quarta-feira, junho 30, 2004

Audição de um actor policromático

Análise ao espectáculo ACTOR de Rogério Nuno Costa

[ACTOR é apresentado nos dias 16 e 17 Julho na Casa de Teatro de Sintra.]




O espantoso actor que tira e coloca e retira o adjectivo da coisa, a subtileza da forma, e precipita a verdade. De um lado extrai a maçã com a sua divagação de maçã.
Herberto Helder



Quando Rogério Nuno Costa (RNC) entra na Black Box do Centro Cultural de Belém, os espectadores já tiveram a oportunidade de apreender o que se irá passar. No momento em que entraram no foyer do espaço de apresentação, foi-lhes entregue um guião (a 26ª versão deste) em que o criador dá conta das sequências que compõe o espectáculo, indicando a sua duração e propondo interpretações para essas mesmas sequências. Será, por isso, um espectáculo já visto, aquele que os espectadores irão ver? Contudo, e mesmo que se opte por fazer acompanhar o que se vai passando no palco com a leitura do guião, o que o criador nos apresenta está longe de poder ser imaginado. Ou seja, obriga-se a uma reflexão sobre o que é a teoria do/para o actor.

Partindo do modelo stanislavskiano, em edição francesa de poche, La formation de l' acteur, RNC apresenta-nos um índice dessa mesma teoria, testando-a no corpo de um indivíduo. Entende-se, aqui, indivíduo, como pessoa anónima. Há, nesta proposta, uma tentativa de demonstração de que a anulação do actor em função da personagem é, à partida, um erro pois permitiria encarar todas as pessoas como actores. E, para além disso, fazer acreditar que esse é o caminho para se atingir a personagem. O que RNC prova é que, exactamente, esse caminho leva a um revelar não da personagem ou do actor, mas da pessoa atrás da personagem ou do actor. Nesse sentido, afasta-se do conceito de actor "do método" e abraça a ideia de Laurence Olivier de que um actor não tem que pensar, tem que fazer.

Todo o espectáculo está construído como se de uma dissertação de tese se tratasse, desde logo com a apresentação dos pressupostos e fontes (através do guião) e ainda com o texto programático apresentado nos flyers e folha de sala ("de cada vez que me perguntam 'o que fazes', respondo logo 'sou actor'. Passados cinco anos, a crise existencial: um actor é uma pessoa que actua. Um bailarino, porque actua, é sempre um actor (...)Eu gostava muito de ser um bailarino que representa sem ter passado pela Lee Strasberg. Como não sou, sou um actor triste. E este é um espectáculo triste.") - poderia ainda invocar-se a tentação de se colocar um sinal de pontuação (qualquer um) a seguir ao título, dando assim conta das diversas interpretações possíveis (Actor?; Actor!; Actor...; Actor.; "Actor"; ...) -, mas mais do que isso, Actor transforma-se numa espécie de audição. No final, o público é convidado a classificar o que assistiu, que, ironicamente, está identificado como espectáculo de dança (seja por imposição do co-produtor CCB - que inscreveu o espectáculo entre os Bailados de Margarida Abreu e o Festival Lugar à Dança -, ou porque, efectivamente o próprio método de Stanislavski apela mais à procura no corpo do intérprete as razões de ser da personagem, logo, torna o actor num "corpo que dança"). No caso da apresentação no CCB, no passado dia 26 de Junho, ACTOR foi classificado como sendo um espectáculo de "dança portuguesa com fortes raízes étnicas" (conforme as classificações propostas pelo guião). Eu, preferencialmente, optava por um espectáculo de "dança ao domicílio", já que o universo convocado é, antes do mais, íntimo, cerebral e hermético. Não é, por isso, possível determinar se o "júri" aceitou passar RNC nesta sua dissertação. As fórmulas e os conceitos estão de tal forma revolvidos que "primeiro estranha-se e depois entranha-se". Até poder ter espaço para dialogar, ACTOR permanece no limbo das criações gesamkunstwerk (o conceito de arte total wagneriano).

É nesse sentido que a segunda parte do título desta análise "de um actor policromático" toma forma. Ao longo do espectáculo, RNC vai acumulando camadas - ou níveis - susceptíveis de cumprirem os preceitos de Stanislavski. Os exercícios de respiração, concentração, imaginação, reacção/contra-reacção ou alienação que são propostos pelo teórico russo, de forma a atingirem o "actor completo", são analisados isolada e individualmente, antes de fazerem um conjunto. Esse conjunto só surge perante o espectador quando RNC provoca o corte e se apresenta como o resultado não de um processo performático, mas antes como um produto cultural e ideologicamente enraizado nas suas origens. O "boneco" a que chega - uma figura minhota e matrona - não é mais do que a camada primária - genética, se quisermos -, do autor que procurou um método para chegar a um estád(i)o superior. Ou seja, não é Freud - ou John Locke num certo sentido mais radical -, que são convocados, mas Henri Bergson, na sua teoria de separação espaço-tempo/material-imaterial.

