É um espectáculo muito feio
análise-comentário-divagação especulativa ao espectáculo Gog Knows Whati! - Dá Deus nozes a quem não tem dentes (GKW), de Rogério Nuno Costa (RNC) e Marina Nabais (MN), reposto a 7 e 8 de Maio 2004 no Espaço M, ao Ateneu Comercial de Lisboa
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I
É um espectáculo muito feio, disse ele. Ao que me apetece responder, citando Antonin Artaud, que o teatro "não está dentro de nada, mas se serve de todas as linguagens: gestos, palavras, sons, palavras, fogo, gritos, encontra-se exactamente no ponto em que o espírito tem necessidade de uma linguagem para produzir e produz a sua continuidade." Ou seja, se é feio, que se mostre o belo; se sujo, que se sinta o limpo; se forte, que se perceba o fraco; se completo, que se sinta falta de mais... se teatro, enfim, que seja também vida.
Ele chega e ela chega. Homem e mulher - e logo as referências, Adão e Eva e demais seguidores - em jeito de conformismo iconoclasta. Recomeço. Eu.
Há uma famosa crónica do António Lobo Antunes, que identifica o homem português e o classifica de acordo com todos os clichés já batidos e pisados. Todos a sabem de cor... é aquela do homem de fato de treino roxo que calça os ténis brancos e põe o fio de ouro para ir ao centro comercial. É o português médio. O de Fátima, do Futebol, de Salazar... (ups), do Fado. O português médio que somos todos nós, pobretes mas alegretes, os do "cá se vai andando co' a cabeça entre as orelhas", aqueles de quem nos orgulhamos e fugimos; e aqueles que são artistas. Médios, também.
É sobre o mal-estar, o air du temps, a paz podre, o chove-não-molha e o tentar viver no meio "desta merda toda", gritou-me a Marina já no tempo de desconto pós- espectáculo-tese.
Mas escrevia eu: Ele chega e ela chega. Casados, sem futuro, já com os desejos recalcados e resignados. A quererem viver sem saber como ou o quê. A viver de quê? Remediados, conformados, escondidos, recalcitrados, reprimidos... juntos, apesar de tudo... porque ele, no fundo, é bom homem, coitado e ela, enfim, não sendo como uma certa namorada que tive no tempo do liceu - que deixei incompleto para ir à vidinha custosa - sempre é uma companhia que se têm. Até ao fim da demonstração - chamemos-lhe assim, porque o "te - a - tro" acaba antes de se poder classificar esta... demonstração - eles vão aparecer-nos sentados a lado a lado e entre um bitoque gorduroso; espantados com as luzes, as fontes, os golfinhos... em suma, o génio que concebeu o centro comercial; a comentar a vida dos outros; presos às flatulências da vida; adiados sem saberem bem à espera de quê.
Ao seu lado, com lentes de aumentar e ampliar, dois assexuados observadores, cuja epiderme ferve de tensão. O macho e a fêmea; o pavão no ritual de acasalamento; na coreografia - chamam-lhe (????) - do amor; Movimento, movimento, movimento... e uma só palavra: TU! Sim, TU que me olhas, espectador satisfeito e acomodado - EU que te acendi as luzes para que a escuridão do "te - a - tro" não te proteja (nem a mim, caramba!!! e agora??) - estás a ver onde estás? Queres sair daqui? Queres? E o que é que estás disposto a fazer por isso? Vais aplaudir, dizer que gostaste muito, parabéns, continuem, depois telefono??? Hã? Que te diz a ti o que eu te estou a dizer?
Estamos longe, portanto, do ideal nietzscheano de levar a vida como se agrada, ou não levar vida nenhuma. Português e artista, a mesma face de uma só moeda - que ironia, já nem moeda temos - que revolve entre cara e coroa e volta sempre ao mesmo. É sobre o mal estar sim, e sobre como sobreviver a isso. Pode sobreviver-se a isso? Quer-se sobreviver a isso?
O espectáculo não acaba. Obviamente que não acaba. Simplesmente interrompe-se para que ao espectador seja dada a vez de contra-argumentar. Mas, óh médio espectador, que fizeste tu? Exactamente, pergunta agora e bem alto, para que Ele te ouça: "Pai, porque me abandonaste?"
