domingo, setembro 26, 2004

A Padeira eviscerada

Análise ao espectáculo DAS PADEIRAS DE ALJUBARROTA com direcção artística de Marina Nabais e Rogério Nuno Costa e encenação de Rogério Nuno Costa


Talvez importe esclarecer que uma análise de espectáculo é sempre uma tentativa de aproximação entre o discurso do criador e a recepção do espectador. Ou seja, quem analisa tem a responsabilidade de ir buscar ao espectáculo as linhas que possam dar conta das intenções – e suas consequências - a quem o vê. E, com isso, desenvolver uma zona de confronto de pontos de vista e posições que têm como objectivo o enriquecimento dos espectáculos. Um espectáculo não termina quando as luzes do público se acendem e muito menos pode ser avaliado com um indiferente “gostei” ou “não gostei”. Qualquer posição que se tome sobre o que se viu vai sempre influenciar as próximas criações dos autores assistidos. Na mesma medida em que todos os espectáculos são biográficos, já que expressam as posições dos seus criadores sobre o tema e o seu tempo (mesmo em espectáculos de época). A construção de um objecto artístico não pode ser encarada – quer pelo seu autor, quer pelo espectador – como algo inconsequente e que se encerre em si mesmo. Ainda que essa seja a sua intenção. Em última instância, quem analisa escreve para si.

Feito este prêmbulo, convém entender que as propostas lançadas por Marina Nabais (MN) e Rogério Nuno Costa (RNC) não pretendem apresentar conclusões ou defender teorias. E daí resulta a dificuldade em apreender a totalidade das suas propostas. O que se passa dentro do espaço cénico obriga o espectador a prolongar essa visão depois de sair e confrontar o que viu com o que pensa sobre o assunto. São, por isso, espectáculos partilhados e partilháveis. Ainda que profundamente individuais.

DAS PADEIRAS DE ALJUBARROTA (DPA) assume essa posição artística, defendendo a «estetização teatral daquilo que pode ser uma investigação ou um estudo à volta de uma personagem». No caso, a personagem abordada está envolta em ambíguas histórias. Fazendo parte do imaginário popular – do patriótico, sobrelevado e glorificante imaginário popular -, pouco se sabe sobre esta mítica figura, defensora de Portugal e mulher do povo que, com a sua pá, meteu no forno uns quantos espanhóis e ditou o fim da Idade Média em Portugal. Sabe-se que existiu mas não se sabe se com dois metros de altura, seis dedos, feia e matrona ou se não estará mais para David. O que se sabe é que da batalha de Aljubarrota nasceu um mito. E isso, num país que sempre se preocupou mais com a fantasia do que com a realidade é dizer muito acerca de uma figura.

O espectáculo de MN e RNC propõe uma revisitação desse mito a partir dos elementos que o construíram. Ou seja, procura o resto de verdade que existe em cada uma das mentiras que atravessaram o tempo e se impuseram como certas. Assim, o mais estimulante não passa por aquilo que apresentam, mas antes por aquilo que convocam para tratar o tema. É um duplo exercício de reconhecimento. Procedem assim a um espectáculo–ritual de convocação/evocação do mito, testando, nas suas mais diversas cambiantes, as possibilidades de reflexos de verdade. Insistem assim numa repetição ad nauseum de certos movimentos ou expressões de forma a que essa repetição possa aclarar e identificar a verdadeira padeira de nome Brites.

Esta tese teatral, «à grande e à portuguesa» é, então, um espectáculo de destruição de conceitos sem nunca se apropriar deles. E isso obriga a que o público se predisponha a abandonar os modelos performáticos confortáveis e se sujeite a assistir a todo o processo de forma a que este se possa concluir. Não há um espectáculo durante. Há um espectáculo que sucede depois. Um espectáculo que se encerrará, de forma circular, de modo a permitir uma constante revisitação desses mesmos conceitos.

Será por isso que, para lá dos momentos teatrais, DPA se fosse uma pintura estaria mais para a versão das "meninas" feita pelo Picasso do que para o original de Velásquez. Nota-se um sentido esforçado de tornar universal uma série de valores, não por imposição dos mesmos mas por hipótese/reacção/confirmação.

O espectáculo desenvolve-se a partir do corpo de três bailarinas/actrizes que se apresentam como padeiras (umas mais que outras a carregarem certos movimentos e expressões próprias do universo corporal de RNC) e quer-se dividido em dois tomos. «Porque é o número da mulher, e porque é o número do diabo». Na primeira parte, o trabalho de luzes de José Álvaro e a cenografia de F. Ribeiro encontram um ambiente aquecido e quase oriental (que advém da arte marcial qi gong utilizada nos movimentos), em que as intérpretes se apropriam literalmente de todos os elementos que possam permitir a convocação da padeira Brites, propriamente dita. É por isso de assinalar que o facto de se tratarem de três intérpretes imediatamente convoca à memória as bruxas de Macbeth. Assiste-se, assim, a um ritual de chamamento que, no entanto, se aproxima mais dos ritos funerários egípcios que do paganismo comum à época histórica da batalha.