Ao contrário do que acontecia em Saudades do tempo em que se dizia texto, RNC não procura metaforizar sobre uma memória que só é a sua por imposição cultural, mas antes dar lugar a um processo de evolução interno. O actor dá lugar à pessoa, da mesma forma que a larva dá lugar à borboleta (utiliza-se esta expressão não no sentido de contrariar a frase que RNC usa, durante um vídeo do espectáculo, para se identificar "I'm not a queer performer", mas no seu sentido biológico). O monocromatismo que daria aos actores o mesmo tipo de reacções, dá lugar ao policromatismo individual, ou seja, dos que usam o método não como fim mas como ponto de partida.

O que é interessante verificar no trabalho de RNC (naquilo que é possível ler através dos seus códigos pouco claros e nada decifráveis - ainda que o criador insista que tudo aquilo que apresenta é aquilo que quer apresentar, sem lugar a metaforizações, a verdade é que não joga/aposta no aleatório, no casual ou inocente, mas antes apropria-se desse quotidiano para o filtrar; o ponto de partida pode ser a sua visão do mundo, mas o que é dado a ver, e às primeiras leituras, é uma adaptação desse mundo à sua teoria), é o constante salto entre objecto e definição, misturando Magritte com os naturalistas. Ceci n'est pas un acteur, portanto. RNC é mais um agent provocateur do que um radical activista que insiste numa teoria. ACTOR é, nesse sentido, um espectáculo de tese, em que são convocados os elementos que permitiram delinear/apresentar essa mesma tese, mas, não a levando até ao fim, obriga o leitor/espectador a questionar o seu propósito, ainda que este não exista para o criador (ou este ainda não o saiba identificar).

No plano estritamente formal, ACTOR é o espectáculo mais bem estruturado de RNC e em que este soube equilibrar o facilitismo em que às vezes cai (ainda que o revista de uma "urgência performática") com a necessidade de finalizar aquilo a que se propôs, mesmo que essa finalização seja um espectáculo em aberto. Nunca, no entanto, isso foi tão assumido. Parte desta inovação deve-se ao facto de RNC ter contado com a colaboração de terceiros em tarefas que, normalmente, assumia. O self made man torna-se, assim, e de certa forma, mais altruísta, permitindo uma segunda anulação do conceito de Stanislavski. Prova-se que um actor sozinho é capaz de muito pouco, mesmo que seja a força motora de um espectáculo. De destacar, por isso, a depuração de cada uma das intervenções (vídeo, Rui Ribeiro; espaço, F. Ribeiro; desenho de luz, José Álvaro; desenho de som, Carlos Morgado, figurinos, Tânia Franco; e a colaboração, no que isso significa de rigor, contenção e inteligência de Marina Nabais no movimento) e a conjugação desses elementos numa organização (também cromática) de um todo que se quer questionado/questionável.

Importa, e para finalizar, dar conta de que o método utilizado por RNC para questionar a arte, o espectáculo, as intervenções culturais vive num limiar arriscado e que facilmente, atendendo ao contexto cultural em que se vive, se pode virar contra si. A margem que o criador reserva para uma preservação é mínima e aposta numa reformulação a cada proposta apresentada. Seria, por isso, talvez mais fácil caracterizar RNC como um "actor híbrido", mas a verdade é que nestas suas fórmulas/propostas/provocações há um constante desejo de exposição (que não é íntima nem permite voyeurismos - novamente a encenação do aleatório e do quotidiano) que, no mínimo, deveria fazer pensar os que ainda precisam de identificações/rótulos/definições para os objectos artísticos. E contra mim falo.

Outros espectáculos de Rogério Nuno Costa analisados neste blog:

Pictures at an Exhibition
Saudades do tempo em que se dizia texto
Vou a tua casa
God Knows What!

1 comentário:

Anónimo disse...

Este texto é um completo disparate. Intelectualite da mais parva. Pepineira de chavões intelectualóides digna dos gabrieis alves da cultura que por aí pululam. Que snobeira. É a chamada pimbice cultural. ARRE!