quarta-feira, abril 25, 2007

Crítica de teatro: Variação sobre a Última carta de Krapp

Variação sobre a Última carta de Krapp
de Mónica Calle
Casa Conveniente, Lisboa
até 19 de Maio


Silêncio

Primeiro ela apaga as luzes, deixando apenas uma, suspensa, onde se expõe. Depois olha para lado nenhum, silenciosa. Parece querer ir falar mas não lhe sai som algum. Ou apenas o ar. A seguir vai à procura de qualquer coisa. Há bananas plantadas nas vigas do tecto. Mas da boca dela não se ouve qualquer som. Da rua sim, da rua ouvem-se todos os sons. E lá de baixo, da cave também. Angustiante início este, o de Krapp.

Krapp é Mónica Calle, que assim regressa, finalmente, à casa que é sua, a Conveniente, no Cais do Sodré. Variação sobre a Última carta de Krapp marca o regresso a um território indefinido que é aquele, arriscado, onde Calle gosta de estar: a verdade do acto teatral. Krapp devia ser um homem; devia ser um homem velho; devia ser um homem velho e louco; devia ser um homem velho, louco e angustiado. Calle faz mais. Dá ao Krapp, de Beckett, a distância necessária para o tornar paradigma de todas as crises. Como a dela, afastada da encenação desde Julietas – cartas a um amor fragmentário, projecto de decomposição dramatúrgica. Como este, mas agora a solo, como sempre esteve, perto do sublime. Vemo-la sozinha, em frente a nós, despojada e religiosamente pronta para a cruz, tal como antes em A Virgem Doida (1992) e Rua de Sentido Único (2001). Há qualquer coisa no corpo, na voz, no olhar e na presença de Calle que torna difícil vê-la. Aquela entrega fere. Aquele olhar magoa. Aquela voz incomoda. Pode ser do local, antro maldito, zona de perdição. Pode ser que seja o Cais do Sodré a marcar-lhe o discurso, descrente e cru. Pode ser. Mas não é só. Se fosse só o lugar há muito que havia nisto uma fórmula. Foi para recusar a fórmula que ela parou, dois anos.

E, depois, fala. Krapp e Calle. Mas que diz ela? Bobine cinco? Debaixo do chão de tijolos há um alçapão, dentro do alçapão há caixas, nas caixas bobines, nas bobines nada. Devia estar lá uma voz, a dela, a de Krapp, a contar-lhe como havia sido. A fazê-la lembrar o que já aconteceu. A contar-nos porque é que ela chegou àquele ponto: mas das bobines não sai nada. Nada. É lá de fora que vêm os sons todos. Música, gritos, buzinas, preços de cerveja e sexo. E ela ali, à procura das palavras certas que lhe deveriam explicar como chegou ao estado a que chegou.

Esta é, como se percebeu, uma peça feita de silêncios. E sendo a partir de uma peça de palavras, que procuram restituir a memória, Calle radicaliza o gesto. Mais do que se procurar (ou de procurar Krapp) nas memórias, busca-o naquele espaço anacronicamente vivo, escuro e rude. Como se só ali, naquele inferno silencioso, fosse possível encontrar as razões para tal descontrolo. Sujeita o corpo ao espaço, a dramaturgia ao momento, a acção à espera. Torna, à nossa frente e sem rede, viva a vida de Krapp, forçosamente silenciosa, porque já tudo foi dito. Não se espere da peça a ordem, a regra, a lógica. Busque-se antes um percurso interior, de memória e reflexão. Krapp, de Beckett, ali, pobre e miserável clown, enfrentando o silêncio, o vazio, o desaparecimento de si, no nada que sai da bobine. Krapp, Calle, nós. Será que alguém podia gritar?

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