radical no modo de colocar o problema do corpo no final deste século". (p.7).


Ver outros textos produzidos sobre o Encontro Lisboa 2005:

No Body Never Mind 002, de Ana Borralho/João Galante
Apresentações informais de Cristina Blanco, Andrea Sonnberger, Gustavo Ciríaco

Desvios e traduções (palestra)