II
God Knows Whati! (GKW) estreou em Janeiro de 2003, em Braga, ou seja, é anterior a Vou a tua casa e Saudades de tempo em que se dizia texto, o que, se por um lado, permite identificar algumas linhas mestras destes dois espectáculos, por outro, desvirtua outros aspectos que achávamos peculiares. Não é grave se tomarmos em linha de conta, a figura de RNC e a verificarmos em GKW mais do que MN. E tal sucede, porque a actriz/bailarina/coreógrafa acompanhou os espectáculos seguintes de RNC, sobretudo no trabalho de campo e desbastação de material.
E o que se nota, para além de uma coerência afirmativa acerca da ocupação do seu - de RNC - espaço íntimo, ou seja, o escasso perímetro que o rodeia é trabalhado não como elemento exterior ao corpo, mas como parte integrante deste - o que é no fundo, a eterna questão do bailarino, viver além do seu corpo... no espaço que o rodeia - e por isso mesmo, plasticamente coerente, é que se cumpre à risca - e citando novamente Artaud - a ideia do actor como cumpridor de dois planos, um físico (atleta) e um psicológico (actor), no qual o físico actua como um paralelo análogo ao psicológico através de um jogo cujos movimentos dramáticos percorrem os mesmos pontos. Actor e atleta são, assim, dois elementos - duas metades - de um mesmo jogo, cujo vencedor é a conjugação dessas mesmas forças.
No entanto, é consciente fazer-se notar, que a fisicalidade de RNC, a qual se alicerça no trabalho interior de MN, é fruto de uma pesquisa sobre a ocupação de um espaço bem mais lato que o perímetro íntimo e que pode atingir zonas de verdadeira violência confrontacional. Nesse sentido, a fisicalidade de MN, se posta em confronto, pode funcionar como espelho - ou duplo -, sem, no entanto, se resignar a sê-lo. Ou seja, percebem-se melhor as movimentações de RNC nos espectáculos subsequentes, depois de visto GKW, do que enquanto objectos isolados. É por isso, talvez, que a presença de MN não é, de todo, desprovida de provocação/invasão de espaço alheio, obviamente perceptível nos espectáculos seguintes.
O que se pretende afirmar - e porque, reafirma-se, a visão de GKW é ulterior a Vou a tua casa e Saudades... - é que o espaço de cada um é invadido pelo outro, mas invadido não para trazer um objecto novo, mas para o confronto do mesmo objecto (teoria que aliás poderia ser aplicada a qualquer relação amorosa). E esse objecto, tendo sido construído pelos dois, não deixa de aparentar tratar-se de fragmentos que se apresentam como um puzzle a construir. Provavelmente - e essa é uma das melhores noções que se obtém dos espectáculos de RNC - é que só irá ser construído pelo próprio intérprete. O espectador é um mero peão. Ou antes, um auxiliador de memórias. Para além de tudo poder parecer um eterno jogo infantil.
Contudo, GKW, parece não assimilar, na sua construção, que o contexto no qual se insere pode aniquilar esse mesmo percurso, ou seja, os intérpretes/criadores preocupam-se em apresentar as cartas do jogo mas não a mostrar o seu truque. Se é deliberado ou não, cabe a cada um escolher. Mas dada a proposta, o espectador prefere o caminho mais fácil que, neste caso, é a escalpelização do conceito de criação em ponto-morto, ou seja, se a situação é o que é, é porque a vivemos dia-a-dia. No fundo, é como se no final percebessemos onde queriam eles chegar - ou seja, o contexto - e, ao mesmo tempo, pressentissemos que esse foi o ponto de partida.
Afinal, deram-nos só pistas e indicações para os seguirmos e, quando nos equivalemos, abandonam-nos. Se isso pode ser uma opção interesante - porque nos deixa algo fantasiosos quanto ao "que vem a seguir" -, ao mesmo tempo, sente-se um certo je ne sais quoi de frustração. Afinal, se nos queriam mostrar o ponto de partida e agora que já o percebemos, seguimos para onde????
Tanto RNC como MN defendem a teoria de que não pretendem apresentar a solução para o problema, mas antes dar o seu contributo para um alterar desse problema. O mais violento, quando assimilada esta noção, é que a solução - se a houver - caberá ao espectador apresentar.
E o "te - a - tro" também é isso. Deixar-nos desamparados.