Se, por momentos, podemos considerar que a padeira de Aljubarrota se assemelha a uma Joana d’Arc enlouquecida pela voz de um Deus que a incita a lutar, depressa nos apercebemos, como bem identificou Ana Isabel Vasconcelos na sua tese sobre o drama histórico e o papel do teatro na construção dos mitos, que se trata, sobretudo, de uma mulher ultrapassada pelos acontecimentos e as verdades deles decorrentes. «Parece que o lá fora não corresponde ao lá dentro», diz uma das padeiras. E na verdade assim é. Esta padeira (a Brites) está aprisionada entre o mito e a verdade e assim persistirá até que se encontrem outros mitos e outras verdades. Neste país de ilusões, nada poderia fazer mais sentido que um espectáculo que explore o que já temos por adquirido e nos devolva “o corpo” carregado de novas dúvidas.

Este dispositivo permite concluir que aquilo que nos é apresentado pode ser classificado de evisceração. Ou seja, o processo que era utilizado para retirar aos corpos dos faraós os órgãos e outros componentes de modo a permitir a mumificação. A colocação dos “orgãos” da padeira no centro do palco e nas actrizes – pão, pá, leite, farinha, saca de farinha – possibilitará um reconhecimento exterior por parte do espectador que, se numa primeira leitura o leva a identificar a padeira, logo depois permite a estilização até à abstração.

Portanto, o que se propõe é que os elementos identificáveis sirvam de guia de segurança para um espectador suspenso no lirismo da proposta e que os transportem, depois, para a segunda parte do espectáculo. Nesta fase, os adereços cénicos (chão laranja, bancos de madeira, castiçais) são substituidos por outros idênticos mas contemporâneos. E os figurinos de Iñaki Izoilo assumem essa contemporaneidade transportando a farinha com que as actrizes se mascararam – uma máscara que as torna iguais e, arriscando ir mais longe, permite o tal nivelamento atemporal desejado, da mesma forma que reporta ao pão sagrado e à razão das lutas, a posse das terras férteis – para o corpo delas. Vestidas de branco as três intérpretes passam de padeiras to be a objectos mutáveis. Depois de explodirem na sua sexualidade (Deus versus Diabo), ausentam-se de si mesmas e deixam-se utilizar como se um boneco se tratassem.

Será no momento em que as três “bonecas” mimam uma série de situações pretensamente performáticas – as actrizes lêem de um caderno indicações de movimentos que devem cumprir, executando-os sem procurarem uma intenção ou emoção – que mais se sente o peso da assinatura de RNC. Imediatamente se recorda o seu anterior espectáculo ACTOR e a vontade de querer significar somente o que se apresenta. Se uma actriz veste umas calças, a actriz veste as calças. «Simbologia prefiro dizer que não há», diz uma delas. Há, de facto. Cada uma dessas sequências transmite uma ideia de contributo para um puzzle que se começou a construir desde o início e que, como já se disse, resultará para cada espectador num espectáculo diferente. No final desta sequência, MN veste-se de casaco curto, top de alças e cuecas (tudo branco) e sobe a um banco em pose de santa, noiva, vencedora dos Jogos Olímpicos, miss, diva... e diz «Eu é que sou a Padeira de Aljubarrota». Assume-se aqui a ideia universal – um tanto pop e superficial, mas adequada a estes tempos de neo-heróis – de que existe uma padeira em cada um de nós. Basta querer.

E é esse aspecto da crença que transforma DPA numa proposta estimulante, ainda que registe alguns desequilibrios na forma como a trabalha (o vídeo e a banda-sonora são dois deles, especialmente porque o primeiro não denota uma evolução de God Knows Whati! e o segunda mima o rigor da utilizada em ACTOR). Trata de uma crença naif no que isso representa de aceitação como verdadeiros os elementos sobre a história da padeira Brites que chegaram até nós.

O momento em que mais se sente essa crença acontece em duas fases: 1) quando se ouve em off as actrizes à procura dos fornos da padeira (o facto de ninguém saber onde se encontram aumenta a ideia de mito e estimula a especulação) e nas lenga-lengas e canções populares transformadas em «mediavalês», essa "língua” inventada em que elas se entendem. Isso acontece porque sabemos que entrámos no campo da ficção.

O que mais satisfaz em DPA é compreender que ao ridículo da explicação se pode associar toda uma vontade de perpetuar um ideal, um conceito, um mito. Aos criadores de DPA pouco deve importar se a padeira Brites existiu ou não. O que importa é perceber que se trata de «uma construção histórica idealizada, referencial, muitas vezes parodial, de uma Idade Média que ainda esconde muitas das razões que durante séculos fomos e do que ainda ostentamos».

Uma última nota, bastante clara sobre as mitificações: a Câmara Municipal de Batalha recusou apoiar o espectáculo, com base numa necessidade de proteger a história, tal como aconteceu. Ora, o que é que aconteceu com a Padeira de Aljubarrota? Alguém sabe? Nem de propósito, o espectáculo estreou na Festa do Avante, essa coisa mítica de um partido quimérico.

DAS PADEIRAS DE ALJUBARROTA


Direcção artística: Rogério Nuno Costa e Marina Nabais Encenação: Rogério Nuno Costa Interpretação: Marina Nabais, Ana Gouveia, Eleonore Didier e Tonan Quito (participação especial) Composição musical: Tiago Cerqueira Vídeo: António Cabrita Desenho de luz: José Álvaro Cenografia: Fernando Ribeiro Figurinos: Iñaki Izoilo

Co-Produção: A menina dos meus olhos / Festa do Avante
Estreia: 03 de Setembro
Apresentações: 03 e 05 (Festa do Avante), 10 a 12 (Casa das Artes de Vila Nova de Famalicão), 23 a 25 Setembro (Hospital Miguel Bombarda, Lisboa)